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Ressurreição (Machado de Assis)/IV

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No dia seguinte partiu Félix para a Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

Alguma coisa, entretanto, havia ocorrido: a primeira notícia com que o saudaram os amigos, apenas ele chegou à cidade, foi que Cecília conquistara o coração de Moreirinha.

O sucessor de Félix, pouco depois que este chegou, não deixou de lhe ir participar a sua boa fortuna, não sei se por fatuidade, se por despicar a dama.

— Dou-lhe os meus parabéns, respondeu Félix; conquistou uma rapariga sossegada, carinhosa, capaz de o compreender...

— Tanto melhor! acudiu o rapaz. O que me faltava era isso mesmo: uma mulher que me compreendesse. Cecília não é positivamente uma alma perdida; não está na linha dessas outras mulheres com quem tenho despendido o meu dinheiro sem colher nada mais que alguns tardios remorsos. É uma moça de bons sentimentos, conserva certa dignidade no vício, tem uma alma nobre, elevada...

Este panegírico durou alguns minutos mais. Dentro de tão pouco tempo descobrira-lhe Moreirinha qualidades desconhecidas para o antecessor. Seria mais néscio ou mais perspicaz? Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o esquecer depressa. Tinha uma fidelidade filha do costume; a sua máxima era não esquecer o amante presente, não recordar o amante passado, nem se preocupar com o amante futuro.

Moreirinha era o amante presente; podia contar com a fidelidade da rapariga, ao menos com as suas boas intenções.

Quando Meneses soube deste desenlace ficou atônito. Julgou a princípio que era apenas uma afobação de Moreirinha; mas logo verificou que não. Foi ter com o médico.

— Meu amigo, disse, peço-te que me desculpes a carta ridícula que te escrevi.

— Que carta?

— A respeito de Cecília. Nunca pensei que fossem fingidas aquelas lágrimas que me entraram pelo coração. Aprendi a não crer tão superficialmente.

— Não aprendeste coisa nenhuma, retorquiu Félix, encolhendo os ombros; não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade.

O episódio dos amores de Cecília foi assunto de conversa no círculo dos rapazes que aqueles freqüentavam. Nem tardou que passasse além. No fim de algum tempo, pouca gente ignorava que a moreninha que passeava todas as tardes em carro descoberto pela Praia de Botafogo era o altar em que o Moreirinha fazia os seus sacrifícios diários e pecuniários. Félix admirou-se ao princípio desta mania de passear tão contrária aos hábitos preguiçosos de Cecília; mas atinou logo com a chave do enigma. Moreirinha não compreendia o que era ser feliz sem publicidade. Para ele, a ilha de Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson.

Entretanto, passara um mês desde o sarau do conselheiro. Félix não se havia aproveitado do convite que a viúva lhe fizera, nem cedido às instâncias de Viana. Encontrou-os, porém, uma noite no Ginásio. Estava ele nas cadeiras quando os viu num camarote da 2ª ordem. No fim do 2° ato Félix subiu ao camarote.

Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar de ser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada. Não falava com a mesma volubilidade da noite do baile. Esquecia-se às vezes de si e dos outros. Duas vezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixar uma pergunta sem resposta.

A conversa, portanto, não foi muito animada. Felizmente Viana encarregou-se de preencher os intervalos com a sinfonia das suas reflexões.

Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quis sair, mas tanto a viúva como o irmão pediram lhe que ficasse. Aceitou o convite e ficou. Do que houve em cena durante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soube absolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo o tempo em observar a moça, que, molemente reclinada na cadeira, acompanhava distraída o diálogo dos atores.

— Em que estará pensando esta moça? dizia Félix consigo. Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?

A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estar apaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo, entrou precipitadamente em cena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa resolução inesperada e enérgica. Então começou entre a dama e o galã um diálogo de sentimento e paixão, um duelo de suspiros, um protestar de fidelidade e constância, que a platéia ouviu com demonstrações de entusiasmo.

— Ama, não há dúvida, continuou Félix a dizer entre si; basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e as lágrimas da dama. Creio que sorri; é de aprovação. Oh! como está divina!

Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato, parecera ter voltado à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora.

Viana pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ela insistiu, e era forçoso ceder. Félix acompanhou-os até o carro.

— Até quando? perguntou Lívia, aceitando a mão que Félix lhe oferecia.

— Até breve.

Seria acaso ou ilusão? Félix sentiu uma forte pressão dos dedos da moça, enquanto esta subia rapidamente para o carro, e ia responder com um aperto ainda mais forte; mas era tarde; a moça já estava sentada, e Viana punha o pé no estribo para subir.

Ilusão era decerto; ilusão ou casualidade. Mas o médico não o percebeu logo, e foi um primeiro erro na maneira de julgar a viúva.

Poucos dias depois do encontro no teatro, dirigiu-se Félix a Catumbi onde eles moravam. Não os achou. Quando Lívia voltou para casa soube da visita de Félix pelo cartão que a mucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a este respeito, a moça respondeu com azedume. Viana estava acostumado às asperezas da irmã, levantou os ombros e saiu.

Félix encontrou-a dois dias depois na Rua do Ouvidor, fazendo compras para a viagem.

— Se adivinhasse a sua visita, não teria saído de casa, disse a viúva.

Félix inclinou-se.

— Por outro lado, estimo ter estado fora; morando eu tão longe, não teria o prazer de recebê-lo segunda vez, e nesse caso antes nada.

— O tílburi encurta as distâncias, observou Félix; procurarei desempenhar-me da obrigação em que estou.

— Da obrigação já se desempenhou; agora...

— Perdão; o seu cumprimento constitui uma obrigação nova.

Despediram–se.

Meneses, que estava na calçada oposta, durante as poucas palavras trocadas entre Félix e a viúva, atravessou a rua e veio ter com o amigo.

— Quem é aquela moça?

— É a irmã do Viana.

— Bravo! é lindíssima.

— É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral. Vê como todos lhe estão com os olhos em cima...

— Se não há indiscrição, disse Meneses depois de a ver entrar em uma loja, queimas os teus perfumes naquele altar?

— Não. Para quê?

— Talvez algum casamento incubado...

— Casar?... disse Félix rindo. A pergunta é tão original que merece um sorvete. Vem ao Carceler.

No Carceler contou-lhe Meneses que andava incomodado e triste. Vivia ele maritalmente com uma pérola que pouco antes encontrara no lodo. Na véspera descobrira em casa vestígios de outro amador de pedras finas. Estava certo da infidelidade da amante; pedia-lhe conselho.

— Não te dou conselho nenhum, respondeu o médico; resolve tu mesmo.

— Mas, se eu pudesse resolver alguma coisa no estado em que estou, não viria falar a um amigo...

— Lisonjeia-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me, se podes; mas não me peças reflexões.

— Mas, no meu caso, que farias tu?

— Coisa nenhuma; pegava no chapéu e saía.

— E se o não pudesses fazer sem dor?

— Hipótese absurda.

— Para ti.

— Naturalmente.

Houve uma pausa.

— Dou-te enfim um conselho, disse Félix.

Meneses levantou os olhos com ansiedade.

— Qualquer que seja a resolução que tomares, continuou Félix, não recues um passo.

— Onde acharei esta resolução?

— Aqui, disse Félix pondo-lhe o dedo na testa.

— Oh! não! suspirou Meneses; a cabeça nada tem com isso; todo o mal está no coração.

— Recorre à cirurgia: corta o mal pela raiz.

— Como?

— Suprime o coração.