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Ressurreição (Machado de Assis)/XXI

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Era já sobre tarde quando a carta chegou às mãos da viúva. Viana descera à chácara, enquanto a irmã dividia a atenção entre os gracejos do filho e o seu próprio pensamento. O menino enchia toda a sala com a sua pessoa; as travessuras dele não eram enfadonhas. Lívia não o contemplava só com os olhos de mãe; via nele como que o elo de ouro entre uma quimera desfeita e uma quimera realizada. Tais eram as suas reflexões quando a mucama lhe veio trazer a carta de Félix. Entregou-lha e saiu.

Lívia estremeceu; a letra do sobrescrito revelava o estado febril da mão que o escrevera. Abriu rapidamente a carta e leu-a.

Quando Luís, numa das suas voltas, se chegou à mãe, achou-a com os olhos cravados no chão, trêmula e pálida. Chamou por ela inutilmente. Agarrou-lhe as mãos e a moça pareceu acordar de um letargo.

— Que tem, mamãe? perguntou o menino, afagando-a com voz lacrimosa.

Lívia não respondera a princípio. A voz da criança chamou-a enfim à realidade. Olhou vagamente à roda da sala, e como se a pouco e pouco lhe voltasse a consciência, dirigiu lentamente os olhos à carta fatal. Tinha-a ainda entre as mãos. Releu-a com ansiedade, levantou-se arrebatadamente, deu alguns passos e de novo se deixou cair na cadeira. O menino correu à porta assustado. O tio entrava nesse momento.

— Que é? disse Viana vendo o ar assustado do menino, e as feições decompostas da irmã.

Lívia entregou-lhe a carta.

A carta dizia assim:

“Lívia

{{d|O que vou fazer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno. O nosso casamento é fatalmente impossível. Não tens nenhuma culpa direta nem indireta na minha resolução. Esta carta, que me condena, será a tua cabal defesa. Adeus.}}

Félix”.

Quando Viana acabou de ler este estranho e misterioso documento, ficou tão pálido como a irmã. Não compreendia nada do que se passava; indignava-o, todavia, o procedimento de Félix. Sufocou a cólera a ver se evitava a explosão da viúva. Olharam-se ambos silenciosamente alguns instantes; o menino tinha-se aproximado e segurava uma das mãos da mãe, olhando para o tio como se esperasse dele alguma explicação.

— Recusa, disse enfim Viana, e nenhuma explicação nos dá do seu procedimento. O ato é tão indigno que não te deve mortificar; quando um homem dá este triste documento da sua lealdade, penso que a mulher que o ama pode dar graças a Deus de o não ter acompanhado até o altar. Espero que penses como eu...

Viana não pôde acabar. As lágrimas, tanto tempo sustidas, romperam enfim dos olhos da viúva, impetuosas e amargas. A dor, de tão concentrada que fora a princípio, fez-se violenta e explosiva; mas o organismo estava tão abalado por tantas comoções, que a infeliz moça perdeu os sentidos.

Quando ela voltou a si era noite; achou-se no seu próprio leito, tendo ao pé de si o irmão e um médico.

O médico falou-lhe e ela respondeu sem saber o que dizia nem o que ouvia. A febre era intensa, mas o médico esperava que no dia seguinte cedesse à energia do remédio que lhe ia aplicar.

Viana ficou só com a irmã, e procurou distraí-la do sucesso da tarde, tarefa inútil porque a viúva não pensava nele; o olhar vago indicava que ainda se não havia feito luz no seu espírito. Às vezes contraía os sobrolhos e fitava o olhar no espaço como se estivesse a recordar-se. Numa dessas vezes volveu os olhos pelo quarto parecendo procurar alguém. A ausência de Félix de todo lhe alumiou o espírito.

Deu um grito abafado e desatou a chorar.

Acorreu o irmão, com palavras de brandura e conselho, dizendo-lhe que nem tudo estava perdido, e que era possível remediar o mal. Lívia não prestava fé a essas vãs consolações; estava entregue ao seu desespero. Abafada com soluços, lavada em lágrimas, soltava gritos de angústia, e convulsivamente se revolvia no leito.

Viana teve medo desse grave estado e mandou chamar o médico. Quando este chegou, já a doente havia sossegado; mas, com as lágrimas, tinha-se ido a razão. O delírio durou toda a noite e parte da manhã seguinte. De tarde a febre declinou um pouco e a doente adormeceu.

