Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXIX
Não são as ciências as que costumam pacificar o mundo; desordená-lo sim. O exercício, ou a vaidade das letras, toda se compõe de discussões, objecções, e dúvidas; a disputa em si é cousa mais principal do que a matéria da questão: alteram-se os ânimos, mas não se persuadem, porque não disputam pela razão, mas pela disputa; e esta se se acaba, é porque acaba o tempo dado para disputar; o relógio aparta os combatentes; estes separam-se, porém nenhum vai sabendo mais; porque como no argumento não buscavam a verdade, por isso esta sempre fica ignorada, oculta, e desconhecida; o ponto é, que fique satisfeita em um a glória de arguir, e em outro a vaidade de responder; e assim não se tratam as cousas, tratam-se as palavras delas; daqui vem, que o ficar vencido na forma, é o mesmo que ficar vencido em tudo; porque a substância é como cousa estrangeira, e indiferente. De dous textos contrários a fadiga que resulta, é ver, se há meio de os poder unir, e conciliar; que a razão esteja em um, e não em outro, isso importa menos; a arte está em subtilizar de sorte, que ambos os textos fiquem conservados, e que a nenhum se tire a sua autoridade magistral; tire-se embora a fé à verdade, e à justiça; porém não ao texto; este sempre deve servir de regra, por mais que seja regra errada, e não direita; o empenho da vaidade não está em descobrir a verdade, mas em ostentar v. g. uma erudição Rabínica, e mostrar que na língua Hebraica, a palavra alma nunca significou outra cousa senão virgem. Como a vaidade das ciências traz consigo um desejo imenso de adquirir nome, este parece que se adquire à força de vozes, e estas devendo ser de fora, costumam sair do mesmo sábio pretendido; ele é o que entoa o cântico, e sempre acha na turba quem o siga; na confiança de começar, encontra-se uma espécie de valor de que a fortuna se namora; a resolução de pegar nos louros, e nas palmas, faz parecer que são suas; há muito que as ciências têm o privilégio de poderem elas mesmas coroar-se a si; e com efeito o saber na realidade mais, ou menos, é segredo, que fica escondido; estamos pelo que indicam as insígnias; e nas letras, uma parte do que vemos, são edifícios vãos, compostos somente de soberbo frontispício; e este, por mais que inculque um fundo grande, quem lho busca, não o acha; por isso tem fechadas as portas; e se algum entra, é daqueles, que sabem o defeito, e têm interesse nele; os mais todos são profanos. A sabedoria humana é como a cortina do teatro; nela se vêem pintados primorosamente jeroglíficos, medalhas, inscrições, e atributos; e nesta variedade de acções, e de sujeitos, se suspende a vista; e o coração que admira, todo se deixa penetrar de um respeito, ou medo venerável; mas se algum impaciente, e indiscreto força a cortina, e entra, o que vê, é um lugar escuro, embaraçado, sem ordem, nem asseio; vê Actores ainda cobertos de roupas miseráveis; alguns, vestida a gala, e empunhado o ceptro (adornos alheios e supostos), vê chegados a uma luz desanimada, recordando de um papel imundo as palavras de que a memória se encarrega com trabalho; outros defronte de um espelho sombrio, exercitando a cadência dos passos, das acções, do gesto, e revestindo os semblantes de um aspecto alegre, ou triste, e de um ar de soberania, de valor, e de justiça; vê as Actrices, que não menos cuidadosas, ali mesmo se ajustam, e preparam; e que algumas apesar do tempo, e a milagres do artifício, cuidam que reparam em brevíssimos instantes, a ruína que fizeram muitos anos, semelhantes às serpentes quando se renovam, mas não tão felices; todas em um espelho portátil estudam amor, desdém, severidade, contentamentos, lágrimas; tudo aprendem no cristal, mestre mudo, e fiel, e que mudamente ensina a propriedade, o ar, a graça; mas que importa, o ar é vão, a graça é enganosa, e a propriedade é falsa; o representar é mentir; desde que a cena começa, até que acaba, não se vê mais do que um fingimento de acções, e de figuras; quem mais se distingue, é quem melhor exprime o que não sente, e quem parece melhor o que não é: a arte não está em imitar, mas em contrafazer: as sombras substituem o lugar das cousas; e a relação da história, fica sendo a história mesma; o mentir por aquele modo, é um meio fácil para imprimir facilmente na memória