Relatório da Expedição dos Rios Mucury e Todos os Santos
Ex.mo Snr. Antonio da Costa Pinto. - Mandado pelo Ex.mo Governo de Minas Geraes a explorar as mattas comprehendidas pelos rios Mucury e Todos os Santos, onde o mesmo Governo tenciona estabelecer uma colonia de degredados e vagabundos, sahi aos 22 de janeiro de 1836 da Imperial cidade de Ouro Preto dirigindo-me a Sabará, onde tinha os meus instrumentos; esperei neste lugar o Snr. Amedée Lavaissière, por quem devia eu ser coadjuvado n'essa commissão.
Chegado este, sahimos de Sabará, indo por Minas Novas e passando pela Villa de Diamantina, e sem querer entrar em superfluas minudencias sobre uma estrada de ha muito conhecida, chegámos á Villa de Minas Novas aos 18 de Março do mesmo anno, um mez depois da nossa sahida de Sabará.
Remetti no mesmo dia ao Presidente da Camara da dita Villa o officio do Ex.mo Governo, em que mandava que a mesma Camara coadjuvasse com todos os meios ao seu alcance a uma empreza de que devia resultar tão innumeros resultados a esta Comarca e á Provincia, em geral; mas direi a V. Ex.ia com muita magua, é tão lastimavel a posição dos Minanovenses e portanto de sua Camara, que não existia no cofre dinheiro sufficiente para pagar alguns - proprios - que a Comarca tinha precisão de mandar.
A villa de Minas Novas, situada a 17º 37' e 3 de latitude e a 40º 20' de longitude, foi outrora a metropole do commercio d'esta Provincia com a da Bahia, para onde transportava annualmente um sem numero de fardos de algodão, exportação esta que não só bastava para as necessidades publicas da Provincia, que infelizmente como as outras do Imperio, não usava senão de fabricas ultramarinas, como permittia tambem a muitas pessoas ajuntar consideraveis fortunas, que ainda existem em algumas mãos.
Porém o systema arruinado de agricultura, usado em umas terras tão favorecidas sobre diversos pontos, tem cançado as mesmas de tal sorte que hoje não produzem senão carrascos, debaixo dos quaes raros animaes, que por acaso resistiram a tão desastrosa peste, procuram algum alimento, que com difficuldade encontram; e o que é mais ainda a perda, por muitos annos, em Minas Novas, das sementes que produzem o algodão.
Algumas minas exploradas, tambem, no mesmo tempo, accrescentariam ainda a felicidade dessa Comarca, porém, trabalhadas a talho aberto, entupiram-se e ficou de menos aos Minanovenses a esperança de verem-se levantar o seu paiz, por minas de ouro, que na verdade são todas de quartzo, o que augmenta ainda a inconstancia que geralmente caracterisa esse genero de riqueza.
Encontrei, finalmente, pedras preciosas a saber: crysolithas, aguas marinhas (do numero das quaes foi a tão afamada pedra de 16 libras que foi offerecida á Sua Magestade Dom João VI pelo seu descobridor) que serviam para augmentar um futuro não remoto á felicidade de Minas Novas.
Mas os botocudos Jiporocas, que com muito custo se haviam afugentado, e não se vendo sem pouca magua despojados de suas terras, fizeram um ultimo esforço e continuaram independentes a percorrer as suas vastissimas possessões.
A sua presença e as suas atrocidades horrorisam de tal maneira a alguns emprehendedores que essas riquezas poderiam procurar, que nenhum d'elles se atreve a ir sacrificar a sua existencia.
Presentemente os Minanovenses vivem sobre si mesmos e do que conseguiram ajunctar em tempos mais felizes.
Foi este o estado de pobreza em que achei Minas Novas, não lhe ficando para remedio á sua decadencia senão uma communicação mais immediata com o littoral do Oceano e ainda a cultura de fertilissimas mattas; portanto ocioso seria pintar a V.Ex.ia o enthusiasmo com que os Minanovenses me receberam, fazendo mil votos afim de que eu desenvolvesse n'essa empreza toda a coragem, constancia e patriotismo que me poderia sugerir a minha patria adoptiva.
Apezar da penuria que já expuz a V.Ex.ia, muitos fazendeiros, vendo que por meio d'essa empreza podiam se livrar dos indios, fizeram uma subscripção que subiu a 117$000, quantia esta destinada á abertura de uma estrada, diminuindo assim a despeza do governo.
