Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXVI
Oh quantas vezes um pretexto divino serve para autorizar humanos interesses! As cousas mais santas sabem os homens aplicar a fins os mais injustos: qualquer sem-razão para ser permitida, basta que seja necessária; o ponto é, que haja quem saiba introduzir a necessidade dela: os princípios mais inalteráveis se alteram; o ponto é que o interesse, ou a vaidade sejam partes. As regras não governam aos homens, estes é que governam as regras. As leis não compreendem ao legislador, nem aos que estão junto dele; as prerrogativas do poder parece, que são comunicáveis até uma certa distância; daí para baixo ficam sendo como uma luz, de que se acabou a esfera. Só nos efeitos visíveis da Omnipotência não vemos, que nenhum se mude, nem altere; o movimento dos astros, o progresso do tempo, a regularidade das águas, tudo guarda uma ordem certa, e infalível: o Artífice supremo não comunica o seu poder, mais do que a si mesmo, isto é, à sua providência; por isso as leis, que ele ideou no princípio, e antes dos séculos, são as mesmas que subsistem hoje. Quem viu ainda, que houvesse dia em que as águas não crescessem, e baixassem? Que o Sol se apartasse do Zodíaco, que a Lua deixasse as suas fases, que as Estrelas fixas variassem e que o firmamento não circunvolvesse em vinte e quatro horas o universo? Quem há que não admire as sucessões do tempo nas estações do ano, a vegetação da terra, a produção dos animais, a dureza das pedras, a virtude das plantas, a variedade das cores, o cheiro dos aromas, o encanto das vozes, os impulsos da atracção, do repouso, e do movimento? Finalmente todas as cousas ainda observam o mesmo ser original, a mesma correspondência, e a mesma economia, com que o Autor do mundo as fez: tudo o que foi de instituição divina, e que não depende da execução dos homens, permanece sem alteração; aquilo porém, que tem com os homens alguma relação, ou dependência, ficou, e está sujeito a uma contínua mudança, e contrariedade. As leis primitivas, que ainda antes de serem gravadas em mármore, e em tábuas, foram, e estão escritas nos corações, essas são as primeiras, que segundo as contingências, para se não guardarem, se interpretam. Daqui vem que nascendo todos livres, a liberdade é contra quem os homens têm conspirado mais. As Clausuras, que foram santamente instituídas, e praticadas prudentemente, depois não sei se vieram a degenerar em um modo de tirar-se a liberdade aos homens, e às mulheres, e nestas veio a cair o rigor do excesso; não falo das que por desengano, e conhecimento próprio, buscam aquele estado de virtude, mas sim daquelas a quem se fez tomar aquele estado, ou por castigo do que fizeram, ou por castigo do que poderiam fazer; e com efeito o poderem algum tempo delinquir, já lhes serve de delito; nelas o mal futuro, e incerto já se supõe presente; o poder algum dia suceder, vale o mesmo que o sucesso; a disposição para ser, é o mesmo que ter sido; a possibilidade é o mesmo que realidade; e desta sorte, aquele castigo, chega primeiro que o pecado, e aquela pena vem primeiro do que a culpa; o suplício antecede o crime. Cruel cautela, vingança premeditada! A vaidade, e ciúme dos homens, parece que acusam as mulheres, ainda antes de nascerem; as mesmas partes são juízes; por isso logo vão prevenindo os cárceres, para donde destinam aquelas infelices, e para donde as conduzem, antes que elas se conheçam, e poucos anos depois que nascem: assim devia ser, porque sempre foi propriedade da vítima o ser inocente; ali se vão costumando aos ferros, à maneira de uma fera presa, que já não sente o peso da cadeia, antes com ela joga, e se diverte, à proporção que a arrasta, e move. Prendem-se as feras, e também se prendem as mulheres; aquelas por causa da braveza, estas por causa da mansidão; aquelas porque se enfurecem, estas porque se enternecem; aquelas porque assustam, estas porque agradam; umas porque é necessário fugir delas, outras porque é necessário que elas fujam; e finalmente umas porque matam, e outras porque dão vida. A prisão, com pouca diferença é a mesma, os motivos são contrários. Do fundo de um deserto inculto se vão desentranhar as feras; prendem-se para que não façam mal; este é o pretexto, porém a verdade é que se prendem as feras, para que sirvam de recreio, e também de lisonja à vaidade em ver sujeito por indústria, e arte, aquilo que senão sujeita por força, nem vontade. As mulheres que foram encaminhadas para os Claustros, é para que sigam neles o exercício das virtudes; este é o pretexto, porém a verdade comummente é para que as mulheres não se inclinem, nem amem desigualmente. O interesse é da vaidade; por isso as mulheres, que se oferecem a Deus por aquele modo, não se oferecem mais do que à vaidade. São, como oblações de engano, que sendo a aparência uma, o objecto é outro; e são como o incenso, que se faz arder em uma parte, para que o ar divirta o fumo para outra. Imaginam os homens, que hão-de enganar a Deus, e para isso, entram primeiro a enganar-se a si; começam a querer persuadir-se que obram bem, e se a consciência os contradiz, e inquieta, para a sufocar não faltam opiniões, doutrinas, e conselhos; tudo em ordem a que proposto o caso revestido de certas circunstâncias, fique parecendo lícita a impiedade, a transgressão, e a violência. A regra de que um mal é permitido para evitar-se outro maior, têm os homens estendido, e subtilizado tanto, que de ilação em ilação vêm a chegar ao ponto, que não há mal por maior que seja, que não seja tolerável; e da mesma sorte, de consequência em consequência vêm a concluir, que não há iniquidade que não seja às vezes necessária, nem injustiça, que não seja justa. Prendam-se pois as mulheres para que se evite o mal de que elas amem; sejam conduzidas por força para os Claustros, para que não suceda que as amemos nós; saiam do berço para aquelas sepulturas, porque pode haver perigo na demora; e assim conheçam a morte, antes de conhecerem a vida; e saibam como é a prisão, antes de saberem como é a liberdade.