Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXVIII
São raros os que nas letras buscam a ciência; o que buscam, é utilidade, e aplauso; este é objecto da vaidade, aquele da ambição; outros há, que quando buscam as ciências, nelas buscam tudo; não só interesse, louvor, e aprovação dos homens, mas também um quási domínio deles; as letras são armas com que querem adquirir sobre os mais homens um direito de conquista: esta ideia ou esperança, parece que nasce com eles e com eles cresce; ainda estão nos primeiros elementos das primeiras artes, quando logo se propõem aquele intento; para este se encaminham todos os seus passos; das virtudes, e dos vícios seguem aqueles, que conduzem para aquele fim; e assim não são virtuosos, nem viciosos por natureza, mas por ocasião: a natureza não os fez maus, nem bons; eles é que se fazem a si, por seguirem o que a ocasião pede. Sempre estão prontos para deixarem a virtude, e abraçarem o vício, e também para deixarem este, e abraçarem a virtude, contanto que disso dependa a sua elevação. Deslealdade, fé, religião, hipocrisia, tudo para eles vale o mesmo; olham para os vícios, e virtudes, como para vários instrumentos de que um artífice perito se sabe servir a tempo, não segundo o que a razão pede, mas segundo o que pede a obra; para que ninguém os siga, nem conheça, vão desfazendo, ou escondendo os degraus por onde sobem, e só no último se mostram, mas então já têm na mão o raio, já não são imagens de pequena consequência; são constelações formidáveis e funestas; àquela altura nenhum incenso chega; o respeito mais profundo, é vulgar; o que exigem, é silêncio, e adoração; e ainda esta há-de ser de longe, porque o chegar a eles de algum modo, é sacrilégio. Os sábios venturosos, de tudo fazem asas, até das cousas mais impróprias para voar; por isso qualquer crime neles fica sendo uma acção justa; nos outros uma culpa leve é delito atroz: para tudo têm uma multidão de aplicações, e inteligências; estas são as que dão ser a todas as suas cousas; e todas nas suas mãos mudam totalmente de figura; nada lhes parece como parece aos outros; querem reformar o mundo, pouco reformados em si; soberba, ambição, grandeza, são os três pólos, em que se estabelecem, e se fundam; aqueles são os ídolos, a quem unicamente sacrificam, e de quem eles são ao mesmo tempo, retratos, e originais, ídolos, e idólatras; Narcisos das suas acções, e sobretudo das suas letras, eles são os primeiros que se admiram, e se aplaudem; e tudo com tal arte, que aquela admiração sem fé, por ter neles mesmos um princípio errado, e suspeitoso, eles de tal sorte a espalham, que depois de introduzida, vem a servir-lhes de título legítimo; e se há por acaso quem duvide, já é tarde, porque na fama também cabe prescrição; é como uma posse, que fica sendo prova do domínio. O vulgo tudo o que recebe, é sem exame, e depois, antes quer permanecer no erro, do que entrar a examinar; e com efeito é mais fácil ir com os que vão, do que parar para os suspender; por isso os que adquirem opinião de sábios, ficam graduados por aclamação, mas essa opinião devem à fortuna, e não a si, porque as mais das vezes apenas saudaram de longe as letras; e assim se verifica, que a quem tem fortuna, basta o saber pouco; se é que para fortuna o saber não basta. Tanto é certo que as cousas se implicam, e confundem tanto, que nas mesmas razões, em que se funda a razão que afirma, também se pode fundar a razão que nega; daqui vem, que é motivo de uma grande vaidade, o saber retorquir a força do argumento contra quem o faz, à maneira de um guerreiro, que desarma outro, para o deixar sem defesa, e para o render com as suas próprias armas; também com o discurso fabricamos armas contra nós, e essas são as mais fortes, porque é como um mal que se forma dentro em nós, e que é maior à proporção que é nosso: o dano exterior admite mais reparo.