Dirigi-me tambem ao Tenente-Coronel Francisco Innocencio de Miranda Ribeiro, encarregado pelo Ex.mo Governo, não só para dirigir a Commissão com os seus conselhos, mas tambem auxilia-la com dinheiro, tendo-se mandado uma lettra de 1:000$000 que para esse fim foi destinada.
Esse digno e honrado militar prestou-se com todo o patriotismo e desvelo de que é dotado e de que já tem dado exhuberantes provas, tendo, o mesmo Snr., dado todas as providencias necessarias afim de que nada faltasse durante aquella viagem.
Estavamos promptos a principiar a nossa deligencia, não esperando senão a chegada dos soldados das divisões que por 2 vezes foram expedidos do Quartel Geral, precedidas de dez praças cada uma.
Tendo eu recebido, conforme determinação do Ex.mo Governo, a quantia de 200$000 destinada á compra de brindes para os Botocudos, encarreguei o Cidadão José Antonio Coelho de mos comprar.
Chegados os soldados das divisões, sahimos, de Minas Novas a 25 de Abril, com grande receio dos habitantes de que pagassemos o dizimo ás mattas do Rio Mucury.
Seguindo sempre a direcção léste indo para a Fazenda da Conceição, da qual, é possuidor o Snr. Antonio José Coelho, fazendeiro rico, de cento e tantos captivos, que sendo morador das encostas das mattas, tem soffrido immensos prejuizos causados pelos Botocudos - Nak-nanuks, que de vez em quando lhe fazem visitas sempre hostis e perigosas, matando-lhe o gado e destroçando as suas plantações.
É na esperança de se vêr livre de semelhantes visinhos que esse Fazendeiro fez os maiores sacrificios, e ultimamente prometteu fazer (pelo Ex.mo Governo) uma estrada transitavel para os animaes - cargueiros - até o Rio Mucury.
Chegados n'esta Fazenda da Conceição aos 28 do mesmo mez de Abril, esperavamos contemplar d'esde então aquellas tão antigas e magestosas florestas; foi-nos, porém, necessario ainda pôr um termo á nossa impaciencia, porque tendo o Cidadão Antonio José Coelho aberto um espaço de caminho, seguindo os antigos vestigios de Bento Lourenço, que ahi penetrou no anno de 1816, que foi impedida pela apparição de fumaça que se presumia ser dos Botocudos Jiporocas (cujo nome só basta para horrorisar não somente aos habitantes civilizados, como tambem aos seus proprios visinhos - os Nak-nanuks) voltou e tomou outra direcção, abrindo uma estrada tendente a procurar as cabeceiras do mesmo rio na distancia de 12 leguas.
Depois de feita esta, pudemos emfim preencher os nossos desejos fazendo a nossa entrada por esse caminho aos 9 de Maio, acompanhados: pelo Capitão Antonio Gomes Leal, seu filho, um interprete e soldados das divisões, seguindo a direcção de léste-sudéste, sem ter tido nada de extraordinario a notar n'esta travessia, a não ser mattas ordinarias pertencentes ao Rio Setuval.
Chegados a esse ponto, onde acabava a estrada, fizemos um quartel, distante ½ legua das cabeceiras do Mucury, afim de podermos verificar si os arredores preenchiam as vistas do Governo, e por isso subi a uma alta pedra de formação granitica, podendo alcançar até uma distancia assaz consideravel para me convencer de que não podia ser este o logar adoptado; resolvemos, então, a acompanhar o curso do rio Mucury até encontrar a travessia da antiga estrada de Bento Lourenço.
N'este ponto achei reunidos para mais de 300 Botocudos (entre homens, mulheres e creanças), da nação Nak-nanuks que, sendo mansos muitos delles tinham sido chamados pelo seu capitão - que hoje se entrega ao trabalho e vive muito amigo dos brazileiros, achando-se ao serviço na casa de Antonio Gomes Leal; e outros, - bravos - ainda, acompanhavam estes ultimos afim de partilharem dos brindes que eu fazia aos Botocudos mansos.
Os Nak-nanuks, cuja etymologia na sua linguagem quer dizer - habitantes da serra, (por ser com effeito verdade, visto como habitam as serranias que devidem as aguas dos rios Mucury e Gequitinhonha) fazem parte da grande e numerosa nação dos Botocudos, que chegados áquellas paragens ha 50 annos, mais ou menos, das partes (deve se suppôr do Norte) em numero immenso (apezar de todos os esforços que fiz para saber dos mais velhos de onde vieram e que marcha haviam seguido, nunca me souberam dizer) parece-me terem vindo da Asia, pelo estreito de Bhering quando o mar ainda não havia creado a passagem descoberta pelo celebre navegante que lhe traz o nome.
