Saltar para o conteúdo

Recordações do Escrivão Isaías Caminha/IX

Wikisource, a biblioteca livre


Aos poucos, me esqueci dos dias de fome passados a deambular pelas ruas da cidade. Tinha já um quarto, cama e um lavatório de ferro, pensão de almoço e jantar; e, ainda, do ordenado, me sobravam sempre alguns mil-réis para comprar, de quando em quando, umas botinas de abotoar ou um chapéu de palha mais catita. Gregoróvitch dera-me um terno de roupa em por todo o tempo em que fui contínuo, conheci vários alfaiates caros por intermédio do corpo dos outros.

No começo, não foi sem pezar que aceitei as fatiotas daqueles desconhecidos. Custou-me muito curvar-me a tão vil necessidade; com o tempo, porém, conformei-me e de tal modo me habituei que, mais tarde, quando a minha situação mudou, foi-me preciso um grande esforço, para me habituar a comprar roupa em primeira mão. Achava-a cara, e o dinheiro gasto nela, despendido inutilmente, como se o gastasse em orgias e bebedeiras. Os meus vencimentos eram aumentados pelas gorjetas. Havia-as de duzentos réis, mas, em geral, eram de quinhentos réis para cima. A gente dos jornais é pródiga como jogadores e gosta de aparentar desprezo pelo dinheiro e generosidade. Uma vez, recordo-me bem, um repórter, entrando alta noite na redação, com o olhar brilhante e o passo um tanto trôpego, disse-me cheio de efusão:

— Caminhas, tens dinheiro?

— Tenho, sim senhor, dois mil-réis... O sr...

Ele não entendeu bem a minha resposta e continuou com a voz pastosa:

— Sabes donde venho? Do Aplomb Club. Ganhei oitocentos mil-réis no bacarat... Arre! Que desta vez levei a melhor ao Laje... Sabes quem bancava? O Demóstenes, dr. Demóstenes Brandão, pretor, primo do Ministro do Interior.

O repórter falava bamboleando a cabeça e agitando os braços molemente. Esteve alguns instantes calado, a revirar os olhos, e depois puxou da algibeira uma nota de vinte mil-réis e disse-me:

— Toma! Vai procurar um bom fim de noite...

Eu tinha cem mil-réis por mês. Vivia satisfeito e as minhas ambições pareciam assentes. Não fora só a miséria passada que assim me fizera; fora também a ambiência hostil, a certeza de que um passo para diante me custava grandes dores, fortes humilhações, ofensas terríveis. Relembrava-me da minha vida anterior; sentia ainda muito abertos os ferimentos que aquele choque com o mundo me causara. Sem os achar, em consciência, justos, acovardava-me diante da perspectiva de novas dores e apavorei-me diante da imagem de novas torturas. Considerei-me feliz no lugar de contínuo da redação do O Globo. Eu tinha atravessado um grande braço de mar, agarrara-me a um ilhéu e não tinha coragem de nadar de novo para a terra firme que barrava o horizonte a algumas centenas de metros. Os mariscos bastavam-me e aos insetos já se me tinham feito grossa a pele...

De tal maneira é forte o poder de nos iludirmos, que um ano depois cheguei a ter até orgulho da minha posição. Senti-me muito mais que um contínuo qualquer, mesmo mais que um contínuo de Ministro. As conversas da redação tinham-me dado a convicção de que o doutor Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e desfazia Ministros, demitia diretores, julgava juízes e o Presidente, logo ao amanhecer lia o seu jornal, para saber se tal ou qual ato seu tinha tido o placet desejado do dr. Ricardo. Participar de uma redação de jornal era algo extraordinário, superior, acima das forças comuns dos mortais; e eu tive a confirmação disso quando, certa vez, na casa de cômodos em que morava, dizendo-o ao encarregado que trabalhava na redação do O Globo, vi o pobre homem esbugalhar muito os olhos, olhar-me de alto a baixo, tomar-se de grande espanto como se estivesse diante de um ente extraordinário. As raparigas que residiam junto a mim, lavadeiras e costureiras, criadas de servir apelidaram-me "o jornalista", e mesmo quando vieram a ter exato conhecimento da minha real situação no jornal, continuei a ser por esse apelido conhecido, respeitado e debochado.

Fiquei enervado de orgulho pueril, tratando toda a gente com um desdém sobranceiro, sentindo-me tocado, atingido por um pouco de grandeza que cabia ao dr. Loberant, ao Losque e ao inimitável Floc.

