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Ressurreição (Machado de Assis)/III

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A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o sarau daquela noite; mas o coronel preferia convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares. Era homem pouco cerimonioso, gostava sobretudo da intimidade.

Quando Félix entrou dançava-se uma quadrilha. O coronel foi ter com ele e levou-o para onde estava a mulher, que já o esperava com ansiedade, pela razão, dizia ela, de que era um dos poucos rapazes que ainda conversavam com velhas, estando entre moças. Félix sentou-se ao pé de D. Matilde. Estava então de bom humor e conversou alegremente até que a música parou.

A mulher do coronel era o tipo da mãe de família. Tinha quarenta anos, e ainda conservava na fronte, embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir, e tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em dois pontos que para ela estavam acima das controvérsias humanas: a religião e o marido. A sua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos. Dizia-lhe Félix às vezes que não era acertado julgar pelas aparências, e que o coronel, excelente marido em reputação, fora na realidade pecador impenitente. Ria-se a boa senhora destes inúteis esforços para abalar a boa fama do esposo. Reinava uma santa paz naquele casal, que soubera substituir os fogos da paixão pela reciprocidade da confiança e da estima.

A conversa com a dona da casa roubou algum tempo às moças, segundo a expressão do coronel. Era necessário que Félix se dividisse com as senhoras que ainda tinham amor aos exercícios coreográficos. Recusou, pretextando a presença de D. Matilde.

— Oh! por mim não! respondeu a boa senhora; o direito das velhas tem um limite no direito das moças. Vá, doutor, e mais tarde volte cá, se o não agarrarem por aí...

Valsava-se. Félix levantou-se e foi buscar um par. Não tendo preferência por nenhuma senhora, lembrou-lhe ir pedir a filha do coronel. Atravessava a sala para ir buscá-la defronte, quando foi abalroado por um par valsante. Conquanto fosse navegante prático daqueles mares, não pôde evitar o turbilhão. Susteve o equilíbrio com rara felicidade e foi procurar melhor caminho, costeando a parede. Nesse momento os valsantes pararam perto dele. Pareceu-lhe reconhecer Lívia, irmã de Viana. Com as faces avermelhadas e o seio ofegante, a moça pousava molemente o braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumas palavras, que Félix não pôde ouvir, e depois de lançar um olhar em roda de si, continuou a valsar.

Durou isto minutos.

Félix, apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel, interessante criança de dezessete anos, figura delgada, rosto angélico, formas graciosas, toda languidez e eflúvios. Era uma dessas mulheres que fazem o mesmo efeito que um vaso de porcelana fina: toca-se-lhes com medo de as quebrar. Raquel era o seu nome; tinha grandes pretensões a mulher, que lhe não ficavam mal naquela idade de transição; mas o que Félix lhe achava melhor era justamente o seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação do seio. Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe.

Raquel aceitou o convite. Félix passou-lhe o braço à roda da cintura, e ela estremeceu da cabeça aos pés; depois entregou-se-lhe toda, com aquele abandono que a valsa prescreve ou permite, e voaram pela sala no turbilhão geral. A agitação coloriu um pouco as faces da moça, comumente descoradas. Quando pararam estava ofegante.

— Sentemo-nos, disse Félix.

— Não; passeemos um pouco. Por que não aparece cá?

— Receio não os encontrar; estão sempre fora...

— Não; há dois meses estamos na cidade. Mamãe diz que já não está para estas viagens contínuas, e eu acho que tem razão. Também me cansam a mim; o mais influído é papai.

— Não gosta da roça?

— Eu não tenho preferências; gosto tanto da roça como da cidade; contudo... dou-me melhor cá. Está olhando para aquela moça? não a acha bonita?

— Quem? Eu não olhava para ninguém.

— Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Lívia é a rainha da noite.

Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina, não deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da noite a outra mulher; mas, por outro lado, refletia que esta abdicação bem podia ser uma afetação de modéstia. Contudo, o límpido olhar da moça revelava a mais absoluta ingenuidade. Fez-lhe um cumprimento à beleza dela, e entrou a admirar de longe a beleza de Lívia.

Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não era rigidez convencional e afetada, mas uma grandeza involuntária e sua. A impressão de Félix foi boa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.

— Será a rainha da noite, disse ele voltando-se para Raquel; mas não serei eu quem lhe faça a corte.

— Por quê?

— Parece-me orgulhosa; há de tratar a todos como vassalos seus. Não vê com que desdém ouve as palavras do cavalheiro que lhe dá o braço?

O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsara com a viúva, um Dr. Batista, descendente em linha reta do Leonardo de Camões, "manhoso e namorado".

— Oh! isso não é razão, disse Raquel; Lívia não gosta dele.