Atacavam, em diversos pontos e debaixo de differentes nomes, os antigos habitantes das mattas regadas pelos rios Doce, São Matheus, Mucury e Gequitinhonha; obrigaram, depois de ataques sanguinolentos, a nação dos indios, tambem dividida em grupos de differentes nomes, a se entregar á civilisação, resistindo, apenas, a este ataque geral os indios puris-, que ficaram nas suas possessões.
A sua linguagem, muito aspirada, tem uma semelhança extraordinaria com a chineza, como se poderá facilmente reconhecer por um vocabulario que tirei; o seu semblante é bem parecido com os dos chinezes, seus cabellos pretos, lisos e duros; têm pouca ou mesmo nenhuma barba (supponho que a arrancam).
Elles julgam homens corajoso aquelles que têm muita barba e crescida, por isso só os seus capitães deixam crescer a barba (no queixo) para tornar patente o seu grande animo.
São de estatura alta, constituição forte e genio extraordinariamente vingativo e independente.
Este caracter moral da maneira por que são creados, pois tendo eu visto um filho que por ter sido castigado por seu pae (sem duvida por tel-o merecido) batera em seu proprio pae auxiliado por sua mãe, que lhe ensinou por esta conducta que nunca se devia deixar impune qualquer offensa.
As idéas religiosas são poucas ou nenhumas; apenas elles suppoêm a existencia de um - ente supremo - que chamam em sua linguagem - Krenhouh Jissa Kijú - (Chefe Grande), mas não lhe rendem culto absolutamente algum; pelo contrario quando troveja, suppondo (pelo seu caracter já descripto) que não se pode aplacar a ira senão pelo medo, lançam flechas ao ar, com muitos gritos e dizendo: - Krenhouh Jissa Kijú jak jemes (que o chefe grande está bravo) e que precisam amansa-lo ou o atemorisar.
São nomades, isto é, nunca residem no mesmo logar, e arrancham aonde com mais facilidade podem encontrar caça; são antropophagos e gostam principalmente de negros, que chamam - Ankorá - (macaco do chão), porém nunca deixam de passar a carne ao calor do fogo; comem algumas raizes, e entre ellas a - caratinga -; tambem comem cipós, que contêm fecula assaz abudante e agradavel.
Quanto ao mais ignoram inteiramente o uso de plantas medicinais e somente os vi usar um - remedio - que consiste em encher de cynza ou terra qualquer ferida que tenham, por mais profunda que seja.
São muito achacados a dôr de olhos.
Vivem em constantes combates com os seus visinhos; e as suas flechas são hervadas com o - ucurú -; vivem até muita adiantada idade e um d'elles me pareceu ter para cima de cento e cincoenta annos!.
Abrimos uma picada, por entre brejos e pantanos, em uma distancia de dez legoas, onde encontramos vestigios do caminho seguido por Bento Lourenço; o nosso mantimento ia carregado nas costas dos soldados, porém tendo nós encontrado outros Botocudos (da mesma tribu dos Naknanuks) mais bravos ainda e aos quaes nos foi necessario distribuir viveres para grangear a sua amizade, fomos obrigados a nos estabelecer nas margens do rio Mucury e ahi fazer um - quartel -, pois o mantimento que tinhamos calculado poder durar dous mezes, já estava quasi acabado.
A picada que haviamos seguido era intransitavel para os animais cargueiros e distava doze leguas da Fazenda mais proxima.
Resolvemos dar promptos remedios aos nossos males, abrindo, do ponto em que nos achavamos, uma estrada que fosse encontrar a que Antonio José Coelho havia abandonado por causa dos Jiporokas.
Portanto aos soldados que dirigiamos, demos para esse fim todo mantimento que nos ficava, afim de que abriviassem um trabalho tão necessario; mas fomos illudidos, não indo nós mesmos assistir o trabalho (para que não augmentasse o gasto do pouco mantimento que havia, e assaz necessario aos trabalhadores): assim, sem mantimento algum, em um lugar distante 22 leguas da primeira Fazenda, cercados de Botocudos (que muito embora tivessem relações comnosco, não deixavam de mostrar caracter hostil bastantemente accentuado), vivendo, como elles, de cipós e cocos de brejauba, sem apparecer caça alguma, afugentada ou destruida por tão extraordinario numero de pessôas, entregues a uma cruel fome, que conta, no meio de suas victimas, um velho soldado das divisões: luctando todos os dias com o desejo de desempenhar a importante commissão de que fomos incumbidos e pensando na deshonra que nos acompanharia por uma vergonhosa retirada, e ainda os sentimentos de humanidade, que me suggeria ao vêr os males de meus companheiros, desconfiado, ainda, de que os soldados que mandára abrir a estrada, haviam succumbido ás flechas dos Jiporokas, que já tinham feito recuar Antonio José Coelho, resolvi a me sacrificar ou soccorrer os meus companheiros; e 15 dias depois da sua partida, puz-me em marcha, acompanhado pelo capitão Antonio Gomes Leal, seu filho e mais dous soldados, tendo deixado o Snr. Amedèe Lavaissière com seis soldados, duas ordenanças e alguns botocudos mansos que ja se achavam ao nosso serviço.
Promettemos-lhe breve socorro; e no 5.º dia depois de tão penosa viagem, privados do sustento necessario, tivemos a felicidade de encontrar um dos filhos do Capitão Antonio Gomes Leal que vinham socorrer os soldados que eu havia mandado.
Pedi-lhes que fossem com brevidade prestar soccorros ao quartel de Mucury, e eu, seguindo a minha viagem, acompanhado por dous soldados, tratei de abreviar a conclusão da estrada.
No dia seguinte ao da minha chegada a Fazenda da Conceição, voltando para o quartel do Mucury, com as ferramentas necessarias e os soldados da divisão, que se achavam na referida Fazenda, abri cinco leguas de estrada, n'esta parte, em quanto que o Capitão Antonio Gomes Leal abriu em outro ponto, igual distancia até nos encontrarmos, tendo eu feito pontes em todos os ribeirões, indo chegar justamente á margem do Mucury, onde estava estabelecido o Quartel, communicando-se com a outra margem do rio por meio de uma ponte que fiz construir sobre elle.
Foi na occasião em que eu estava abrindo esta estrada que tive occasiãode fazer experiencia de uma fructa que tem toda a semelhança com a - noz moscada - da India, e que eu suppunha, por essa razão, ter identicas propriedades; e sentindo-me com uma febre bastante forte, cansado, soffrendo um inverso rigoroso, fiz d'ella bebida que me foi tão favoravel e proveitosa que fiquei immediatamente alliviado do encommodo.
Algumas d'essas fructas se acham commigo, que poderei mostrar si assim o determinar V.Ex.ia.
Tambem n'esta mesma occasião, experimentei uma canella que não é bôa como a da India, mas que cultivada será em tudo igual a ella.
As diversas quinas conhecidas no Brazil, existem ahi em abundancia, e devo principalmente notar uma de casca fina, vermelha e que compete em tudo com a do Perú, devendo-se observar que o effeito febrifugo d'aquella é devido á chinconina em quanto que o effeito desta é devido á quinina.
O sassafraz, por ser muito conhecido no Brazil o seu effeito, e existir em tamanha abundancia n'aquelles sertões, não merece senão uma simples referencia.
A congonha - encontra-se tambem, a cada passo, de differentes qualidades e todas bôas.
Até ao ponto em que estava feita a estrada, abandonada por Antonio José Coelho, as terras ainda são vertentes do Jequitinhonha, porém deste ponto para deante começam as vertentes do Mucury, e mudam-se completamente as mattas, que desde logo tomam outro aspecto.
Á vista destas mattas tão vastas, gigantescas, bellas e ricas regadas por tão abudantes rios; á vista desses magestosos arvoredos, cujas frondosas copas impediam a penetração do Sol até as humildes plantas que rastejavam no chão; á vista d'esses enormes cipós que se estendiam de uma a outra arvore e assim pareciam liga-las para resistirem á impetuosidade dos ventos; á vista d'esses outros mais finos que humildemente se serviram dos troncos das arvores como amparo á sua ephemera duração; á vista de tudo isso, a minha imaginação me representou o emblema da sociedade, prescrevendo-me as regras que a devem reger.
Emquanto estava fazendo a ponte, no Mucury, para passar os animaes cargueiros, o Sr. Amedée Lavaissiére, continuava a estrada que se dirigia a Todos-os-Santos, e ahi chegamos todos aos 2 de agosto, (terça-feira) seis dias depois de sahir do rio Mucury, onde havia deixado a ordenança Fagundes com alguns outros soldados das divisões que deviam me aguardar n'esse ponto.
A estrada que vae até Todos-os-Santos (chamado na linguagem dos Botocudos Tenta-hó) dista 20 leguas do rio Mucury.
Esse rio já foi visitado pelo Coronel Bento Lourenço e algumas bandeiras que alli tinhão chegado e voltaram impedidos pelos Botucudos que lhes mataram tres ou quatro companheiros.
Esse logar tinha adquirido fama das mais extraordinarias riquezas possiveis, a saber: diamantes, esmeraldas, aguas marinhas, e crysolithas, que disputavam ao afamado rio a honra e o previlegio de serem arrastadas, no seo leito, pelas suas aguas correntes, que se iam junctar ás do Mucury de que é tributario.
Mas estudando a constituição geologica do logar e todos os indicios que me pudessem denunciar a presença de tão appreciaveis mineraes tive o desengano dessas supostas riquezas, e reconheci que as aguas d'aquelles rios não carregam senão os despojos das ricas florestas que regam.
Em quanto eu me occupava n'estas difficeis investigações que foram sem proveito. o sr. Amedée Lavaissiére foi visitar a serra chamada das Ametistas por suppo-la composta de pedras do mesmo nome e que se achava a 2 leguas de distancia do Quartel de Todos-os-Santos, não podendo eu, pelas amostras que me trouxe o mesmo sr., provar a supposta existencia de ametista n'aquella formação de accumuladas materias mineraes.
Aos 7 de Agosto chegou o soldado Innocencio, sendo portador de um officio de V.Ex.ia communicando-me os desejos que tinha de ver explorado o rio Mucury até á sua foz, ou embocadura no Oceano Atlantico.
Depois de sua volta da serra das Ametistas, dispoz-se o sr. Amedée ir á Fazenda da Conceição providenciar alguma cousa necessaria para a viagem, ficando a meu cargo toda a triangulação do logar destinado ao degredo e exploração (por terra) do rio Todos-os-Santos.
Portanto aos 8 do mesmo mez de Agosto, o sr. Amedée partiu com destino á fazenda da Conceição, e logo no dia seguinte comecei a exploração do rio Todos-os-Santos, que corre com enorme differença de nivel, atravessando grandes rochedos, que produzem n'elle immensas cachoeiras; as aguas que correm em seu leito são em pequena quantidade, tornando a sua navegação custosa.
Na distancia de doze leguas até a sua barra, correm vinte quatro corregos dos quaes sómente cinco d'elles conservam a agua no tempo da secca; não obstante esta falta no tempo da secca, podem industriosos colonos se utilizar de suas ricas mattas.
Durante essas digressões não encontrei os Jiporocas apezar dos esforços que fiz para chama-los á cathequização, si bem que tivesse encontrado frescos vestigios que testemuhavam a sua incontestavel presença.
Todas essas explorações estavam sendo feitas com a bussola na mão tomando todas as voltas do caminho pelas diversas direcções que tomava a agulha magnetica, e regulando com o relogio a distancia percorrida.
Este methodo, que não é de exactidão mathematica, não merece o nome de topographico, mas sim o de reconhecimento de terreno; outro meio é porém, impraticavel até hoje n'essas matas tão sombrias.
Os dous pontos necessarios do mappa são exactamente conhecidos, sendo cada um delles determinado pela sua Latitude e Longitude.
Emquanto eu explorava o rio Todos-os-Santos os soldados das divisões estavam empenhados na construcção das canoas que nos deviam conduzir até o Oceano, e logo depois do meu regresso fui medir o logar destinado ao dicto degredo, e que se acha distante 4 leguas do rio Todos-os-Santos, nas serranias que dividem as aguas do Mucury e Todos-os-Santos, tendo subido ao cume da serra afim de poder fazer a medição.
A natureza já havia destinado este logar para semelhante empresa.
Grande numero de serranias quasi inaccessiveis ao homem cerca este reducto em uma distancia de duas legoas sobre meia de largura; dous ribeirões que nunca seccam, e mattas fertilissimas o cobrem, não existindo senão duas entradas e uma bocaina por onde passa o ribeirão.
Assim com certas obras que poderão ficar em 25:000$000, ahi poderão ser guardados e seguros os criminosos que forem remettidos, sem jamais poderem conservar esperança de se evadirem; e se tal acontecesse teriam uma matta de 40 legoas a atravessar até chegar á primeira Fazenda, e não lhes deixando armas de qualidade alguma como tambem mantimento á sua disposição, parece muito custoso poderem se evadir.
A colonia ahi estabellecida, estará limitada de uma parte pelo rio Mucury, da outra pelo rio Todos-os-Santos, fazendo um triangulo isoceles de 20 leguas de um lado, 12 de base e 10 de altura, appresentando por tanto uma area de 120 leguas.
Os criminosos principaes ficariam circumscriptos a uma area fechada trabalhando a terra durante o dia, e sendo recolhidos a noite.
E em logar dessa ociosidade que se entregam os criminosos recolhidos nas cadeias publicas, ver-se-hiam obrigados a trabalhar, e talvez que lhes voltasse o amôr ao trabalho e por essa obrigada applicação (esquecendo os vicios acoimados em seus corações) tornassem a ser uteis á sociedade e a si mesmos.
Para esse fim deveria ser formado um quartel de divisão composto de 80 praças, repartidas em diversos destacamentos, conforme exigirem as circuntancias.
Acho aqui occasião para falar no gonum que alguns chamam azogue vegetal ou tambem Anna Pinta, e que se acha em grande abundancia n'essas paragens.
O seu effeito em muitas enfermidades é assaz conhecido pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Merece maior attenção (por não ser conhecida) uma fructa cujo oleo extrahido tem a propriedade de combater as mais pertinazes empigens.
Algumas dessas fructas acham-se em meu poder, e farei a este respeito o que determinar V.Exc.ia.
Encontrei tambem outra fructa que sendo cultivada poderá ficar uma das melhores que temos e que os Botocudos chamam de Kapamja.
A ipecacuanha (poaia) impede pela sua abundancia o progresso de muitas outras plantas que nascem nesses logares.
Havendo finalmente terminado a medição do degredo voltei para o quartel de Todos-os-Santos onde achei tudo prompto para a viagem, esperando apenas para me embarcar pela presença do sr. Amedée; e receando ao mesmo tempo embarcar só com os soldados, e descer o rio ainda intransitavel, por não ser ainda navegado, esperei 6 dias, vivendo no meio da matta, unicamente com dez soldados, quatro botocudos mansos, um - lingua - e o meu camarada.
A estação pluviosa que já estava adeantada, e que ia tornar impossivel a navageção do Mucury; o grande empenho e desejo que eu tinha de levar a effeito a empresa começada, resolveram-me a embarcar aos 13 de Septembro com 7 soldados, 4 Botocudos, um - língua - e o camarada tendo enviado os outros para se ajuntarem aos que se achavam no quartel do Mucury, onde de ante mão tinha dado providencias para que no meu regresso encontrasse os mantimentos necessarios.
A este respeito officiei a V.Ex.ia aos 10 de Septembro, relatando igualmente o que havia até então occorrido.
Esperei neste logar o sr. Amedée, e tinham já decorridos 36 dias sem delle ter noticia alguma.
A ordenança Lourenço achando-se doente não me poude acompanhar e voltou para a Fazenda da Conceição.
Embarcando-me finalmente aos 13 de Septembro de 1836, encontrei trez dias depois (16) a barra do rio Todos os Santos no Mucury.
O rio Mucury até encontrar o rio Preto, que desagua n'elle, na parte norte, é largo e magestoso; para baixo do rio Preto encontra-se o primeiro cordão de serranias, sobre as quaes elle faz grande numero de entaipadas e travessões, que apezar da muita correnteza não offerecem nem dificuldades, nem perigos aos navegantes, podendo asseverar a V.Ex.ia, que sómente tres vezes tivemos de conduzir as cargas na distancia de 40 a 50 passos apenas.
No 7.º dia de viagem, logo para baixo do Rio Preto, tive o primeiro encontro com os botocudos selvagens (da nação dos Jiporocas) em numero de 25 arcos; pouco mais ou menos 80 pessôas.
Não pressentiram elles a nossa chegada por causa das muitas precauções que tomei, ordenando sempre que não dessem tiros, nem gritassem, pois não desejava encontral-os com tão pouca gente (da minha parte), e tão minguados socorros; e graças a essas precauções, escapamos milagrosamente de diversos ataques a que talvez não resistissemos com facilidade.
Impedidos, pela violencia com que desciamos, de nos lançarem flechas, avisaram com gritos estrondosos, aos seus companheiros que iamos rio-ábaixo.
Mandei então parar as canôas no meio do rio, e por meio do - lingua - que comigo levava, e depois de ahi pemanecermos até á noite resolveram chegar a falla.
Reparti entre elles algumas ferramentas, que para esse fim levava, e pelo que pude colligir, elles nunca tinham conhecio pessôa alguma civilizada, não vendo nas suas possessões cousa alguma por que pudesse descobrir indicis do uso de ferramentas, como tambem lhes eram desconhecidos os mais usuaes vivees usados pelos habitantes da Provincia.
Passei a noite no meio d'elles, e já adormecendo, quando sahirão todos com as flechas mettidas nos arcos, cercando-nos e tomando a sahida das canôas.
Dei immediatamente ordem aos soldados para que tivessem promptas as armas, caso fosse necessario usar d'ellas.