Depois de acobardado, tornei-me superior e enervado e não tentei mais mudar de situação, julgando que não havia no Rio de Janeiro lugar mais digno para o genial aluno de Dr. Ester que o de contínuo numa redação sagrada. Não estudei mais, não mais abri livro. Só a leitura d’O Globo me agradava, me dava prazer. Comecei a admirar as sentenças literárias do Floc, a pilhérias do Losque, a decorar a gramática homeopática do Lobo e a não suportar uma leitura mais difícil, mais densa de idéias, mais logicamente arquitetada, mesmo quando vinha em jornal. Era pesado e...

Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pequena consciência jornalística para meu uso. Julguei-me superior ao resto da humanidade que não pisa familiarmente no interior das redações e cheio de inteligência e de talento, só porque levara tinta aos tinteiros dos repórteres e dos redatores e participava assim de um jornal, onde todos têm gênio. Os contínuo, os revisores, os caixeiros de balcão, o gerente, os redatores, os homens das máquinas, os tipógrafos, os agentes de anúncios, todos têm gênio, muito gênio mesmo, quando de sobra não têm também muito espírito, muito mesmo! Aquela casa, como todas do seu feitio, em que se fabricam novidades para o público, era uma colmeia de gênios. Colmeia é bem o termo porque era pequena e acanhada. Os redatores escreviam uns em cima dos outros; na revisão, que ficava misturada com a composição, não se podia andar; e pela noite os bicos de gás sem vidros iluminavam tudo aquilo lobregamente, com grandes hiatos de sombras como um porão de navio. Pela sala em que esses dois departamentos funcionavam, flutuava um forte odor de urina, desprendido de um mictório, que existia entre duas caixas de tipografia. No dia que notei isso, não fazia oito, que um artigo furioso atacava o governo pelas más condições higiênicas do Hospício Nacional de Alienados.

Quando se tratava de per si com qualquer dos empregados do jornal, ficava-se admirado que a folha se imprimisse e se escrevesse diariamente. Floc tinha em pouca conta Losque: um bufão, dizia ele; Bandeira desprezava Floc: um eunuco; e todos como que pareciam querer entredevorar-se até aos ossos. Entretanto, quando um fazia anos, a seção competente gemia e os adjetivos mais ternos e mais camaradários não eram poupados. De seção para seção, a guerra era terrível. A revisão dizia que a redação era analfabeta; a tipografia acusava ambas de incompetentes; e até a impressão que não lia nem via originais tinha uma opinião desfavorável sobre todas três.

A redação não perdoava a menor falha da revisão. Às vezes, eram os originais defeituosos; em outras, havia descuido ou a pretensão fazia emendar o que estava certo; mas sempre as reclamações choviam por parte dos redatores, dos colaboradores e dos repórteres.

Um caso curioso deu-se com um artigo de Aires d’Ávila. Na sua cantilena diária, o paquidérmico plumitivo tinha escrito "pesados 200$000 impostos pelo Congresso", mas, passando de uma linha para outra, cortara a quantia pelo cifrão, sem o qual, a revisão e a tipografia entenderam: "200 ovos postos pelo Congresso". Ávila às nove horas da manhã veio ao jornal furioso, com as banhas agitadas, todo ele nervoso de pasmar, pois sempre me pareceu sem nervos. O que tinha sido uma simples obra do acaso, atribuía-a ele uma canalhice da revisão, uma pilhéria de mau gosto.

De tarde o chefe da revisão foi chamado, quis explicar o "gato"; mas a nada se atendeu e houve algumas demissões. Não eram raras aliás. No jornal, há-as de mês a mês; por dá cá aquela palha, o diretor ou o secretário demite, suspende, multa nos ordenados. Daí vem o terror dos subalternos, a lisonja, o respeito religioso de que são cercados. Entretanto, quantas vezes se não lêem acres censuras ao Ministro que demitiu este ou aquele funcionário, por motivo em geral mais plausíveis!

Unicamente Michaelowsky não fazia carga sobre a revisão. Para ele, tanto se lhe dava sair "nós fomos" como "nós foi". Não tinha nenhum amor pelos escritos; eram como cutiladas, tanto fazia matar, ferindo no pescoço como rachando a cabeça meio a meio. O que ele queria era matar, ferir, golpear: a maneira pouca se lhe dava. E era uma felicidade para a revisão que ele pensasse assim. No jornal, só o russo tinha prestígio e iniciativa. Os outros curvavam-se servilmente ao diretor. O que não seria se o doutor em exegese bíblica tivesse os cuidados puristas do Oliveira, que reclamava um "propositalmente" por propositadamente! Toda a sua gramática estava aí. Ele conseguira saber que "propositalmente" não era aconselhado pelo Rui e ai do revisor que deixasse escapar um na sua seção! O próprio Loberant, tão ignorante como o Oliveira, péssimo escritor, tinha fúrias extraordinárias quando lhe trocavam uma palavra no luminoso artigo. Diariamente, mesmo quando não escrevia, corria o jornal de manhã, de princípio ao fim, auxiliado pela mulher, para descobrir erros segundo a gramática do Lobo. Graças a leituras das "sorites" do esquálido gramático, Loberant julgava-se um purista; demais, ele sempre tivera culto pelo dicionário, pelo purismo. Era um gosto ver surgir nos seus artigos-descomposturas, termos, catados ao Morais e ao Domingos Vieira. E essa sua crença de purista e cultor da língua, juntara-se com o tempo, a de ser também um grande homem, um messias, um homem providencial. Com cuidado e atilamento, afastara do jornal toda e qualquer pessoa de mais talento que ele. Proprietário da folha absorvera-a toda em si: os artigos, a criação das seções, as referências elogiosas, as "cavações", tudo só se fazia com sua audiência e aprovação. Ele pairava sobre o jornal como um sátrapa que desconhecesse completamente qualquer espécie de lei, fosse jurídica, moral ou religiosa. Não havia regulamentos, praxes; o jornal era ele e a coerência de suas opiniões vinha dos impulsos desordenados de sua alma, que o despeito agitava em todos os sentidos. No curto prazo de uma semana, o seu jornal atacou, elogiou e qualificou herói o Ministro da Guerra; e nenhum dos três artigos saiu da sua pena; foram escritos à sua ordem pelo Adelermo Caxias, que se gabava de honestidade intelectual. Na redação era assim: escrevia-se, mediante ordem do Diretor, hoje contra e amanhã a favor. Floc, entretanto, gabava-se de ter autonomia nos seus artigos. Eram puramente literários, ou tinham esse propósito, e, à luz da inteligência de Loberant, era-lhe perfeitamente indiferente que o naturalismo fosse elogiado e o nefelibatismo detratado; que a Academia de Letras tivesse referências elogiosas ou recebesse epigramas acerados. Floc era contra a Academia, contra os novos, contra os poetas, contra os prosadores; só admitia, além dele, com a sua obra subjacente, que se juntassem e fizessem versos, certos rapazes de sua amizade, bem-nascidos, limpinhos e candidatos à diplomacia. Confundia arte, literatura, pensamento com distrações de salão; não lhes sentia o grande fundo natural, o que pode haver de grandioso na função da Arte. Para ele, arte era recitar versos nas salas, requestar atrizes e pintar umas aquarelas lambidas, falsamente melancólicas.

Na crítica, tinha-se na convicção de um fazedor de poetas, um consagrador de reputações; com aquele endosso da firma burlesca - Floc - o autor que lhe recebesse elogios, passava imediatamente para o Larousse. Ignorante, insciente, com uma leitura de pacotilha, não se animava a desenvolver qualquer teoria, a ter um ponto de vista qualquer; bordava umas banalidades - "uns deliciosos momentos de gozo estético deu-nos, etc.; a sua alma vibra e palpita, etc."

Com isso, e repetidos elogios aos outros jornalistas, adquiriu ele uma linda reputação e um grande prestígio de talento e de artista. Quando se suicidou (oh! como isto é triste de recordar!), quando se suicidou fui-lhe ver os livros; lá havia a Grande Marnière, de Ohnet; Je Suis Belle, de Victorien de Saussay; uns volumes de Bourget, alguns de Maupassant, nenhum historiador, nenhum filósofo, nenhum estudo de crítica literária, mas dez de anedotas literárias de autores de todos os tempos e de todos os países. A sua crítica não obedecia a nenhum sistema; não seguia escola alguma. O único critério era as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e a condição social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade, se eram "limpos"; detratava se não eram. Tinha dois princípios: a aristocracia da arte e a fulminação dos nulos. Entendia a seu modo aristocracia da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como ele, cujo pai tivera na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa.

Uma tarde, chegou à redação com uma plaquette, impressa em Portugal, tendo por título - Coração Magoado. Encontrando Leporace, mostrou-lhe a brochura:

— Conheces?

— Não. Deixa-me vê-la.

Leporace quis dar à sua fisionomia baça, aos músculos inexpressivos de sua face, uma expressão de finura, de atilamento particular de entendimento. Leu o título, o nome do autor, folheou o livro e perguntou:

— Quem é Odalina?