os sucessos passados; é uma tradição, que se comunica agradavelmente, não só pelo que se ouve, mas também pelo que se vê: alguma vez havia de ser útil o engano; e com efeito daquela sorte vemos os combates sem perigo; as virtudes vemos com gosto; e se vemos também os vícios, é sem entrar neles, para os aborrecer, pela fealdade com que se mostram, e não para os seguir. Em teatro maior, e em maior cena se passam, e representam as vaidades do mundo, e entre elas a vaidade das ciências; o homem não se entende a si, e cuida que entende a fábrica dos Céus; ignora a ordem da sua própria composição, e crê que não ignora o de que se compõe a terra; não sabe a economia dos seus mesmos movimentos, e julga que sabe o como se move o Universo; finalmente não se conhecendo a si, presume que tudo o mais conhece. A vaidade do saber parece que arrebata o homem, e que em espírito o faz circular os orbes celestes; lá conta o número dos cristalinos, vê a esfera do fogo, e mede a distância, o giro, e grandeza dos Planetas; porém assim que torna a si, nada do que tem em si sabe, nem conhece: vê um corpo sabiamente organizado, e nele acha vontade, inteligência, ira, aversão, vaidade, desejo, esperança, amor; acha um sangue que se move, e um calor que o anima; tudo distingue com nomes diferentes: paixões, sístole, diástole, espíritos vitais, húmido, radical; estes são os nomes, a que erradamente chamam das cousas, não sendo senão nomes dos efeitos; o que se conhece, ou sabe, é o efeito das cousas pela distinção dos nomes; mas o conhecer o nome, não é conhecer a cousa. Todos sentimos a impressão do ardor, mas ninguém sabe, o como essa impressão se faz; e desta sorte o que conhecemos, é o efeito do frio, e não o frio; vemos a determinação da vontade, mas não sabemos o como a vontade se determina. Quem é que sabe de donde vem o agrado da harmonia, nem o desagrado da dissonância? Uma voz suave nos encanta, um som áspero, e agudo nos molesta; mas quem há-de dizer o donde procede no som a suavidade ou a aspereza? Os efeitos mais sensíveis, e mais certos, são os da dor, e também do gosto; mas quem é o que conhece, de que se origina o gosto, nem de que se forma a dor? Ainda os efeitos das cousas conhecemos mal, só os sentimos; parece que só temos sensibilidade, e não conhecimento; aquilo que conhecemos, é porque o sentimos; do nosso sentir resulta o nosso modo de conhecer. Os primeiros princípios, e os primeiros movimentos reservou-os para si a Providência; o homem só ficou exposto a eles, para os admirar, e não para os saber. A vaidade das ciências toda se cansa em conjecturas, que faz passar por demonstrações; quando supõe, que encontra a parte, em que pode desatar o nó, então o aperta mais: os discursos perdem-se na imensidade vaga de uma matéria impenetrável; a natureza sabe eludir todos os nossos estudos, e conceitos; não é mais fácil no que mostra, do que no que esconde; não é menos reservada no que produz à superfície da terra, do que naquilo que forma no seu centro; só ela conhece as suas leis, e os seus segredos: vemos nascer a flor, cresce à nossa vista; mas nem por isso sabemos o como a flor nasce, nem o como cresce: a dificuldade sempre fica sendo a mesma; o nosso engenho todo se evapora, em belas fantasias, e em razões notáveis; mas estas só servem de enganar, ou de entreter a mocidade que começa, e que ainda não sabe por experiência, que a maior parte das cousas de que o mundo se compõe, nem se podem ensinar, nem aprender. A vaidade da sabedoria humana não se funda na certeza da ciência, mas na certeza da cadeira; esta à maneira de uma torre inexpugnável infunde terror; e o discípulo dócil, e inocente, recebe como de um oráculo as decisões do Mestre: os que estão debaixo da disciplina, vêem o barrete doutoral, como se fosse um resplendor, de cuja luz se não duvida; por isso a vaidade do Mestre exige respeito, e credulidade: esta é a primeira lição; a verdade sempre nos parece que está no lugar mais alto, e que brilha mais; e se a buscamos em outra parte, é sem ânsia, nem cuidado; o aparato exterior não só nos dispõe, mas também nos persuade; os olhos assombrados, não deixam o ânimo livre para resistir; a singularidade da pompa, não só autoriza, mas autentica; não só leva a si a nossa atenção, mas também a nossa submissão; não só nos faz obedecer, mas crer.