Conhecedor de seus instinctos, sabendo que não nos faziam mal sinão por trahição, tinha certeza de que nada nos faziam si vissem qualquer pessôa accordada.
Suponho que o projeto d'elles, apezar de apparente amizade que nos testemunhavam, era o de nos tirar a vida, apoderando-se do que existia nas canôas.
Embarquei-me no dia seguinte bem cedo e já com a noticia de que outra tribu que achava rio-abaixo.
No 8.º dia de nossa viagem, tivemos a infelicidade de ver-se submergir a canôa que levava o mantimento, vivendo nós, até chegarmos ao Oceano, de pouca farinha, que se havia salvo, sem nos podermos utilizar da caça que apparecia para não dar a conhecer aos selvagens a nossa presença por aquellas paragens.
Todos os objectos conduzidos na canôa, tanto pertencentes ao Governo como aos soldados, perderam-se.
Tres dias depois tive um segundo ataque de outra tribu que se achava logo ábaixo da ultima cachoeira: esses nos haviam pressentido, e por isso, fazendo emboscada, já nos esperavam na entrada de um boqueirão, onde o rio muito diminuto rm largura, permittia-lhes esconderem-se atraz das pedras que ahi se achavam.
Chegados á entrada do boqueirão, que não nos permittia mais voltar (caso entrassemos), e já arriscados pelos vestigios que appareciam, e avistando uma fumaça na parte Norte do rio, mandei embicar a canôa na parte contraria, e ainda não tinhamos desembarcado, quando um numero consideravel de flechas lançadas de distancia muito proxima nos mostrou o eminente perigo, mas protegidos pelos troncos das arvores, aonde nos abaixavamos, mandei-lhe dirigir a palavra, convencendo-lhes de que não era nosso intento fazer-lhe mal algum e que pelo contrario lhes traziamos instrumentos mais faceis e mais violentos dos que usavam.
Nada aplacava a ira que lhes causou a nossa presença.
Cada flecha era novo trabalho para mim que já não podia conter os soldados que anhelavam responder com tiros.
Perdidos seriam para sempre, os nossos trabalhos, e para sempre fechadas essas mattas ao elemento civilisador, si dessem algum tiro, porque instigados pelo caracter moral de que já fiz mensão, principiaram uma guerrilha interminavel, como si vê ainda nos botocudos do rio Doce que quasi sempre atacam os passageiros si bem que entregues á civilização.
Vendo assim, que nem as promessas, nem outros meios faziam demover-lhes a ira, usei de uma estrategema que satisfez cabal os meos intentos.
Tendo eu sabido pela tribu que deixei atraz que existia uma rixa entre esses botocudos e os indios de beira-mar, (chamados na sua linguagem: Makão Kugi - indio pequeno), approveitei-me dessa noticia e disse-lhes que havendo sabido nos paizes longinquos d'essa rixa e os prejuizos que lhes causavam esses inimigos, vinha para auxilia-los.
Immediatamente longe de nos hostilizar, fazendo-nos gestos de alegria e satisfacção, pediram-me que não tardassemos em vinga-los.
Reparti entre elles o restante da ferramenta que trazia, e ficando muito satisfeitos, prometteram-me não atacar mais a pessôas que por alli passassem.
Depois de tão innumeros trabalhos, cheguei aos 29 de Septembro á barra do rio Mucury, onde desagua no Oceano Atlantico, tendo-o explorado e tomado todas as suas voltas por meio da busula e regulada a celeridade da canôa por uma ampulheta que fiz, e uma corda a qual tinha amarrado um peso para servir de ponto fixo: esta corda era dividida em metros e conforme a celeridade da canôa se desenvolvia mais ou menos durante o tempo em que vasava a sobredita ampulheta.
O rio Mucury corre para Léste-Sudéste e serve de limite natural ás provincias brazileiras do Espirito Santo e Bahia (pelo Norte).
A trinta leguas rio-ácima existe outro limite natural entre a Provincia de Minas (ao Oeste) e Bahia (a Léste); é uma cordilheira que corre de Norte a Sul, e na qual tem nascimento muitos rios.
D'esta cordilheira em diante o rio corre com muita mansidão, e é chamado pelos naturaes - Rio de Areia -.
A barra do Mucury é uma das melhores na costa Sul do Brazil, pois tem canaes de 8,14 ou 18 palmos d'agua (maré baixa), com fundo de lama e agua doce para as embarcações.
No pontal feito pelo rio e o mar existe uma pequena villa, composta de quarenta fogos habitada por pescadores, cujo aspecto e existencia é o mais miseravel possivel (chama-se villa de S. José do Porto Alegre).
Está situada a 18º e 30' de lattidude e 41º 37' e 30 de longitude, e habitada pelos antigos indios - Mukuinis - que vieram nestas costas procurar um refugio contra ataques dos botocudos - Jiporokas.
As margens do rio são ferteis em madeiras de lei, a saber: jacarandá, cabiuna, cinhatico, balsamo, ipê, jiquitibá, aroeira e brauna.
Não tem ramo algum de febres malignas, nem sezões, vantagem que bastaria para torna-lo preferivel aos rio Doce e Gequitinhonha, cujos habitantes são diariamente assolados por innumeras epidemias.
Além de todas essas vantagens, offerece uma navegação (que principia da barra do rio das Americanas, que desagua nelle na parte do Norte) menos perigosa e mais rapida.
O unico obstaculo que se offerece, pois, a pôr uma communicação por agua entre esta tão desgraçada Comarca de Minas Novas, é o numero de Bugres que infesta as margens do Mucury, obstaculo este muito facil de se solver, confiando-se a um homem de zelo, prudencia e capacidade reconhecida a cathequisação dos selvagens habitantes d'essas mattas; e estou certo de que no espaço de dous annos, contará o Governo d'esta Provincia mais este elemento de prosperidade em seu seio.
Por esta obra de philanthropia e de dever, estarão francas aos emprehendedores as riquezas existentes no rio das Americanas.
Tendo eu perdido a esperança de voltar pelo mesmo caminho (rio ácima) por causa de uma grande enchente, e não querendo esperar para não perder algum tempo que me não pertencia, resolvi-me a costear o mar (por terra), dirigindo-me para Norte, procurando a estrada que acompanha as margens do Gequitinhonha e seguindo-a até Porto Seguro, distante 40 legôas da Villa de São José de Porto Alegre.
Rompendo a picada chamada das boiadas, achei-me, no fim de 5 dias de viagem, na estrada do Gequitinhonha, até á barra do Arassuahy (seu continente) e chegado ao Calhão dirigi-me para a Fazenda da Conceição, onde cheguei aos 14 de Novembro depois de haver percorrido 150 legôas desde Porto Alegre até a Fazenda da Coelho, como se poderá vêr no mappa que tenho a honra de appresentar a V.Ex.ia.
Durante esta viagem gastei com 15 pessôas a quantia de 110$000.
A navegação do Gequitinhonha, que tambem tive a occasião de explorar, é a peior, posivel, e não o permitte alimentar esperança de se verem facilitados em seu seio os meios de communicação, sem contar ainda no numero das difficuldades as sezões que assolam annualmente os habitantes, que contam no meio das victimas, uma decima parte de suas povoações.
No dia seguinte ao da minha chegada na Fazenda da Conceição tratei de fazer o Relatorio que vos appresento.
Chegando á Villa de Minas Novas aos 3 de Janeiro do corrente anno, onde me occupei em finalizar as contas relativas á expedição, puz-me em marcha para essa Capital, passando pelas Villas de Diamantina e do Principe.
Chequei finalmente a esta Capital aos 21 de Fevereiro, onde tenho tratado dos ultimos retoques na prestação de contas da incumbencia que me coube.
O Governo poderá tirar da miseria e penuria a que está entregue a Comarca de Minas Novas, que por meio da navegação por mim indicada, e cujos serviços poderão ficar em 20:000$000, abrirá communicação immediata com o Oceano, podendo-se ir de Minas Novas a Porto Alegre em 13 dias (com canôas carregadas) e d'ahi por mar até a Bahia em 2 dias.
Deve, porém, ser preferida a navegação para o Rio de Janeiro, apezar da inconstancia dos ventos que sopram de Léste Nordeste, podendo-se fazer esta viagem, de Porto Alegre, em 3 dias.
Entregando á V.Ex.cia este meu trabalho, reclamo, de um lado, a indulgencia por algumas faltas imprevistas, e alguns erros, que si os tive, foram dictados pelo amor e grande interesse que tomei por esta tão grande, ardua e melindrosa tarefa, e vangloriando-me si por esses limitados serviços, puder pagar o tributo do reconhecimento á tão conhecida hospitalidade desta rica e bella Provincia.
Deus guarde á V.Ex.cia.
Ao Ill.mo Ex.mo Snr. Antonio da Costa Pinto, Muito Digno Presidente d'esta Provincia.
Do encarregado da expedição, - Victor Renault.
Ouro Preto, em 2 de Abril de 1837.