— Uma poetisa portuguesa de muito talento... Está de passagem e vem tratar de uma revista - O Bandolim... Os versos são líricos, mas de uma pureza de sentimento e cheios de um acento pessoal de encantar... Eu não gosto da arte pessoal; a arte (tomou outra atitude) deve refletir o mundo e o homem, e não a pessoa... Penso com o Flaubert... Vê só este:

Meu coração por desgraça

Entrou no meu pensamento

É como crime de faca

Que nunca tem livramento.

— Notaste, acrescentou ao terminar a leitura, como está bem aproveitada a devida cadência da trova popular para exprimir um alto conceito filosófico? Ela quer dizer que o seu, a perigo sua inteligência é perturbada pelo Amor, pelo sentimento... E como ela compara bem com um dizer popular, essa coisa alta e transcendente! O livro é notável... Vê só esta quadrinha, que perfeição! Quanta emoção há nela! Ouve:

Quem tem amores vai dormir

Na porta do seu amor

Das pedras faz cabeceira

Das estrelas cobertor.

Leporace pediu de novo o livro e pôs-se a folheá-lo, lendo aqui e ali. Não teve uma palavra para dizer, descansou o livro e perguntou:

— Quem te apresentou?

— O Raul de Gusmão.

— O Raul! Com mulheres! É casada?

— É, com o Visconde de Varennes, um fidalgo francês.

— Olá! Deve ser uma grande família, nobreza antiga... O nome é histórico, rematou Leporace satisfeito por ter encontrado uma observação a fazer.

— Não sei se é.

— O marido veio com ela?

— Não. Ela vive separada do marido...

— Ahn! Vais escrever sobre ela, não?

— Naturalmente.

E os dois sorriam: Floc cheio de satisfação, recordando vagamente as mulheres já gozadas; Leporace com um evidente travo de amargura nos lábios. O crítico preparava-se para se pôr à mesa, quando entraram o doutor Loberant e Michaelowsky. O diretor vinha com a fisionomia alegre. Floc e Leporace, este mais que aquele, acolheram com as grandes mostras de respeito de sempre a presença do dr. Ricardo Loberant. O desbotado secretário deu-lhe conta das recomendações do dia seguinte. Tinha posto mais uma "brotoeja" contra o Prefeito e fizera escrever um solto combatendo o empréstimo da Prefeitura; e, se não saíra a "porrada" na gente do Paraná, fora porque o vira a conversar com o Chavantes.

— Ora, "seu" Leporace! exclamou o diretor. Que é que tem isso! O jornal é uma coisa e eu sou outra...

— Pensei...

— Bem... Foi bom... Mas não me deixe de bater na Prefeitura... É um escândalo! Uma vergonha! Só o Machado vai ganhar mil contos... Embirro com esse Machado... Um tratante que não me cumprimenta... Ainda se fosse outro, vá! E não é isso; é um nulo, um título desvantajoso, e que juro!... Não o deixem, não o deixem; havemos de ver se o O Globo vale ou não vale...

E o diretor rematou as suas recomendações com um baixo palavrão insultuoso. Floc e Leporace tinham ficado a ouvir o venerável diretor; Michaelowsky, sentado, fumando, estivera a ler o livro da poetisa portuguesa.

— De quem é isto? perguntou.

— É meu.

— É o autor que pergunto.

— O autor! É uma fidalga portuguesa...

— Livra! São versos de folhinha...

— De folhinha!

— De folhinha, sim. Este aqui. "Quem tem amores vai dormir" - é "verso" de hoje até!

— Não é possível! Não é possível! reclamou o crítico literário.

— Queres ver? Caminha, gritou o russo para mim, traze-me aí o "verso" de hoje.

Procurei-o nos papéis de uma cesta e entreguei-o ao redator poliglota. O estrangeiro passou os olhos no papelucho e entregou-o ao Floc. O oráculo artístico do jornal correu rapidamente os versos e confessou: é verdade, acrescentando - que cinismo! mas sem convicção nem indignação.

O Diretor tinha entrado para o gabinete seguido de Leporace e nenhum dos dois ouvira o breve diálogo trocado na sala entre os dois redatores. De repente, com aquela sofreguidão que lhe era peculiar e que ele punha nos atos, nos afetos e nos seus medíocres artigos, chegou-se à porta e perguntou ao Floc:

— Vi esse tal Andrade na rua... O jornaleco dele ainda continua a sair?

— Penso que sim.

