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Quem boa cama faz.../VI

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A noite para Fernanda foi já povoada de mil pensamentos diversos, de que Ernesto era o principal assunto. Pareceu evidente que o rapaz amava alguém, mas sem esperanças ou pelo menos com tão poucas como ela. Também não lhe pareceu fora de propósito que as meias palavras de Ernesto aludissem a algum amor já passado e infeliz. Em ambos os casos era uma alma com quem a sua simpatizava; a igualdade dos sentimentos e talvez das circunstâncias as chamavam uma para outra. A isto vinha juntar-se uma natural curiosidade feminil. De maneira que Fernanda, depois de pensar longo tempo na conversa de Ernesto, sonhou com ele quase toda a noite.

Daí a quatro dias encontraram-se outra vez em casa do desembargador. Ernesto estava alegre como das outras vezes.

— Ainda bem! disse-lhe ela apenas pôde conversar com ele no sofá.

— Por quê?

— Porque o vejo mais alegre.

— Oh! é o meu gênio que me faz assim, não a minha estrela. A natureza foi mãe comigo; deu-me esta máscara.

— Sabe de uma coisa? perguntou Fernanda sorrindo.

— O que é?

— Eu desejava...

Calou-se.

— Desejava?...

— Ser sua confidente, concluiu Fernanda fazendo-se rubra.

Ernesto estremeceu tão naturalmente, que a moça olhou assustada para as outras pessoas que estavam na sala.

Houve um momento de silêncio.

— Não tente encarar o inferno, disse Ernesto com melancolia; pode cair nele.

E ao mesmo tempo que dizia isto, tomou um ar alegre e estouvado.

— Mas por que estou eu a dizer estas coisas? observou ele; são talvez ridículas ao seu espírito.

— Oh! não! protestou ela.

A conversa tomou caminho diverso e jovial. Todo o esforço de Ernesto se resumia em parecer que afetava bom humor, mas que realmente estava triste. A moça acreditou perfeitamente nessa afetação. Sua simpatia por semelhante estado do rapaz era já tamanha, que nessa noite apenas olhou para Luís umas sete ou oito vezes. Nas outras noites regulava por quarenta e tantas; houve uma noite de cento e cinco.

No meio da conversa indiferente em que estavam todos, uma senhora aludiu em voz alta ao casamento de Fernanda e Luís. A moça, que nessa ocasião olhava para Ernesto, notou-lhe a dolorosa impressão que isto produziu no rapaz; abaixou os olhos e ficaram ambos em profundo silêncio.

Nessa mesma noite, Luís perguntou a Ernesto:

— Que estiveram vocês conversando?

— Várias coisas.

— O negócio marcha?

— Lentamente, mas há de ir até o fim.

No dia seguinte, Fernanda, que não era janeleira, esteve toda a tarde à janela, com bom fruto, pois que viu aparecer ao longe a figura de Ernesto. O rapaz olhou para ela três ou quatro vezes, cumprimentou-a, e antes de voltar o canto ainda voltou a cabeça com a esperança de a ver. Viu-a, porque ela não saíra da janela, e também foi visto, porque ela não desviara os olhos dele.

Depois das circunstâncias que acabo de relatar, era impossível que o primeiro encontro dos dois não fosse um tanto acanhado e esquerdo. Assim foi na verdade. Fernanda não se atrevia a levantar os olhos para ele, e ele pela sua parte mostrava igual receio.

Mas como ela não revelasse irritação nem sequer aborrecimento, Ernesto concluiu que as coisas não andavam mal. Teve certeza disso na segunda noite, em que se encontraram na casa do desembargador. Desta vez o próprio Luís foi testemunha de que os olhos da prima freqüentemente se dirigiam para o lado de Ernesto, e que os dois pareciam começar uma conversação que prometia ser mais íntima.

— Bravo! disse ele ao amigo no dia seguinte almoçando no hotel, agora as coisas tomaram o verdadeiro aspecto. Já se carteiam?

— Ainda não, mas não tarda.

Tardou algum tempo que se carteassem; mas os olhos trabalhavam já com muito afinco, os dedos diziam uns aos outros coisas muito expressivas, na ocasião de chegada ou de despedida, e o terreno estava magnífico para a primeira epístola amorosa.

Literalmente, Fernanda já não fazia caso do primo. A frieza com que ele a tratava comparada com a atenção e o amor incubado de Ernesto era a sentença de morte da paixão que ela nutrira durante tanto tempo.

Luís preferira decerto que a prima fizesse algumas desfeitas, que ele receberia com desdém, mas que lhe tocariam agradavelmente no amor-próprio. Chegou até a provocá-las, mostrando-se solícito e afetuoso; mas foi o mesmo que se rendesse finezas ao chafariz do Largo do Paço. A moça nem se abalou; tratou-o como prima e não como noiva.

Não era um desastre; era justamente o que ele queria. Por isso não se zangou o bacharel; mas lá no fundo do coração lhe ficou um amargor.

Ernesto caminhou de vento em popa. Arriscou a primeira carta, tímida e desesperançada. Fernanda respondeu algumas palavras ternas e judiciosas. Luís teve conhecimento desses primeiros tiros de bala. A carta de Fernanda foi de comum acordo declarada um modelo.

— Não se pode negar, observou Ernesto, que é uma moça de coração e de inteligência.

— Sim, não contesto, respondeu Luís.

— E está apaixonada, vês?

— Vejo.

Seguiu-se um silêncio.

— E tu? disse repentinamente o bacharel cravando os olhos no amigo.

— Eu? respondeu Ernesto coçando a cabeça, não estou nem estarei, conquanto julgue que ela seria capaz de fazer um homem feliz. Uma coisa porém me preocupa.

— O que é?

— Entrei nisto, cuidando que ia substituir um namoro por outro. Vejo que não. Tua prima apaixona-se deveras. Não quisera contribuir para um desgosto na família.

O bacharel ainda nessa manhã ouvira ao pai falar no casamento dele com Fernanda, não em março que estava já no fim, mas em junho ou julho. A idéia de que a prima de novo se voltasse para ele, e de que não houvesse remédio senão casar, o levou a dissuadir o amigo dos tardios escrúpulos.

— Qual desgosto! disse ele; assim como se esqueceu de mim, há de esquecer-se de ti; e tudo volta aos antigos eixos.

— Vá feito.

— Falaste-lhe em mim alguma vez? perguntou Luís depois de alguns instantes.

— Só para elogiar-te.

— E ela?

— Alegrava-se com o que eu dizia. Se eu dissesse o contrário, não se alegrava, mas aferrava-se a ti cada vez mais; é da regra.

— Vais responder a essa carta?

— Hoje mesmo.

A resposta foi ardente, mas muito calculada. Fernanda subiu ao sétimo céu, e a carta com que replicou podia medir meças à do Ernesto; o namoro continuou assim por meio de cartas, olhares, sorrisos e conversas, todo o arsenal, em suma, usado neste gênero de campanhas.