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Quem boa cama faz.../VII

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Ao cabo de dois meses já o namoro não era segredo para ninguém. Na opinião da família nenhum deles podia fazer mais acertada escolha; a mesma opinião era compartida pelas pessoas estranhas.

— Escolheu um anjo! diziam as senhoras.

— Escolheu um cavalheiro! diziam os homens.

Fernanda parecia até mais bonita do que antes; a razão era que a felicidade lhe dava à beleza um ar que a tristeza lhe tirou. Ernesto pela sua parte mostrava-se igualmente terno e solícito com a moça. Nenhum deles confessara o namoro; mas nenhum deles buscava escondê-lo dos olhos estranhos.

— Vê bem o que perdeste! dizia o desembargador ao filho um dia em que estava de mau humor. Como aquela, raras mulheres se encontram!

Luís abaixou a cabeça, sem proferir palavra, mas com um ar que, bem examinado, era antes de mortificação que de prazer. A vitória do amigo, tão de longe preparada, começava a picar-lhe o amor-próprio. Via os louvores e as invejas de que era objeto o amigo, e apesar de ter contribuído para isso mesmo, começava a irritar-se contra o vencedor e contra todos.

Esta impressão foi crescendo com o tempo. A transformação da prima contribuía ainda mais para lhe arredar o espírito. Estava longe de ver nela a mosca morta, como lhe chamava antigamente. Intenção de casar não tinha decerto, ou ainda lhe não chegara; apesar disso magoava-o a atenção que ela prestava a outro. Enquanto Fernanda lhe queria unicamente a ele, não se dava por achado o bacharel; bastou que ela se voltasse a outro para que lhe nascesse o ciúme.

Ciúme é o termo; ciúme filho do amor-próprio, e mais tarde filho do amor sem apelido nenhum. Luís começou a sentir que o menor gesto da moça o perturbava, e que de cada vez que ela e Ernesto conversavam sozinhos era o mesmo que se lhe metessem um alfinete no coração.

Ao mesmo tempo começou ele próprio a fugir de Ernesto; e isto mesmo lhe deu azo a mortificação maior, porque entrou a reparar que também Ernesto o não procurava tão amiudadamente.

Dar-se-á caso que?... perguntou Luís Fonseca a si mesmo, sem ousar concluir a pergunta que naturalmente a leitora já completou.

Redobrou de atenção; tomou-se caseiro mais que nunca. Espiava por assim dizer as ações da prima; sempre que podia os ia interromper, e então observava no rosto de ambos a impressão que lhes causava. Mais de uma vez se convenceu de que a impressão não podia ser pior. Vingava-se não se desviando mais durante a noite inteira.

Luís não pôde enfim encobrir de si próprio que amava a prima, tanto quanto a desprezara outrora. Esta triste convicção foi um golpe ainda maior que o da entrevista com que esta narrativa começou. Eu afinal de contas sou um asno, dizia consigo Luís Fonseca. Teci a corda que me há de enforcar. Que diabo me mandou confiar as minhas penas a um estranho? Saiu-me um peralta, um pérfido. Enganou-me. Estou roubado. Mas se eu mesmo fui chamar o ladrão!

Luís Fonseca dizia isto entremeado de muitos repelões em si mesmo, até que caía em si, e se lembrava de que Ernesto pouca ou nenhuma culpa tivera naquilo, que era puramente obra dele.

Ia além o bacharel.

— Quem sabe se me não engano? Ernesto foi sempre bom amigo. Talvez aquilo ainda seja necessário para livrar-me do casamento. É o que há de ser.

Esta idéia o levou a ir ter com o amigo. Achou-o a ler uma cartinha, que escondeu logo. Luís franziu a testa.

— Carta dela? perguntou ele.

— Não, respondeu Ernesto depois de alguma hesitação.

— De outra?

— De ninguém.

Luís mordeu o bigode mas conteve-se.

Seguiram-se cinco minutos de silêncio.

— Ernesto, disse enfim o bacharel, venho pedir-te uma explicação e um conselho.

— Caso grave? perguntou Ernesto sorrindo.

— Talvez.

Ernesto ofereceu-lhe um charuto, que o outro não aceitou. Novo silêncio que o bacharel foi ainda o primeiro a interromper.

— Começo pelo conselho, disse ele. Sabes que o tempo deu os seus frutos. Aquele furor que me causou a resolução de meu pai passou completamente. Encaro hoje o casamento com outra cara. Acho-me disposto a aceitá-lo como uma doce necessidade do coração. Que te parece?

— Que me há de parecer? disse Ernesto levantando os ombros.

— É verdade que as tuas idéias são opostas a esta; assim me disseste quando eu aqui vim há cinco meses pedir-te conselho. Em todo o caso, apesar de seres o que eu fui, sempre te considerei com mais juízo do que eu. Desejava portanto saber se faço bem em obedecer a meu pai.

— Sem dúvida.

— Devo então aceitar o casamento com ambas as mãos?

— Uma vez que te não repugna, é um dever.

Luís teve um movimento de alegria, que logo reprimiu. Ernesto começou a brincar com a corrente do relógio, com o ar de um homem que se não acha em posição demasiado cômoda. Houve um pequeno silêncio. Luís continuou:

— Agora a explicação. Em que estado pára...

Hesitou.

— O quê? disse Ernesto.

— Poupa-me dizer mais; creio que me entendeste.

Ernesto levantou-se, deu alguns passos na sala, e parou enfim defronte de Luís Fonseca. Olhou-o a fito durante alguns rápidos segundos, e enfim lhe disse:

— Luís, fizemos um dia uma coisa feia e perigosa; feia porque não era bonito ir perturbar o espírito de uma moça, com o único fim de zombar dela e comprar com isso alguns dias de vida dissoluta...

— Perdão...

— Perigosa, continuou Ernesto sem atender à interrupção do amigo, perigosa porque era arriscar eu próprio o sossego do meu espírito. Não me salvei do perigo; mas o único meio que tenho para compensá-lo é apagar o lado feio da aventura.

— Dizes então?...

— Que eu gosto de tua prima.

Luís levantou-se de um salto. Os dois rivais encararam-se longo tempo sem dizer palavra, até que Ernesto foi sentar-se tranqüilamente. Luís levantou os ombros e foi a ele:

— Felizmente para mim conheço as tuas idéias a respeito do casamento, e creio que não pretenderás...

— É justamente o contrário, interrompeu Ernesto; pretendo casar com ela.

— Oh! mas isto é demais! exclamou Luís. Estás caçoando comigo, creio eu.

— Falo sério.

— Mas então...

— O quê?

— Andaste em tudo isto infamemente.

— Perdôo-te porque não sabes o que dizes.

A estas palavras, replicou Luís com duas ainda mais fortes, as quais provocaram da parte de Ernesto uma tréplica vigorosa; Luís voltou à carga com mais energia; Ernesto recebeu-o com quatro pedras na mão até que depois de dizerem muitas coisas duras e feias um ao outro, separaram-se os dois, acabando assim a conversa e o capítulo.