— Tens lido?

— Às vezes.

— Continua a insultar-me?

— Sempre. E acrescentou: o dr. se incomoda com o que diz esse vagabundo?

— Não... Ora! Mas... Deixa estar que ele há de precisar de mim, há de cair em alguma; então veremos... Não se esqueçam dele, quando for ocasião, casquem... Patife!!!

E passou por mim ainda com os dentes rilhados, cheio de raiva, desabotoando a braguilha, apressado para o mictório, olhando para o lado em que eu estava, como querendo dar a entender que ele era forte, muito forte, e havia de esmagar um dia aquele pigmeu que ousava pôr-se diante do seu caminho triunfante, atirando-lhe alfinetadas com uma cômica violência liliputiana. Havia de esmagá-lo, inutilizá-lo para sempre e fazê-lo sofrer eternamente o grande desaforo de o não supor Deus no "Domingo", a ele, doutor Ricardo Loberant, diretor-proprietário d’O Globo, jornal independente, órgão do povo e dos sofredores, pesadelo dos Ministros, espada de Dâmocles suspensa sobre a tríade política e administrativa da República. E ele tinha razão.

O terror, que inspirava dentro do jornal, irradiava para fora. Aquele homem magrinho, fraco de corpo e de inteligência, sem cultura, amedrontava a cidade e o país. Todos o cortejavam; os colegas que o combatiam, evitavam feri-lo de frente. Um ou outro, num momento de desespero, tinha a coragem de enfrentá-lo; mas era num momento de desespero. Armados, cercados de todos os lados, tinham uma convulsão e atiravam-se, desferindo golpes para a esquerda e para a direita. Se porventura algum era mais certeiro e parecia esmagar o dr. Loberant, ficava-se pasmado que se desse o contrário. Longe de perder prestígio, esses ferimentos aumentavam-no. O povo não queria ver a sua ignorância, a sua inabilidade no escrever; era valente e dizia a verdade. Houve uma polêmica sobre um trabalho de limites em que o seu desconhecimento da geografia pátria ficou patente; o jornal foi mais lido. Em outra vez, deu como tendo feito oferecimentos a conventos do Brasil, reis da dinastia de Borgonha; recebeu uma ovação. De dia para dia o jornal crescia em venda. Todos o liam; era o jornal dos desgostosos, dos pequenos empregados, dos ratés de todas as profissões e também dos ricos que não podem ganhar mais e dos destronados das posições e das honras. Na venda avulsa, nenhum o excedia, nem o próprio Correio da Manhã. Só o Jornal do Brasil se mantinha emparelhado com ele, e a rivalidade era acesa. Julgando que a prosperidade do outro era devida aos bonecos, Loberant punha na sua folha bonecos. Parecendo-lhe que isso não era o bastante, forjava anúncios, "calhaus", calhaus de "precisa-se", de "aluga-se", de pequenos anúncios que, em abundância, parecem ser o índice da prosperidade de um jornal. Mas não contente com esses expedientes todos, um dia o doutor Loberant, supondo a popularidade do rival devido à falta de gramática nos artigos, chegou à redação furioso e, com o seu modo habitual, berrou:

— Não quero mais gramática, nem literatura aqui!... Nada! Nada! De lado essas porcarias todas... Coisa para o povo, é que eu quero!

O Lobo, que estava na sala, teve em começo um grande olhar de tristeza com que envolveu toda a sala e a coleção de jornais dependurados pelas paredes. Depois de um momento de hesitação, tomou coragem e observou:

— Mas, dr...

— Ora, Lobo! Já vem você...

— Mas, dr., a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que o seu jornal contribua para corrupção deste lindo idioma de Barros e Vieira...

— Qual Barros, qual Vieira! Isto é brasileiro - coisa muito diversa!

— Brasileiro, doutor! falou mansamente o gramático. Isto que se fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de imundícies. Se frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões... Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada...

Loberant não ficou calado com a exortação do gramático. Manteve a ordem que lhe parecia necessária para o aumento de alguns milheiros na venda de sua folha. Conquanto afetasse desprezo pela literatura, ele não deixava de ter pretensões a intelectual. Com a prosperidade do jornal, a sua pretensão aumentava. Julgava-se um Patrocínio, um Ferreira de Araújo, um Bocaiúva; embora não escrevesse com destaque, ele ia buscar o seu parentesco espiritual em Rochefort, Luís Veuillot e outros nomes de jornalistas estrangeiros de que tinha informações.