Pouco tempo depois foi servida a ceia. Félix dirigiu-se para uma sala interior, onde o coronel tinha os livros, e que servia temporariamente de refúgio aos fumantes. Félix acendeu um charuto e começou a correr os olhos pelos livros.

Ali foram ter alguns rapazes que falaram entusiasticamente da irmã de Viana. Era o objeto de todas as atenções da noite. E foi no meio das apologias daqueles cortesãos da beleza, que ela apareceu pelo braço do coronel, atravessando a sala, para ir ter ao toucador.

— Doutor! disse Viana, aproximando-se de Félix.

E voltando-se para a irmã:

— O Dr. Félix quer falar-te.

— Ah! disse a moça, voltando-se para o médico.

Félix aproximou-se.

— Não sei se se lembra de mim? perguntou ele.

— O Dr. Félix? Perfeitamente: foi-me apresentado há muito tempo, mas eu tenho boa memória. De mais, só se esquecem as pessoas vulgares.

Félix agradeceu-lhe o cumprimento. Ela estendeu-lhe a ponta dos dedos elegantemente apertados na pelica da luva. Trocaram algumas palavras mais. Daí a pouco, tendo-se ouvido o prelúdio de uma quadrilha, toda a gente se retirou. Ficaram na sala Félix e Moreirinha.

Moreirinha tinha cerca de trinta anos, um bigode espesso, uma aparência agradável e um espírito frívolo. Confessou que estava impressionado pela viúva, mas que eram muitos os seus rivais.

— Mas não são temíveis esses rivais? perguntou Félix.

— Não; um apenas.

— Qual?

— O Batista.

— É o que está nas graças?

— Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõe de mais tempo, posto seja casado.

— Casado?

— Com um anjo.

Félix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevo todas as suas qualidades merecedoras de admiração. Inventou-lhe algumas que não tinha, reconheceu-lhe outras que possuía realmente, inda que de um merecimento relativo ou duvidoso. Não se podia negar a influência do Moreirinha entre senhoras. Era ele galanteador por índole e por sistema; tinha, além disso (coisa importante), a plena convicção de que a sua conversa era preferida pelas damas. Ninguém melhor do que ele sabia lisonjear o amor-próprio feminino; ninguém prestava com mais alma esses leves serviços de sociedade, que constituem muita vez toda a reputação de um homem. Dirigia os piqueniques, comprava o romance ou a música da moda, encomendava os camarotes para as representações de celebridades, levava os pianistas aos saraus, tudo isso com um modo tão serviçal que era de se ficar morrendo por ele.

Félix voltou à sala quando se dançavam os últimos passos da quadrilha. Lívia estava esplêndida de graça e elegância. Nenhuma afetação nem acanhamento; seus movimentos eram a um tempo desembaraçados e modestos. O médico procurou ver se o doutor pretendente estaria nas graças da moça; mas ele dançava do mesmo lado em que ela estava; os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho do coronel indicou-lhe a mulher do Batista; era uma moça de vinte anos, loura, assaz bonita e digna de inspirar amores. Por que motivo, o marido, casado há pouco, queria ir queimar a um templo estranho os perfumes que a esposa merecia?

Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôs-se Félix a deixar a casa do coronel, que lhe interceptou a passagem em nome, disse ele, da mulher e das moças. Félix respondeu-lhe que estava incomodado.

— Pretextos de peraltice, disse o velho, rindo alegremente; não o deixo sair nem que me caia morto na sala. Faz favor, minha senhora?

Estas últimas palavras eram dirigidas à irmã de Viana, que ia atravessando a saleta onde se achavam os dois.

— Que me quer, coronel? disse ela parando.

— Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer ir embora. Não tenho forças para tanto. Veja se mo consegue. Comece dando-lhe uma quadrilha.

— Dou-lhe a próxima, que é a minha última.

— Também se vai embora?

— Também.

— É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas.

O coronel afastou-se depois desta ameaça. Félix deu o braço a Lívia e foram sentar-se num sofá que ficava próximo.

— Meu irmão é muito seu amigo, disse Lívia acomodando as ondas de seda do vestido. Fala-me muito no senhor.

— É muito meu amigo, repetiu Félix, fazendo interiormente uma careta.

— Não admira, observou ela; o senhor merece ser estimado.

— Como sabe disso?

— Todos o afirmam.

— Nem todos serão sinceros, observou Félix.

Félix não se iludia a respeito da estima de Viana. Sem negar que o irmão da viúva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhe todavia limitado valor. Lívia asseverava, entretanto, que o irmão falava dele com grande entusiasmo, e até certo ponto o entusiasmo era sincero. Félix tinha sobre Viana certa ascendência moral; além disso, era um homem franco e hospedeiro, rude mas serviçal.

Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viúva foi perdendo a frieza cerimoniosa do começo. Passaram a falar do baile, e Lívia manifestou com expansiva alegria as suas excelentes impressões, sobretudo porque, dizia ela, vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monástica. Falaram naturalmente da viagem que ela pretendia fazer. Confessou ela que era um desejo antigo e várias vezes diferido.

— Não pense, acrescentou Lívia, que me seduzem unicamente os esplendores de Paris, ou a elegância da vida européia. Eu tenho outros desejos e ambições. Quero conhecer a Itália e a Alemanha, lembrar-me da nossa Guanabara junto às ribas do Arno ou do Reno. Nunca teve iguais desejos?

— Estimaria poder fazê-lo, se me suprimissem os incômodos da viagem; mas com os meus hábitos sedentários dificilmente me resolveria a isso. Eu participo da natureza da planta; fico onde nasci. V. Ex.a será como as andorinhas...

— E sou, disse ela reclinando-se molemente no sofá; andorinha curiosa de ver o que há além do horizonte. Vale a pena comprar o prazer de uma hora por alguns dias de enfado.

— Não vale, respondeu Félix, sorrindo; esgota-se depressa a sensação daquele momento rápido; a imaginação ainda pode conservar uma leve lembrança, até que tudo se desvanece no crepúsculo do tempo. Olhe, os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei destes dois extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nesta mesma monotonia.

Lívia entrou a combater isto que lhe parecia um insigne paradoxo, mas sem que nenhuma de suas palavras mostrasse a mais leve sombra de pedantismo. Tinha uma maneira natural e simples de dizer as coisas menos vulgares deste mundo. Sabia exprimir as suas idéias em frase elegante, mas despretensiosa.

O prelúdio de uma valsa chamou a atenção dos dois para o baile. Félix convidou-a para valsar; ela desculpou-se, dizendo que se achava cansada.

— Vi-a valsar quando entrei, disse Félix, e afirmo que poucas pessoas valsarão tão bem. Creia na sinceridade do elogio, porque eu não os faço nunca.

A moça aceitou este cumprimento com ingênua satisfação.

— Gosto muito da valsa, disse ela. Não admira; é a primeira dança do mundo.

— Pelo menos é a única dança em que há poesia, acrescentou Félix. A quadrilha tem certa rigidez geométrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação.

— Justamente! exclamou Lívia, como se Félix lhe tivesse reunido em poucas palavras todas as suas idéias a respeito daquele assunto.

— Demais, continuou o doutor, animado pelo entusiasmo da viúva, a quadrilha francesa é a negação da dança, como o vestuário moderno é a negação da graça, e ambos são filhos deste século, que é a negação de tudo.

— Oh! murmurou ela sorrindo.

E o protesto não foi só com os lábios, foi também com os olhos — uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para os desmaios de amor. Félix começou a sentir-se bem ao lado daquela moça, e esquecendo de boa vontade a festa em que só aparentemente figurava, ali se demorou longo tempo com ela, alheio aos comentários estranhos, todo entregue ao capricho do seu próprio pensamento.

Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei que frase de melancólico ceticismo que fez estremecer a moça. Lívia olhou para ele e depois para o chão, parecendo tão absorta que nem deu pelo silêncio que se seguiu ao seu gesto e às palavras de Félix. Este aproveitou a circunstância para examiná-la melhor.

Lívia representava ter vinte e quatro anos. Era extremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas graças, uma coisa semelhante à tranqüilidade da força. Nenhum gesto seu revelava o amor-próprio geralmente inseparável das mulheres bonitas. Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado com ela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas coisas terrestres. Afeiar as suas graças, parecia-lhe um crime; tirar orgulho delas, frivolidade.

Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes do contato das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não eram vivos nem lânguidos; estavam parados.

Sentia-se que ela olhava com o espírito.

Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu. Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félix apressou-se a apanhar-lho.

— Obrigado, murmurou ela distraída.

Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio, pretextou um incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da conversa e do bulício, readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria. A viúva era um pouco sarcástica, mas daquele sarcasmo benévolo e anódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais.

Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que prometera, milagre devido ao doutor, dizia Viana. O certo é que o resto da noite quase não existiram para ninguém mais.

Não passou isto sem que o notassem alguns lábios despeitados. Um cavalheiro disse a uma senhora:

— Não lhe parece que D. Lívia tem um gosto deplorável?

A senhora arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu:

— O Félix não o tem melhor.

A viúva saiu no meio de um geral murmúrio de curiosidade. Félix não se demorou muito tempo mais; meteu-se no carro e foi para as Laranjeiras.

Uma hora depois o baile, a viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranqüilo e profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa.