Ressurreição (Machado de Assis)/XXIII

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Apenas chegaram à cidade, Félix despediu-se de Meneses e seguiu para as Laranjeiras. Ia palpitante e receoso; pela primeira vez nesse dia lhe lembrou a doença da viúva. Temeu que fosse tarde. Não era; as janelas estavam abertas. Entrou no jardim; subiu as escadas, cabisbaixo; quando levantou os olhos viu Raquel diante de si.

Raquel, cujo coração era menos filosófico, posto soubesse resignar-se como o de Meneses, não viu o médico sem algum abalo interior. Fê-lo entrar e foi ter com a enferma.

Quando Lívia soube que Félix ali estava, sorriu tristemente e fechou os olhos. Abriuos para contemplar a boa amiga que esperava ao pé do leito. Não estavam molhados. Cobria-os um véu de serena melancolia.

— Agradece-lhe por mim, Raquel, e dize-lhe que me verá quando eu puder sair daqui.

Félix recebeu o recado e sentiu a frieza dele, apesar da doçura da voz que lho transmitia. Era muito contudo; não estaria longe a reconciliação.

A convalescença de Lívia foi mais rápida do que se devera esperar. O intervalo foi aproveitado por Félix em se reconciliar com Viana, que achou dentro de si bastante misericórdia para perdoar o culpado. A submissão do médico o lisonjeou, e o seu arrependimento lhe pareceu o que realmente era, — sincero. Era natural perguntar-lhe a razão do rompimento. Viana achou melhor calar-se; o que ele queria antes de tudo era a reparação do erro.

Lívia consentiu finalmente em receber o médico. Estava na sala, envolvida num roupão branco, com um resto de palidez que a enfermidade lhe deixara no rosto. Nas circunstâncias em que ambos se tornavam a ver não podia ela estar melhor. O ar da moça não era risonho, mas também não era severo. Félix caminhou lentamente para ela, tímido e fascinado ao mesmo tempo. De novo sentia o império que a viúva sempre exercera em seu espírito.

Quando Félix confessou à viúva todo o seu arrependimento e lhe implorou o perdão da culpa que cometera, escutou-o Lívia com grande serenidade, e afetuosa lhe respondeu:

— Não lhe nego o perdão que me pede; seria duvidar do seu arrependimento, e eu creio que é sincero. Podia talvez exigir que me dissesse a causa que o levou...

— A causa é triste de confessar, interrompeu Félix.

— Não lha peço. Mas quer ouvir o resto?

Félix curvou a cabeça.

— Creio no seu arrependimento, e não duvido do seu amor, apesar de tudo o que se há passado. Isto lhe deve bastar. O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós seria uma cerimônia apenas. Seria mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale sonhar com a felicidade que poderíamos ter do que chorar aquela que houvéssemos perdido.

Félix ouviu as palavras da moça cabisbaixo e abatido. Não ousava responder-lhe, nem interrogá-la; mas do seu mesmo silêncio colhia a moça a sinceridade da dor e do arrependimento.

— Se isto lhe dói, continuou ela, vê bem que a culpa não é minha. Eu aceito uma situação não criada por mim, nem também pelo senhor, mas, — como eu lhe dizia, — pela natureza ou pelo destino. No ponto a que chegamos é esta a resolução melhor.

— Não é, interrompeu Félix com impetuosidade, não é a melhor porque ambos perderemos com ela, e nada nos impede a resolução contrária. Creio que não duvide do meu amor; mas digo-lhe que o não compreende, nem avalia. Eu não teria ânimo de lhe propor nas circunstâncias em que nos achamos, um rompimento que...

O sorriso com que a moça o ouvia cortou-lhe a palavra neste ponto. Caiu em si, lembrou-lhe, — que ele facilmente esquecia tudo — lembrou-lhe que lhe não cabia falar de rompimento, e murmurou:

— Não tenho direito de falar assim, e vejo que mereço um castigo...

— Não é castigo, atalhou a viúva, é necessidade. Se alguma consolação pode levar desta última entrevista, leve a certeza de que o amo como dantes, e de que o meu padecimento será ainda maior do que o seu. O casamento é já agora impossível. Eu não sei o que motivou a sua carta, mas imagino que foi alguma dúvida nova a meu respeito. Se nos casássemos, cessariam elas?

— Sim! porque eu hoje creio e vejo o que padeceu por mim. Para duvidar do seu amor seria preciso que houvesse perdido a razão. Demais, continuou Félix enquanto Lívia abanava tristemente a cabeça, — viveremos só para nós, fecharemos a nossa casa aos olhos estranhos...

— Ainda assim o irá perseguir esse mau gênio, Félix; seu espírito engendrará nuvens para que o céu não seja limpo de todo. As dúvidas o acompanharão onde quer que nos achemos, porque elas moram eternamente no seu coração. Acredite o que lhe digo; amemo-nos de longe; sejamos um para o outro como um traço luminoso do passado, que atravesse indelével o tempo, e nos doure e aqueça os nevoeiros da velhice.

Lívia proferiu estas últimas palavras com a voz trêmula, e uma lágrima lho rolou pela face pálida.

— Por que nos separaremos agora que estamos à porta do céu? perguntou Félix. Não me cabe o direito de exigir uma felicidade que repeli tantas vezes; mas, se pudesse entrar na minha alma veria que os meus erros, por maiores que sejam, e são grandes, anima-os sempre um sentimento de amor, e que enfim eu cedo sempre ao grito de minha consciência. A mais bela ação seria perdoar-me esquecendo, e o único modo de esquecer seria voltarmos ao tempo de nossas esperanças.

— Perdoei tudo, e tudo esqueci; apagou-se o passado e nenhum ressentimento me ficou. O que se não apaga é o futuro.

Félix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viúva mal podia encará-lo. Seguiu-se um longo silêncio, interrompido pela chegada de Luís. O menino pôs termo à entrevista. Félix olhou ainda algum tempo para a moça; mas leu-lhe na fisionomia que a resolução era inabalável. Levantou-se para sair.

— Conservaremos a estima recíproca, disse Lívia estendendo-lhe a mão, e espero que me conserve também alguma coisa mais... como eu.

Eram as últimas palavras da moça, vieram entrecortadas de soluços. Félix quis pegar-lhe nas mãos e aproveitar esse passageiro desmaio para conseguir a retratação das palavras. Mas a moça abraçou-se ao filho em cujo seio escondeu o rosto.

— Não faça chorar mamãe, disse Luís enlaçando com os bracinhos o pescoço da viúva.

Félix retirou-se lentamente, com os olhos anuviados, turvo o espírito, o passo vacilante, e transpôs a custo a soleira daquela porta que se lhe ia fechar para sempre.