O seu gabinete era alvo de uma peregrinação. Durante o dia e nas primeiras horas da noite, entrava toda a gente, militares, funcionários, professores, médicos, geômetras, filósofos. Uns vinham à cata de elogios, de gabos aos seus talentos e serviços. Grandes sábios e ativos parlamentares eu vi escrevendo os seus próprios elogios. O leader do governo enviava notas, já redigidas, denunciando os conchavos políticos, as combinações, os jogos de interesses que se discutiam no recesso das antecâmaras ministeriais. Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amigos, vinham ao jornal denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais.

Cada qual mais queria, ninguém se queria submeter nem esperar; todos lutavam desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de cerimônias, nada de piedade; era para a frente, para as posições rendosas e para os privilégios e concessões. Era um galope para a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e inimigos, parentes e estranhos. A república soltou de dentro das nossas almas toda uma grande pressão de apetites de luxo, de fêmeas, de brilho social. O nosso império decorativo tinha virtudes de torneira. O encilhamento, com aquelas fortunas de mil e uma noites, deu-nos o gosto pelo esplendor, pelo milhão, pela elegância, e nós atiramo-nos à indústria das indenizações. Depois, esgotado, vieram os arranjos, as gordas negociatas sob todos os disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria política, a mais segura e a mais honesta. Sem a grande indústria, sem a grande agricultura, com o grosso comércio nas mãos dos estrangeiros, cada um de nós, sentindo-se solicitado por um ferver de desejos caros e satisfações opulentas, começou a imaginar meios de fazer dinheiro à margem do código e a detestar os detentores do poder que tinham a feérica vara legal capaz de fornecê-lo a rodo. Daí a receptividade do público por aquela espécie de jornal, com descomposturas diárias, pondo abaixo um grande por dia, abrindo caminho, dando esperanças diárias aos desejosos, aos descontentes, aos aborrecidos. E os outros jornais? Nos outros o suborno era patente; a proteção às negociatas dos dominantes não sofria ataques; não demoliam, conservavam, escoravam os que estavam.

Loberant sabia o segredo do seu sucesso e velava pela folha com cuidados especiais. Diariamente lhe vinham informações sobre a venda avulsa, sobre o movimento de anúncios. Se decaíam um pouco, logo procurava um escândalo, uma denúncia, um barulho, em falta um artigo violento fosse contra quem fosse. Havia na redação farejadores de escândalos; um, para os públicos; outro, para os particulares. Este era o mais interessante. Tinha uma imaginação doentia; forjava coisas terríveis, inventava, criava crimes. Eram cárceres privados, enterramentos clandestinos, incestos, tutores dolosos, etc.

Porém, os grandes escândalos, os grossos, as ladroeiras públicas eram denunciadas pelos próprios funcionários desgostosos, por políticos pedichões e não satisfeitos e pelos próprios subornados. A venda cresceu sempre, mas com todos esses alvitres houve um momento em que estacionou. Loberant encheu-se de temor, carregou mais nas descomposturas, começou a implicar com o chefe de polícia; mas nem assim subia. Uma frase equívoca que lhe saíra da pena, determinou o aparecimento de um "apedido" no Jornal do Comércio, denunciando-o como inimigo da colônia portuguesa, tanto assim que não tinha um português na redação da sua gazeta. Foi Aires d’Ávila quem leu o "apedido" e o mostrou ao diretor. Era hábito de muitos anos, depois de ver o palpite do bicho correr os "apedidos" dos jornais e lê-los atentamente. Ali, ele procurava caminho para as "cavações", informava-se das reputações, preparava os "ganchos". Loberant, quando teve notícia da mofina, considerou bem a falta e pediu o alvitre do Floc.

— Conheces aí algum capaz?

— Qual, não há!

— Como poderíamos arranjar um português para redator, dize lá?

Anos mais tarde, ele não teria dificuldades.

— Encomenda-se a Portugal.

E fui eu encarregado de levar o telegrama ao submarino. Não se tratava já de um redator; pedia-se a uma livraria de Lisboa um redator e dois correspondentes literários. Nos dias seguintes, era o seu primeiro cuidado indagar se já tinha chegado a resposta. Veio afinal. Os correspondentes já estavam arranjados, mas não havia quem quisesse vir. Iam ver. Dias depois, ao abrir a correspondência, Leporace deu com a resposta de Lisboa e correu alvissareiro para o diretor.

— Cá está ele... Está arranjado...

— O quê?

— O redator português.

— Ahn!

