Ressurreição (Machado de Assis)/XXIV

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Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que é a lei uniforme desta mofina sociedade humana.

Ligeiros e felizes foram eles para Raquel e Meneses, que eu tenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantes ainda hoje. A piedade os uniu; a união os fez amados e venturosos.

A pouco e pouco, o primeiro amor de Raquel se foi apagando, e o coração da moça não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro. Se lho dissessem no tempo em que ela adoecera por amor do médico, levantaria desdenhosamente os ombros, e com razão. Donde se colhe quão acertado é aquele provérbio oriental que diz — que a noite vem pejada do dia seguinte. Qual fosse a aurora que a sua noite trazia no seio não o adivinhara Raquel, mas a sua atual opinião é que não a podia haver mais bela em toda a escala do tempo.

O coronel e D. Matilde, com poucos meses de intervalo, foram continuar na eternidade a doce união que os distinguira neste mundo.

Lívia entra serenamente pelo outono da vida. Não esqueceu até hoje o escolhido de seu coração, e à proporção que volvem os anos, espiritualiza e santifica a memória do passado. Os erros de Félix estão esquecidos; o traço luminoso, de que ela lhe falara na última entrevista, foi só o que lhe ficou.

No tempo em que os mosteiros andavam nos romances, — como refúgio dos heróis, pelo menos, — a viúva acabaria os seus dias no claustro. A solidão da cela seria o remate natural da vida, e como a olhos profanos não seria dado devassar o sagrado recinto, lá a deixaríamos sozinha e quieta, aprendendo a amar a Deus e a esquecer os homens.

Mas o romance é secular, e os heróis que precisam de solidão são obrigados a buscá-la no meio do tumulto. Lívia soube isolar-se na sociedade. Ninguém mais a viu no teatro, na rua, ou em reuniões. Suas visitas são poucas e íntimas. Dos que a conheceram outrora, muitos a esqueceram mais tarde; alguns a desconheceriam agora.

Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe enlutou a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de decadência próxima. Os poucos que lhe freqüentam a casa não reparam nisso, porque a alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de outro tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror.

Para consolo e companhia de sua velhice tem ela o filho, em cuja educação concentra todos os esforços. Luís possui as graças da mãe, apenas modificadas por uns toques varonis. Tem só quinze anos; mas como herdou a índole austera da viúva, e pouco, muito pouco, da viveza de imaginação, parece menos um adolescente que um homem.

Félix é que não iria parar no claustro. A dolorosa impressão dos acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu, rapidamente se lhe apagou. O amor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo. Era a convivência da moça que lhe nutria a chama. Quando ela desapareceu, a chama exausta expirou.

Não foi só isto. A sagacidade de Lívia adivinhara as provações que lhe daria o casamento. Quando de todo se lhe calou o coração, Félix confessou ingenuamente a si próprio que o desenlace de seus amores, por mais que o mortificasse outrora, foi ainda assim a solução mais razoável. O amor do médico teve dúvidas póstumas. A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luís Batista fora o autor da carta; Félix não recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do fato, e bastava ela para lhe dar razão.

A vida solitária e austera da viúva não pôde evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma dissimulação.

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: "perdem o bem pelo receio de o buscar". Não se contentando com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das afeições íntimas, duráveis e consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões.