Questão de vaidade/II

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“Meu amigo,

“Acendo duas velas para escrever-te. É como se eu confiasse diante de um altar as minhas penas e as minhas felicidades. Tens sido para mim o santo milagroso por excelência; nada desejo que por influxo teu não seja cumprido. E mais ainda: nas minhas atribulações é a tua palavra que me sustenta, como a voz da verdade e da justiça. Não te admires, pois, da precaução que tomei de iluminar este papel como o faria à pedra de um altar.

“Ora, ainda assim não é tanto ao santo, como ao filósofo, que eu me dirijo desta vez. Talvez amanhã te vá pedir consolações, mas agora o que desejo é a solução de um fenômeno moral.

“Sabes do meu amor por Maria Luiza, a interessante viuvinha que eu encontrei há dois meses e a quem parece que inspirei algum amor. Pouco falta para que este amor seja coroado de um feliz sucesso, substituindo eu o finado marido, que, seja dito neste papel, parece que era suficientemente prosaico.

“Quando te comuniquei esta paixão mandaste-me bons conselhos de prudência que eu li com a maior veneração. Dizias que me não fosse enganar e tomar por amor aquilo que não passava de capricho. Acrescentavas que a tua dúvida nascia dos termos de minha carta.

“Pesei as tuas palavras e gravei-as na memória. O resultado foi que estavas em puro engano. Eu amava deveras Maria Luiza.

“Mas vamos ao fenômeno. Antes de entrar em outros pormenores, insisto em dizer que amava e amo a viúva. Já te disse qual a força deste amor e o que me havia inspirado. Não quero fazer repetições inúteis, mas insisto nesta observação.

“Ouve agora o que me acaba de acontecer há oito dias.

“Tinha eu ido passar uma noite em S. Domingos em casa de dois amigos. No dia seguinte, seriam cinco horas, acordei sobressaltado com os preparativos que se faziam em casa para ir aos banhos de mar. Os meus hóspedes ficaram pesarosos de me terem acordado tão cedo; mas eu, que já de longa data tenho a minha aurora às onze horas da manhã, não fiquei descontente de poder fazer exceção à regra.

“Vesti-me, como eles, e fui com eles à praia das Flechas, lugar usual dos banhos.

“Diversas barracas se levantavam na praia, contra a qual se quebrava o mar agitado.

“Algumas moças já andavam à flor das águas, enfronhadas nas suas camisolas do costume. Outras iam saindo, de quando em quando, do interior das barracas e tomando o caminho do mar.

“Um ou outro grito, soltado no meio do susto produzido por uma vaga mais alta ou mais violenta, unia-se ao sussurro do mar.

“Os maridos, pais e irmãos, que não tomavam banho, ou conversavam, ou liam, ou olhavam o ar, enquanto as graças humanas brincavam com o elemento a que Shakespeare as comparou.

“Armou-se a nossa barraca e prepararam-se os meus companheiros para o banho. Eu de mim, confesso, preferia ver as damas banharem-se e rir do susto pueril que elas tivessem. Demais, apesar de estarmos no verão, fazia nesse dia um tal frio que me arredava da água cinqüenta léguas.

“Os meus companheiros apresentavam-me o exemplo das damas que tão destemidamente afrontavam o tempo e o mar. Mas eu, depois de citar Shakespeare no que tocava à identidade das mulheres e do mar, citei-me a mim próprio, acrescentando que a maioria das senhoras que se banhavam o faziam por moda ou por bom tom.

“Enfim, consegui não ir à água. Enquanto os outros se banhavam fui sentar-me em uma pedra que ali estava perto. Estive contemplando as banhistas alguns minutos. Mas, como sempre acontece, os meus olhos, depois de correr todo o grupo voltavam aos primeiros, e assim via eu duas ou três vezes as mesmas caras, graciosas ou assustadiças, arrecearem-se ou brincarem com a água revolta.

“Ora, uma dessas figuras, a terceira vez que passou sob o meu olhar, deteve-o alguns minutos. Estávamos a certa distância que me não permitia distinguir-lhe as feições, mas havia na temeridade, na graça, no recato com que ela se banhava, uma tal diferença das outras, que eu não pude deixar de examiná-la com mais interesse.

“Não podendo distinguir-lhe, como disse, as feições, esperei que ela estivesse em terra para procurar admirá-la ou correr-me de uma ilusão.

“Nisto estava, quando a moça, que parecia nada temer e arredava-se da praia mais do que era conveniente, foi engolida por uma vaga. Só flutuavam à flor d’água os longos cabelos negros.

“Houve um grito, um só, mas de todos quantos se achavam na praia e presenciavam o fato.

“Alguns dos banhistas dirigiam-se para o lugar do desastre. Mas estavam um pouco longe. Eu vi que a demora era fatal. Correndo pela praia, atirei fora o paletó e lancei-me à água.

“Não te conto todas as peripécias desta cena. Na praia, a família da pobre moça ajoelhara-se involuntariamente e todos pareciam depender de mim.

“Ao cabo de algum tempo e de alguns esforços salvei a moça.

“Avalia como fui recebido pela família. Afagavam-na com abraços e beijos.

“Voltando a si do desmaio que tivera, a moça foi conduzida para casa dentro de um carro.

“O que motivara a catástrofe não foi a violência com que a onda se arremessara, foi ter a pobre moça desmaiado. Uma vez desmaiada, caiu e não soube mais de si.

“O pai da moça obrigou-me a ir à casa dele. Não tive remédio. Avisei os meus companheiros e parti.

“Trataram-me muito bem. Pediram-me que voltasse lá algumas vezes. A moça não tirou as minhas mãos de entre as suas nem os seus olhos dos meus, dizendo-me que a mim devia a vida e que eu era o seu salvador.

“Voltei lá algumas vezes. Trataram-me sempre muito bem. Mas que pensas tu que me aconteceu? Aquela franca alegria, aquela gratidão tão claramente manifestada pela moça, tudo isso fez-me apaixonado!

“Mas o fenômeno? perguntas tu. O fenômeno é que, se amo a esta, não esqueci a viúva. Amo a viúva como antes: o fenômeno é que amo as duas do mesmo modo, com o mesmo ardor. Explica-me isto.

“Estou de tal modo, que não posso pensar em uma só, hei de pensar em ambas; sei o que sofro, encolerizo-me comigo mesmo.

“Que será isto? Escreve-me depressa, dá-me a luz e o bálsamo de que necessita o teu amigo.”

“Eduardo T.B.”

A resposta desta carta, escrita dois dias depois, é assim concebida:

PEDRO ELOY AO SEU AMIGO EDUARDO

“Meu amigo,

“Recebi a tua carta, e desde o dia em que a li até hoje não tenho feito mais do que pensar no teu fenômeno.

“Não é que eu esteja convencido, como tu, de que é verdadeiramente um fenômeno. Pelo contrário, vejo que o que sentes é uma coisa muito natural.

“Insistes em dizer que amas a viúva. Eu insisto em dizer que não a amas. E a prova está nesta dualidade de amor, falsa e impossível, verdadeiro erro de um espírito enfermo e de um coração indiscreto.

“Queres tu saber o que existe na verdade? Existe um simples desejo, uma aspiração toda sensual, comum nos rapazes da tua idade e de tua educação, mas imprópria de quem quer que compreenda a elevação e castidade dos sentimentos.

“Pensas que cortas toda a dificuldade pronunciando a palavra fenômeno? Repara, meu Eduardo, onde vai dar a ampliação deste sofisma. Deste modo, todos os vícios se legitimam, todos os desvios se aceitam.

“É engraçada a história do banho e do desmaio no mar. Afigura-se-te que depois deste episódio romanesco só se pode sentir amor, e concluis que estás apaixonado. E como uma insaciável volúpia reúne em teu pensamento as duas mulheres em questão, concluis que estás apaixonado por ambas.

“Ora, sério. Admites em toda a sua pureza moral a reunião de dois amores? Pois o amor, isto é, a mais completa fusão de duas almas, pode ter por objeto dois objetos?

“Reflete, entra em ti mesmo, envergonha-te do erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva, nem a donzela. Amas a uma só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentimentos que se pode dividir, que se divide, que se prostitui, que se desvaira.

“Se queres uma explicação aí a tens; se queres um conselho, não perturbes a constância dessas duas mulheres, a menos que não queiras a todo o transe ser ator principal em um drama perigoso. — Adeus. Desculpa a franqueza; é a minha. Cá fico para explicar-te quantos fenômenos te apareçam e varrer-te da cabeça quantas idéias más o vento da maldade aí depuser. Adeus”.