E leu o telegrama. Embarcaria no primeiro paquete. Era espirituoso, entendido em coisas portuguesas e queria setecentos mil-réis fracos. Aceitou e nesse sentido telegrafou para Lisboa. Quando voltei da Western, Pranzini, o gerente, entrava na redação. Chegava com o sobrecenho carregado e os olhos fuzilando indignados. Pranzini era o cão de fila do diretor. O cofre e a economia do jornal estavam-lhe inteiramente entregues. Ele pagava e recebia, depositava dinheiro, arbitrava os preços da matéria paga. Todos estavam debaixo da sua tirania; precisavam adulá-lo, animá-lo, e ele abusava extraordinariamente dos grandes poderes de que estava investido. Ficava-lhe bem a função. Era cúpido, metódico, organizado. No jornal, vivia sempre em mangas de camisa e a fieira dos botões do colete não se afastava nunca do eixo do peito. A fisionomia era larga e dura; grandes faces assimétricas, queixo forte e quadrado, pouco distinto do maxilar, uma grande dificuldade em sorrir. Aquela inteligência rudimentar de aldeão italiano tinha finuras de doutor da escolástica. Certa vez furtou-se ao pagamento de uma comissão do anúncio de uma casa, sob o pretexto de que a autorização falava em "Bal Masqué" e o nome do estabelecimento era "Au Bal Masqué". Murmurava-se no jornal que ele desviava um pouco as rendas do diretor, mas dizia-se também que este não se importava porque assim indiretamente pagava as doces intimidades com a mulher do italiano, uma pequena mulher, coberta de um pêlo fino e abundante, de carnes duras e grandes ancas provocadoras. Filha de um usuário vaidoso que vivia pelos corredores do Paço a implorar um título nobiliárquico, conta-se que, desflorada por um dos netos do Imperador, foi casada precipitadamente com Pranzini, ex-croupier de casa de jogar, para salvar a reputação da família e evitar um grande escândalo público. O antigo croupier, graças ao dote, fez-se em breve cavalheiro da nossa alta sociedade e, aos poucos insinuou-se nos jornais e foi chamado pelos entrelinhados "nosso colega da imprensa". Logo que o gerente se aproximou do diretor, este disse-lhe prontamente:

— Sabes, Pranzini? Temos um homem... De Lisboa chegou-nos a resposta.

— É bom... Vocês sabem, sem português, nada aqui vai adiante. Os patrícios exigem, é justo: eles são talvez trezentos mil, pagam rios de dinheiro em anúncios - é justo!

Depois tomando outro tom de voz falou assim ao diretor:

— Tenho aqui este vale para o senhor visar.

— Eu já disse a você que não é preciso...

— Não é isso. É que com este tive dúvidas. Tratava-se de um artigo que não saiu assinado. Não parecia ser colaboração e eu...

— De quem é o vale?

— Do Veiga Filho.

— De que artigo?

— Um sobre o Teixeira de Almeida.

— Mas o quê! exclamou o diretor. Pois se foi ele próprio que pediu para escrevê-lo, dizendo-me que tinha sido colega de escola do homem, como é que cobra?... Enfim deixa-me vê-lo.

O doutor considerou bem o pedaço de papel que tinha na mão, abanou a cabeça e veio dizendo:

— Esses literatos! Livra! Até as lágrimas cobram.

Floc nada dissera. Evitava fazer qualquer crítica ao mestre incomparável da nossa língua. Losque, tendo deixado de escrever, meteu-se na palestra. Tinha a mania do "espírito"; mas não era propriamente espírito que ele queria ter. A sua mania era ser um ironista, à moda inglesa - um humorista. Fazia de si um retrato de Sterne, de Lamb, de Swift; embora não soubesse uma linha de inglês filiava a sua graça, o seu feitio de rir, no gênio britânico. Não é que isso, de fato, houvesse nele; faltava-lhe na ironia o imprevisto, o alcance moral e filosófico, aquela meditação por absurdo que Taine achou em Swift. Ele tinha a graça fácil dos pequenos autores e muitas das suas boutades tinham origem nos autores portugueses e franceses de segunda ordem. Não era uma atitude de pensamento, um estado d’alma constante, um julgamento sobre os homens e as coisas: era uma profissão, um ganha-pão, que ele executava automaticamente.

