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Quem boa cama faz.../VIII

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Saiu Luís Fonseca disposto a fazer alguma estralada. A distância porém entre a casa de Ernesto e a sua foi bastante para lhe deitar água na fervura.

Não perdoou decerto ao pérfido, como ele dizia, nem se dispôs a derrear-lhe fácil vitória; mas a idéia do escândalo foi posta de lado. Meteu-se a noite de permeio, e no dia seguinte estava Luís mais tranqüilo.

Oh! mais tranqüilo não! O mísero sentia-se cada vez mais apaixonado; o amor tocava já ao delírio. Era-lhe absolutamente impossível assistir à felicidade do rival.

Mas como impedir-lha?

Ir contar tudo ao pai?

Aceitou este primeiro alvitre, mas logo abriu mão dele. O pai naturalmente daria razão ao outro, a quem estimava já.

Tentar arrancar o rival às boas graças da prima era tarefa escabrosa e difícil. Luís Fonseca deitou os olhos a todos os pontos do horizonte a ver se descobria um meio eficaz de derribar o rival.

Nenhum ocorreu.

Dois dias gastou nestas pesquisas infrutíferas.

No terceiro, estando a almoçar, e justamente ao meter o garfo no terceiro pedaço de bife, um súbito pensamento lhe alumiou o espírito.

— Eureka!

Estava achada a grande arma.

Luís preparou-se e foi à casa da tia. Fernanda recebeu-o com afabilidade, e a maior prova de que já nada sentia por ele foi a tranqüilidade que lhe ficara no coração. Nem uma saudade! nem um estremecimento!

O primo não se deu a averiguar até que ponto deixara vestígio no espírito da ex-noiva. A idéia de vingança o dominava.

— Está preocupado, disse Fernanda vendo que ele se sentava sem dizer palavra.

— É verdade; uma grave preocupação.

— Motivo de família?

— Talvez.

Luís Fonseca acompanhou esta resposta com um gesto de desespero que assustou a moça:

— Que é? disse esta.

— Prima, sabe qual era o projeto de meu pai há meses a nosso respeito?

Fernanda abaixou a cabeça.

— Sabe, decerto, continuou Luís, e o projeto não era só dele, mas de toda a nossa família. Tive a crueza e a insensatez de me opor interiormente ao casamento que se projetava. Abertamente não podia recusar; consultei a um amigo...

— Primo, interrompeu Fernanda, falemos de outra coisa.

— Não; falemos desta.

Fernanda levantou-se.

— Bem, disse ela, sou obrigada a sair.

— Há de ficar, disse o bacharel, quando souber que se trata do decoro da família e de a salvar de um perigo...

— Um perigo? murmurou a moça tornando a sentar-se.

— Nem mais nem menos. Ouça.

Fernanda tremia.

— O amigo a quem consultei, continuou Luís, lembrou um meio que lhe pareceu excelente para afastar-me do casamento: o meio era procurar fazer-se amado da senhora e esfriar no seu coração o afeto que eu lhe inspirara.

Fernanda fez um movimento.

Luís continuou.

— Tive a covardia de aceitar o plano, e ajudá-lo a executar. Confesso todos os meus erros para melhor ver a sinceridade do meu arrependimento. Fui eu quem apresentou esse amigo em minha casa, onde ele logo captou as boas graças da família; e começou essa espécie de assédio em volta do seu coração. Ajudei-o, é verdade, com vergonha o digo, ajudei-o nessa infame tarefa!

A moça empalideceu no começo desta narrativa; mas as faces para logo se avermelharam. Luís continuou a referir tudo o que se passara entre ele e Ernesto.

— Com o que eu não contava, porém, disse ele, era a punição que me reservou o céu. Esse amor silencioso, casto, que eu tive o desazo de desprezar, veio acender-se em mim, e aquilo que há poucos meses recusei como uma grande desgraça, hoje almejo e peço como uma das maiores fortunas da terra.

Luís esperou algum tempo a resposta de Fernanda às revelações que acabava de fazer; a moça olhava para ele sem articular palavra; parecia nem ouvir nada.

— Bem sei, disse ele, que não tenho direito a esperar o que lhe peço; mas há certamente no seu coração misericórdia para me perdoar. Do perdão virá talvez o amor que espero mais tarde. Quanto ao pérfido que me iludiu...

A moça estremeceu.

— Quanto ao pérfido que nos iludiu, continuou Luís, estou certo de que não lhe merecerá nem uma expressão de desprezo.

Fernanda sorriu e murmurou:

— Por quê?

Luís olhou para ela com espanto. Seus olhos pareciam perguntar à moça se na realidade ele ouvira bem; por isso repetiu:

— Por quê?

E como Luís não se atrevesse a responder, a prima continuou:

— É difícil de crer que tudo isso que me referiu seja verdade; mas dado que seja, que deseja agora o primo? Que eu o ame? Nunca mais; o senhor mesmo tornou isso impossível. Que lhe perdoe? Perdôo-lhe de boa vontade...

— Mas...

— Nem só lhe perdôo; agradeço-lhe também, porque ao senhor devo eu a felicidade da minha vida.

— Como? Julga que esse homem que tão vilmente zombou da sua boa fé...

— Esse homem ama-me, e está perdoado. A história que o primo me contou já eu a sabia por boca dele mesmo, a quem desculpei tudo em troco da felicidade que me vai dar. Saiba que minha mãe consente ao nosso casamento e que este será oficialmente declarado daqui a poucos dias.

A leitora compreende, sem que seja necessário dizer-lhe, o estado do miserável moço ao ouvir estas palavras. Pegou no chapéu, cumprimentou, e foi chorar na cama que é lugar quente.

FIM