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Ressurreição (Machado de Assis)/XXII

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Quando Meneses chegou à Tijuca eram quatro horas da tarde. A casa de Félix ficava afastada do caminho. O portão estava aberto; Meneses atravessou rapidamente o espaço que ia da estrada à casa e bateu. Veio um moleque abrir-lhe a porta. Meneses entrou precipitadamente e perguntou:

— Onde está o senhor?

— Senhor não fala a ninguém, respondeu o moleque com a mão na chave como se o convidasse a sair.

— Há de falar comigo, insistiu resolutamente Meneses.

O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espírito, acostumado à obediência, não sabia quase distingui-la do dever. Seguiram ambos por um corredor, chegaram diante de outra porta, e aí o moleque, antes de a abrir, recomendou a Meneses que esperasse fora. Perdida recomendação, porque, apenas o moleque abriu a porta, Meneses entrou afoitamente atrás dele.

Era um gabinete pequeno com quatro janelas que o enchiam de luz. Perto de uma janela havia uma rede estendida. Sobre a rede via-se um homem negligentemente deitado com um livro nas mãos.

Era Félix.

Félix levantou a cabeça, deu com os olhos em Meneses, e empalideceu. Meneses não dera um passo mais. Ficaram assim alguns segundos a olhar um para o outro. Enfim, o médico disse ao escravo que se retirasse, e os dois ficaram sós.

O silêncio prolongou-se ainda mais. Da parte de Félix era confusão; da parte de Meneses desapontamento. Viera ele em todo o caminho a descrever na imaginação o estado de Félix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez disso achava-o a ler pacificamente um livro. Quis lançar mão do livro, para conhecer bem até que ponto a sua desilusão era completa; mas o médico rapidamente o afastou.

— Não atendeste à ordem geral que eu havia dado, disse enfim o dono da casa, e creio que só alguma razão poderosa te obrigaria a isso.

— Assim era, retorquiu Meneses, mas a razão acabou e eu volto para a cidade.

Dizendo isto, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para a porta. Parou um instante, caminhou de novo até a rede e proferiu secamente estas palavras:

— Tens consciência do que fizeste?

— Tenho, respondeu Félix; fiz o que me cumpria fazer. Mas, antes de mais nada, vens aqui por inspiração tua ou por mandado de...

— Venho porque era um dever da minha parte livrar-te da vergonha, e a ela da morte.

— Da morte! exclamou Félix levantando-se de um pulo.

O terror que se lhe pintara no rosto fez boa impressão no amigo. Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido. Sentaram-se ambos, e Meneses referiu ao médico os acontecimentos que deixo narrados no capítulo anterior. Félix escutou a narração do amigo com um interesse que não podia vir senão do amor. Meneses concluiu pintando-lhe com as cores que o caso pedia a baixeza do seu procedimento, o desaire que recaía sobre a viúva, e o remorso que o havia de acompanhar a ele, ainda quando daquele triste episódio não saísse nenhuma fatal conseqüência.

Félix mostrou-se profundamente comovido com a narração de Meneses e as reflexões que lhe fizera.

— Tens razão, disse ele quando o amigo acabou de falar; procedi covardemente. Ela ainda me ama... E perdoa-me, não é? Sim, há de perdoar-me... Pobre Lívia! Se tu soubesses como ela tem sofrido por minha causa!...

Meneses, satisfeito, disse-lhe que era indispensável voltar à cidade. Enquanto falava, porém, o rosto de Félix mudou de expressão. A única resposta do médico foi:

— Não! o que está feito, está feito; agora é impossível recuar.

— Impossível! gritou Meneses.

— Impossível, repetiu placidamente Félix.

Meneses levantou-se impaciente e começou a passear. A serenidade do médico mais lhe doía do que indignava, porque alguma razão poderosa devia ele ter para cortar tão peremptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quisera sabê-la e tremia de o interrogar.

O médico, entretanto, deixara-se estar sentado, quase tão tranqüilo como na ocasião em que Meneses lhe entrara no gabinete.

Não era fingida essa tranqüilidade, que durava já de alguns dias, depois de outros, — os primeiros, — que foram de aflitiva tempestade.

O homem não se esconde de si mesmo, e o maior infortúrnio dos corações pusilânimes é sentirem que o são. Quando Félix chegou à Tijuca tinha passado a excitação do primeiro momento; o espírito, fraco de si, e abatido pela imensidade do abalo, não achou na solidão o alívio que lhe pedira. Vieram então muitos dias de luta e de febre, em que ele, para fortalecer o ânimo, lia e relia a misteriosa carta que trouxera consigo. O remédio era antes veneno para a sua alma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdera.

Era isto o que padecia o coração. A consciência padecia também, porque a sociedade, que ele não vira no primeiro instante, agora lhe aparecia como um juiz inflexível, a pedir-lhe contas de uma injúria sem explicação. Às vezes arrependia-se do ato; outras vezes, não se arrependia, mas acusava-se de precipitado e louco. Nunca mais tristemente se revelara a inconsistência do espírito

Com o tempo a consciência foi calando as vozes, e com o tempo, e a distância, e a sua índole variável, se lhe foi aquietando o coração. Aquele homem, que alguns dias antes chorava de desespero, nenhum vestígio guardara de suas lágrimas. Não se lhe apagara o amor da viúva, mas no lugar da paixão veemente, como que ficara apenas uma recordação remota e suave. Esta mudança era em parte obra do seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio; mas em grande parte era um efeito natural dele.

Tal foi a situação em que o achou Meneses. A presença deste trouxe à memória do médico a última crise do coração. A impressão foi grande, não longa; a face do lago, que uma rajada encrespara, voltou à serenidade primitiva.

Meneses passeava de um lado para outro, a observar de quando em quando o médico. Ao seu espírito repugnava a idéia de que Félix recorresse a um meio extraordinário para sair de uma situação difícil, não sancionada pelo coração. Uma causa havia, decerto, que se lhe afigurava grave, e que ele a todo custo queria conhecer. Seus esforços convergiam para esse ponto.

Instado pelo amigo, Félix aludiu à carta que recebera, mas recusou mostrá-la.

— Há nela um segredo, disse ele, que me impede de a comunicar a ninguém. Lívia tem jus ao meu respeito e possui ainda o meu amor.

Estas últimas palavras foram ditas com certa comoção. Meneses não perdeu a esperança de o vencer. A sinceridade era a sua eloqüência; podia-se dizer que ele falava com o coração nas mãos. O espírito de Félix ia cedendo ao encanto; ele mesmo recordava as horas felizes do passado e as saudosas esperanças do futuro. O coração palpitou-lhe com mais força e a imaginação fez o resto. A carta, porém, a fatal carta lhe ocupou logo o pensamento, e a fronte descaiu diante do insuperável obstáculo.

Cansado de lutar, Meneses resolveu partir para a cidade.

— Não sei o que pensarão os outros, disse ele; eu levo a suspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade.

Ouvindo estas palavras, Félix não pode conter um gesto de cólera. A atitude quieta de Meneses o fez cair em si.

— Tens razão, disse ele depois de algum tempo. Quero que pelo menos alguém me reconheça inocente e digno. Dás-me a tua palavra de honra que nada revelarás do que vais ler?

— Dou.

Félix foi buscar a carteira, tirou dela a carta, e entregou-a a Meneses.

Meneses leu o que se segue:

“Mísero moço! És amado como era ooutro; serás humilhado como ele. No fim de alguns meses terás um Cireneu para te ajudar a carregar a cruz, como teve ooutro, por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo, recua!”

A carta não tinha assinatura.

Meneses ficou atônito; mas foi obra de alguns instantes, poucos. Sua índole generosa repelia a idéia de acreditar na revelação que acabava de ler.

— É impossível! disse ele.

Félix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, e replicou:

— Essa é a tua convicção; eu quisera que fosse a minha. Mas que testemunho tens tu contra o que aí vês escrito?

— Não sei, respondeu Meneses com calor, mas é o que me diz o coração. Repugna-me crer que essa pobre senhora... Não, é impossível! Demais, uma carta anônima!

— Põe o nome que quiseres aí embaixo não lhe aumentas nem lhe tiras o valor, se a revelação é verdadeira.

— Quem te diz que é verdadeira?

— Quem me diz que o não é? A dúvida era já bastante para justificar o que fiz. Não foi só o receio do futuro que me impeliu, foi principalmente a lembrança do passado. A traição dela, se a houve, não deve doer nada ao marido que se foi; mas ao marido que vem, a idéia da perfídia anterior, destrói pela base toda a confiança, que é a condição da felicidade. Não sei o que farias tu no meu caso; eu segui o impulso do coração e da razão.