Adaptável, sem rebeldia nem independência de caráter, escrevia pilhérias como um amanuense faz ofícios. Nunca tinha escrito obra de vulto, a não ser uma novela de calembourgs, em que explorava esse velho filão do roceiro acanhado. Combinava a sua intensidade pilhérica com a de escritor de estirados artigos sobre a crise do açúcar e o policiamento da cidade. Era autor de várias revistas, com algumas pilhérias novas e bem achadas. Sem ser moço, não era velho e ia fazendo a sua carreira nos jornais com vagar e submissão, tendo já uma vaga reputação no seio do público. Sabendo da vida de todo o mundo, inventando mesmo, quando os dados lhe faltavam, punha um grande esforço, uma nota de arte no cultivo da maledicência, da "trepação". Diariamente estudava assuntos, organizava pilhérias e logo que o momento se oferecia desandava. Viera disposto nesse dia. Ao entrar, enquanto Leporace conversava na sala, pusera-se a escrever a sua celebrada seção - "Pulgas e Brotoejas" - constantemente cheia de alusões, de ditinhos, de versos aos políticos, em que ele gastava uma certa dose de talento, já um tanto diminuído pelo automatismo adquirido. Acabando de escrever a seção, procurou um rodeio e dirigiu a conversa para o ponto que queria:

— De fato este Rio tem coisas bem singulares. Vocês conhecem a viúva Pais Brandão?

Nem todos responderam, mas Leporace que se gabava de conhecer toda a cidade - as ruas, becos, segredos - acudiu prontamente:

— Ora! Como não? Uma loura de forte nariz romano, que anda sempre de preto? Ora, muito!

— É essa mesma. Mora num palácio na rua das Laranjeiras...

— Mas que tem ela? indagou Floc.

— É um caso curioso.

Leiva veio interromper a conversa. Há dias que ele estava no jornal, fazendo polícia. Sabendo que eu me fizera contínuo, começou a procurar-me e por aí foi travando relações, "engrossando" habilmente, até que um dia entrou como repórter e começou a gritar comigo para que eu lhe trouxesse penas. Losque continuou:

— Passa por séria, por ser um poço de virtudes. Ninguém se anima a requestá-la. O rosto é de Messalina, mas a alma é de Cornélia; entretanto...

Calou-se um pouco, suspendeu o auditório, para obter o efeito desejado.

— Mas é curioso, continuou devagar; é curioso que o seu egoísmo familiar a tivesse levado tão longe.

— Por quê? perguntou alguém.

— Por quê!? Porque vive em mancebia com o sobrinho e com o filho.

Os circunstantes não se espantaram; sorriram incredulamente.

— Qual! fez um.

— Engraçado, aduziu sem ir de encontro à dúvida geral, é que ela não pode suportar um só! Hão de ser os dois, juntos, um do lado esquerdo e outro do lado direito... Disse-me a Fulgência, que foi lá criada, que uma noite, não vindo um deles, ela a passou toda na sala de jantar chorando e arrancando os cabelos.

— É um caso curioso de psicopatia sexual, falou Loberant. Em Londres, há casos especiais quase em gênero semelhante; mas ao contrário: é um homem para duas mulheres, parentas próximas, irmãs, mãe e filha; mas como este não conhecia... Mas quem te informou, Losque?

— Uma rapariga que é minha criada, e foi da viúva. É maravilhoso! Que revulsão na alma! Que móveis íntimos a levaram a isso! Que forte ideal amoroso não encontrado foi esse que a obrigou a arruinar dois rapazes para satisfazê-lo!

Leporace então observou:

— Esta sociedade está muito corrupta.

Michaelowsky entrava e ainda ouviu as palavras do secretário. Parou um instante, concertou os óculos de aros de ouro e exclamou com malícia:

— Oh! Catão!

— Não sou Catão, mas o que há por aí, pelos bastidores, causa espanto. A sociedade, ao que parece, despenha-se...

— Sempre houve quem dissesse isso, objetou o russo. Se examinares os satíricos de todos os tempos, eles te revelarão a sociedade sempre corrupta e desbocada... Eu julgo a moral impossível!

— Por quê?

— Porque é feita para diminuir em nós o que é de mais estrutural e de mais profundo: a individualidade, o prazer e os instintos!

— Mas a sociedade precisa repousar nela; senão... disse Leporace.

— Não há dúvida!

— Então concordas que, em face da própria sociedade, nós nos devemos esforçar por justificar as regras morais, manter sempre de pé os seus preceitos.

— Mas se têm sido inúteis todos os esforços das religiões - a força mais poderosa para uma modificação inteira do indivíduo, como havemos de consegui-lo? Demais... demais, para quê?

— Para eternidade da espécie, falou com ênfase Leporace.

— Valeria a pena? retrucou Michaelowsky.

E todos se calaram sem achar de pronto uma resposta cabal.