Ressurreição (Machado de Assis)/VI
— Então, já não vai para a Europa? perguntou Félix à viúva nessa mesma tarde.
— Quem lho disse?
— Seu irmão.
— Desfiz a viagem, bem contra a vontade dele, que me chamou caprichosa e não sei que mais. Talvez tenha razão. Eu mesma não me entendo às vezes. Esta viagem, que era um desejo ardente, acha-me agora fria. Que lhe parece isto?
— Alguma razão há de haver, ponderou o médico; e eu sentiria se o motivo...
— Se o motivo? repetiu a moça.
Calaram-se e ficaram algum tempo a olhar um para o outro. A explicação, que já os lábios não pediam nem davam, começaram a pedi-la e a lê-la os olhos de ambos.
Lívia baixou os seus.
— Vamos para o terraço, disse ela por fim; a tarde está bonita.
A tarde estava realmente linda. Félix, entretanto, cuidava menos da tarde que da moça. Não queria perder o ensejo de lhe dizer, como se fora verdade, que a amava loucamente. Encostada ao parapeito do terraço que dava para a chácara, a viúva simulava contemplar os esplendores do ocaso; na realidade, afiava o ouvido para escutar a confissão amorosa.
Félix olhava para ela e não ousava romper o silêncio. Quase a soltar dos lábios a palavra decisiva, a si mesmo perguntava se ela não iria pesar no seu destino mais do que imaginava então, e se daquele capricho de momento não resultaria o mal de toda a sua vida. Mas a hesitação foi curta; Félix ia enfim lançar a sorte, quando um escravo apareceu no terraço, a anunciar a visita do Dr. Batista.
— Não quero falar a ninguém, João, disse a moça; estou incomodada.
— Que resposta é essa? perguntou Félix, baixinho, quando o escravo voltou as costas.
— João! disse a moça.
O escravo voltou.
— Eu hoje só posso receber as pessoas mais íntimas de casa, os amigos de meu irmão. Às outras dize que estou incomodada.
O escravo saiu.
— Adota esta explicação?
— Antes essa, respondeu Félix; é melhor para a senhora; sinto-a contudo por mim; não quisera ser envolvido entre os íntimos da casa.
— Quer que eu corrija a ordem que dei?...
— Não peço tanto; não tenho direito a isso; e todavia...
— E todavia?...
Houve um curto silêncio.
— Não me compreende? disse Félix com voz quase sumida.
— Compreendo, murmurou ela, depois de uma pausa; mas receio enganar-me.
— Não se engana, insistiu Félix com calor; amo-a, e seria impossível negá-lo, porque a minha voz e o meu rosto hão de tê-lo dito melhor do que as minhas palavras. Não percebe isso há muito tempo? Não adivinhou já que a esperança do seu amor é para mim toda a felicidade de amanhã? Diga! diga uma palavra só, cruel ou benévola, mas uma e definitiva.
Lívia escutara-o enlevada, e a sua resposta foi mais eloqüente que a declaração do doutor; estendeu-lhe a mão trêmula e fria, e embebeu nos olhos dele um longo olhar de agradecimento e felicidade.
— Ama-me também? perguntou Félix depois de alguns minutos de muda contemplação.
— Oh! muito! suspirou a moça.
E ambos ali ficaram silenciosos, ofegantes e namorados, nesse êxtase dulcíssimo que é porventura o melhor estado da alma humana. Ambos, porque o coração do médico, naquele instante ao menos, palpitava com igual fervor.
— Muito! repetiu Lívia, como se essa palavra fosse apenas um eco do seu pensamento ou uma resposta à muda interrogação dos olhos do médico.
Félix passou-lhe o braço à roda da cintura e puxou-a docemente para si; depois segurou-lhe a cabeça entre as mãos, e inclinou os lábios para lhe imprimir um beijo na fronte. Deteve-o um rumor estranho, uma voz infantil e desconhecida.
Instantes depois apareceu no terraço um menino de cinco anos, criança gentil e esperta, rosada e gorda, como os anjos e os cupidos que a arte nos representa em seus painéis.
— Mamãe! mamãe! gritava o pequeno, correndo a abraçar-se com a mãe e fugindo à mucama que vinha atrás dele.
Lívia recebeu a criança nos braços; beijou-a e pô-la ao colo.
— Apresento-lhe meu filho, disse ela ao médico; estava em casa da madrinha; veio ontem para cá.
E voltando-se para o menino:
— Luís, conheces o Dr. Félix?
O menino olhou para o médico com a expressão pasmada e interrogativa das crianças que vêem uma pessoa pela primeira vez, e voltou-se para a mãe, sem parecer impressionar-se muito. Lívia encheu-lhe as faces de beijos. A criança rindo de prazer, repeliu com as mãozinhas aquela chuva de carícias maternas.
— Ora bem, disse a viúva, quem te deu ordem de andar a correr por aqui?
— Ninguém, respondeu o menino, eu pedi a Clara para me deixar vir; ela não quis, mas eu vim. Não fiz bem, mamãe?
— Fizeste mal. Vai brincar, vai, mas não corras.
— Quem é esse moço? perguntou Luís, olhando outra vez para Félix.
— Já te disse: é o Dr. Félix.
— Ah!
Luís encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez um gesto para descer. Lívia pô-lo no chão.
— Posso ir à chácara?
— Podes; leva-o, Clara.
Luís deitou a correr seguido pela mucama. A mãe acompanhou-o com os olhos até vê-lo desaparecer do terraço.
Durante esta cena, Félix parecera completamente estranho a tudo que o rodeava. Não ouvia as repreensões da moça, nem a tagarelice da criança; ouvia-se a si mesmo. Contemplava aquele quadro com deleitosa inveja, e sentia pungir-lhe um remorso.
— É mãe, repetia o moço consigo; é mãe!
— Olhe, dizia a moça, debruçada sobre o parapeito que dava para a chácara; veja como ele vai correndo...
Félix debruçou-se também; o menino corria efetivamente adiante de Clara que o acompanhava de longe. De quando em quando, parava o menino aguardando a mucama; mas tão depressa esta se lhe aproximava, a criança negaceava o corpo, e deitava a correr outra vez. A mãe parecia esquecida de tudo mais; Félix contemplava-a com religioso respeito. Estiveram assim calados alguns segundos. De repente Lívia voltou-se para o médico:
— Vê? disse ela; a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e aquela criança.
Dizendo isto, deixou pender a fronte; Félix beijou-a ardentemente, mas não pôde dizer nada. A comoção embargou-lhe a voz; a reflexão impôs-lhe silêncio.