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Quincas Borba/XLIII

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Ladeira abaixo, D. Tonica foi ouvindo o resto do discurso do pai, que mudou de assunto, sem mudar de estilo, — difuso e derramado. Ouvia sem entender. Ia metida em si mesma, absorta, remoendo a noite, recompondo os olhares de Sofia e de Rubião.

Chegaram à casa na Rua do Senado; o pai foi dormir; a filha não se deitou logo, deixou- se estar em uma cadeirinha, ao pé da cômoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não trazia idéias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha notícia do adultério, e a pessoa de Sofia pareceu-lhe hedionda. Via nela agora um monstro, metade gente, metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capaz de vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.

— Conto-lhe tudo, — ia pensando — ou de viva voz, ou por uma carta... Carta não; digo-lhe tudo um dia, em particular.

E, imaginando o colóquio, antevia o espanto do homem, depois o agastamento, depois os impropérios, as palavras duras que ele havia de dizer à mulher, miserável, indigna, vil... Todos esses nomes soavam bem aos ouvidos do seu desejo; ela fazia derivar por eles a própria cólera; fartava-se de a rebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido, já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna, miserável...

Durou muito tempo essa explosão de raiva interior, — perto de vinte minutos; mas a alma cansou, e tornou a si. A imaginação não podia mais, e a realidade próxima atraiu-lhe a vista. Olhou em volta de si, mirou a alcova de solteira, arrumadinha com arte, — dessa arte engenhosa que faz da chita seda e de um retalho velho uma fita, que recama, enlaça, alegra o mais que pode a nudez das coisas, enfeita as paredes tristes, aprimora os trastes modestos e poucos. E tudo ali parecia feito para receber um noivo amado.

Onde li eu que uma tradição antiga fazia esperar a uma virgem de Israel, durante certa noite do ano, a concepção divina? Seja onde for, comparemo-la à desta outra, que só difere daquela em não ter noite fixa, mas todas, todas, todas... O vento, zunindo fora, nunca lhe trouxe o varão esperado, nem a madrugada alva e menina lhe disse em que ponto da Terra é que ele mora. Era só esperar, esperar...

Agora, aquietada a imaginação e o ressentimento, mira e remira a alcova solitária; recorda as amigas do colégio e de família, as mais íntimas, casadas todas. A derradeira delas desposou aos trinta anos um oficial de marinha, e foi ainda o que reverdeceu as esperanças à amiga solteira, que não pedia tanto, posto que a farda de aspirante foi a primeira coisa que lhe seduziu os olhos, aos quinze anos... Onde iam eles? Mas lá passaram cinco anos, cumpriu os trinta e nove, e os quarenta não tardam. Quarentona, solteirona; D. Tonica teve um calafrio. Olhou ainda, recordou tudo, ergueu-se de golpe, deu duas voltas e atirou-se à cama chorando...