Só no dia seguinte, quando o abatimento veio substituir a exaltação, pôde a moça refletir no recente infortúnio. Debalde perguntava a si mesma a causa daquele súbito rompimento do noivo; nada lho explicava. Algum mistério haveria, alguma razão aparentemente legítima, porque à viúva nada lhe dizia o coração que fosse contrário à lealdade de Félix.

Contou-lhe o irmão que havia ido à casa do médico, e não o encontrara, nem lá lhe quiseram dizer para onde fora. Agora, depois de maduro exame, pensava em ir pedir-lhe uma explicação do procedimento.

Lívia desaprovou-lhe a resolução.

— Mas, disse Viana, não podemos ficar assim...

— Podemos, interrompeu a viúva; enquanto estou doente a explicação será natural para os outros. Quando me levantar da cama direi que eu mesma desfiz o casamento. Achaste-me sempre singular; é provável que os outros me vejam com iguais olhos; e tudo se explicará da melhor maneira.

— Mas a explicação dele...

— A explicação dele não é precisa.

Raquel, apenas soube da doença de Lívia, foi passar alguns dias com ela. Naquelas circunstâncias o encontro de ambas foi profundamente triste. A viúva não lhe confiou logo a causa verdadeira da sua enfermidade, mas durou pouco a reserva, porque a ausência de Félix fez impressão na moça, e Lívia julgou melhor dizer-lhe tudo. Era a segunda vez que ambas achavam no seio uma da outra, não a consolação, que não a há para as desilusões recentes, mas o adormecimento momentâneo do coração.

Lívia entrou a convalescer do abalo que lhe dera a fatal carta. Raquel tornara-se enfermeira dedicada e continuou a ser o que sempre fora, amiga afetuosa. A viúva não acreditava na realidade do seu restabelecimento. Em sua opinião, era uma aparência que a realidade desfaria em pouco tempo.

Dez dias depois do rompimento de Félix, apareceu Meneses nas Laranjeiras. Tinha ouvido algumas perguntas relativas ao casamento do médico, que sabia não se ter efetuado, sem que até então transpirasse a causa verdadeira. Soube, porém, da moléstia de Lívia, e a isso atribuiu a demora do casamento.

A moça abafou um suspiro quando o viu entrar. Não era arrependimento; era talvez lástima de si própria, que não pudera aceitar esse coração mais confiante e menos escabroso que o do outro.

Mas se era já impossível uma aliança que a natureza não aconselhara, ainda que o pedira a razão, vinha de molde o amigo a quem confiaria os seus infortúnios. Esse foi o primeiro impulso; o segundo foi, não de orgulho, mas de pudor. O coração teve pejo de ir confessar o seu erro diante daquele mesmo a quem repelira um dia.

Era difícil que semelhante situação se escondesse aos olhos de Meneses. A ausência do noivo era inexplicável; Meneses suspeitou a verdade e Raquel lha confirmou. O fim com que a donzela delatou o segredo confiado foi ainda um sacrifício; pediu a intervenção de Meneses para a reconciliação do médico com a viúva.

— Peço-lhe uma coisa difícil, concluiu ela aludindo pela primeira vez ao amor de Meneses, mas é uma boa ação.

— É uma boa ação, e não é difícil, replicou Meneses olhando para ela fixamente.

Raquel abaixou severamente os olhos. Um espectador atento concluiria, talvez, que a ferida dele não estava longe de cicatrizar, mas que, pelo contrário, a dela continuava a deitar sangue.

Meneses dispôs-se a tentar alguma coisa. Reconhecia que o procedimento de Félix era misterioso; mas não desesperou de lhe descobrir a causa e confiava em que poderia removê-la. Conseguiu saber que o médico se refugiara na Tijuca. Quando estava pronto a ir ter com ele, hesitou, refletiu e recuou da primeira resolução.

Foi preciso que uma nova crise o empuxasse para lá. A viúva recaíra enferma, não tendo podido resistir às longas vigílias e mal dormidas noites. A moléstia desta vez trouxe um caráter menos violento que da primeira vez, mas pertinaz; a febre não era intensa, era constante. O médico assistente não achou que houvesse perigo; recomendou o mais desvelado tratamento, e repouso absoluto de espírito.

Meneses não hesitou; partiu para a Tijuca.