Meneses ouvira atentamente o amigo. Quando ele acabou:

— Creio-te sincero, disse; e compreendo que sofreste.

— Muito!

— Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria esta carta? Não foi um amigo, decerto. Um amigo, se lhe pesasse o teu ato, viria falar-te cara a cara. Um indiferente também não foi. Resta, pois, um inimigo, teu ou dela...

— Dela?

— Ou um interessado: escolhe.

Félix refletiu um instante.

— Inimigo, não sei se os tinha; interessado... em quê?

— Ela é rica; algum pretendente...

— Não havia nenhum.

Meneses não fraqueou na defesa da sua hipótese. Quanto mais atentava na revelação da carta, mais o coração lhe bradava contra ela. Para ele a inocência de Lívia era clara como o sol. Félix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se de a não ter, tão viva e tão profunda.

A noite caíra de todo. Meneses declarou que só voltaria à cidade no dia seguinte.

Félix compreendeu que o amigo não perdera a esperança de o converter, e longe de se irritar agradeceu-lhe a intenção. Era a primeira vez que ele se expandia com alguém a respeito do seu amor; fê-lo com abundância e sinceridade. Não lhe lembrara sequer que Meneses também amara a viúva.

Muitas vezes falaram na carta. Meneses perguntou ao médico em que circunstâncias a recebera. Félix referiu a visita de Luís Batista, o objeto dela, a conversa travada entre ambos, até que a carta lhe chegou às mãos.

A singularidade da visita de Luís Batista não escapou a Meneses:

— Visitava-te esse homem? perguntou ele.

— Nunca.

— Eras amigo dele?

— Havia mais razões para sermos inimigos que outra coisa.

Meneses hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita. Mas o espírito do médico era terreno fecundo para ela. Apenas as perguntas de Meneses lhe deitaram o gérmen, para logo foi lançando raízes e cresceu.

— Crês então que ele?... aventurou o médico.

— Não sei; mas, não te parece curiosa toda essa história de gravuras?

Félix refletiu algum tempo. Como quando os olhos se vão acostumando à meia-luz de um sítio, e começam a distinguir a pouco e pouco os objetos, o espírito do médico entrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquela fatal manhã. O que ele a princípio não vira, apareceu-lhe então claro e evidente. O tom ameno e jovial de Luís Batista, a sua estranha verbosidade, o episódio dos amores tão levemente contados a um homem que não era seu natural confidente, tudo isto com a circunstância da humilhação que recebera quando a viúva lhe fechou a sua sala, enfim a má reputação dele, eram indícios de sobejo para não achar natural a visita que lhe fizera. Mas, como deduzir daqui a autoria da carta?

Meneses resolveu a dúvida naturalmente.

— Se não desses crédito à carta, disse ele, o último de quem te lembrarias seria Luís Batista, porque ninguém faz mal a um homem no mesmo instante em que lhe vai pedir um favor.

Félix aceitou esta explicação; mas o que acabou de o convencer foi uma circunstância até então deslembrada e agora decisiva. O médico levantou-se rapidamente da cadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente de Meneses.

— É verdade, disse; foi ele com certeza! Quando eu li a carta fiquei fulminado. Ele aproximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse só. Obedeceu, mas um sorriso, que então me pareceu feroz indiferença, mas que hoje vejo que era de triunfo, lhe roçou os lábios. Foi ele; oh! sinto que foi ele.

Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista. A convicção, porém, do médico, — sincera, decerto, — era menos sólida e pausada do que convinha. A alma dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias favoreciam e justificavam.

Quando Meneses viu que o maior trabalho estava feito, não teve mais que falar outra vez de Lívia. A placidez do médico desaparecera; todo ele era agora amor e ódio, arrependimento e vingança. A noite foi mal dormida, e quando a aurora os convidou a sair do leito, Félix era totalmente outro. Ardia por ir fazer aos pés da viúva plena confissão da sua indignidade. Era o nome que lhe dava; dar-lhe-ia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outra vez.

Apressaram a viagem; Meneses estava alegre com o resultado da missão; lamentou com o médico a fatalidade do caso, mas estava certo de que tudo ia acabar como devia. Mil idéias cor-de-rosa enchiam o cérebro de Félix, e ambos desceram rapidamente na direção da cidade.