Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXV
O estimarem-se as cousas, que não têm valor, é o mesmo que fazê-las estimáveis: o que se busca com ânsia, não é o que se dá, mas o que se nega; o que se permite desgosta, o que se refusa, atrai: o amor não tem seta mais aguda, que aquela que se armou de proibição; no tomar, parece que há mais gentileza, que no aceitar; a dificuldade incita: muitas cousas não têm outro algum merecimento, que o serem dificultosas; a resistência é o que move a vontade; tudo o que se concede, é sensabor; a impugnação faz a cousa considerável, porque lhe dá um ar de empresa, e de vencimento: os mais altos montes são os que se admiram, só porque custam a subir; a facilidade é aborrecida em tudo; o lustre do argumento vem da contradição. Isto sucede à fermosura, a quem a vaidade prendeu só por livrá-la do amor; mas que pouco conseguiu a vaidade! Contra o amor não há poder, apenas se pode impedir algum dos seus efeitos: a causa, isto é, o amor, sempre permanece constante; a dificuldade, o retiro, e a prisão fazem, que a fermosura seja mais bela, e mais amante; a natureza por achar desvio, não se despersuade; a nossa indústria não a pode vencer; antes o mesmo é impedi-la, que enchê-la de estímulo, e de alento; quanto mais a abatemos, mais a fortificamos; é engano parecermos, que podemos tirar-lhe os meios; por um que lhe tirarmos, ela se há-de formar mil; primeiro se há-de acabar em nós o modo de embaraçar, que nela o modo de conseguir; quanto mais a queremos ter adormecida, mais a despertamos; o buscar artifícios para a sossegar, é o mesmo que chamá-la para o conflito; o mesmo é reprimi-la, que irritá-la. As águas de uma fonte correm mansamente, e sem ruído, apenas humedecem as flores, que lhe bordam o caminho; mas se neste encontram embaraço, ou se algum penedo, que o tempo arrojou do monte, se foi atravessar, e impediu o passo; então se vê que aquelas águas, vão crescendo sobre si, e juntas se acumulam tanto, que ou rompem, e arrastam tudo o que as comprime, ou subindo se elevam de tal sorte, que chegam ao lugar, de donde por mil partes se lançam, e precipitam. Isto vemos nas águas de uma fonte, donde não concorrem mais motivos, que aqueles que em um corpo fluido procedem do peso, e do equilíbrio. Só nas mulheres não queremos achar naturalidades; prendem-se porque são mulheres, como se quando vêm ao mundo, trouxessem na razão do sexo escrita a condenação; e que a fermosura só lhes fosse dada para regular-lhes os graus de desventura. Quem diria aos homens, que as mulheres sendo compostas de uma matéria frágil, e propensa, podem espiritualizar-se em forma, que todas se convertam em discurso racional? Trabalhe embora o ciúme, e juntamente a vaidade; o ciúme em procurar que a mulher se não incline, e a vaidade em prescrever documentos à beleza, para que não ame sem certas proporções, e identidades; nem o ciúme, nem a vaidade hão-de alcançar aquele intento; o amor não admite força, nem império; ninguém ama, nem desama por preceito. Quem há-de tirar o gosto, que a alma sente, quando os olhos, ou o pensamento lhe mostram um objecto lisonjeiro, e agradável? Como se há-de fazer, que a boca seja insensível ao sabor de um manjar delicioso; e os ouvidos como podem deixar de suspender-se ao som de uma voz sonora, e cheia de harmonia? As primeiras qualidades não se podem mudar. Não podemos dar leis às cousas, ao exterior delas, sim; as palavras, e as acções admitem composição, e fingimento, a substância delas, não; por isso não é fácil desaprovar, o que os sentidos aprovam. Quem há-de reduzir a fermosura a crer, que deve fugir de quem a busca, e que deve querer mal a quem lhe quiser bem?