Romance de uma Velha/I

Wikisource, a biblioteca livre

Chácara em um dos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro: Jardim espaçoso, que parece estender-se para o lado direito, onde fica em meio elegante casa, de que aparece a varanda de colunas e com escada para o jardim; ao lado esquerdo, gradil e portão de ferro, que abre para a rua; bancos de relva; perto do portão, cadeiras rústicas.

CENA I[editar]

VIOLANTE, em luto aliviado trajando decentemente, mas fora da moda, e trazendo touca a antiga e óculos fixos; BRAZ, vestido com igual decência, mas sem pretensões a elegância. Vem ambos conversando para o lado do portão; logo depois CASIMIRO, no maior apuro da moda, de luvas e bengalinha, desce da varanda.

VIOLANTE – No outro tempo não era assim! por fim de contas tudo está mudado.

BRAZ – Tudo, madrinha; e para no-lo provar basta um espelho et coetera. (Sentam-se) Como Casimiro vem chic!

VIOLANTE (A Casimiro e depois de benzer-se) Estás de ponto em branco, e trazes uma gravatinha que te assenta, como a minha touca assentaria na cabeça de tua filha.

CASIMIRO – Vou dar um curto passeio e volto já para tomar café.

VIOLANTE – Vais ver a nossa vizinha? para velho tens bom gosto; mas Deus te perdoe a intenção.

BRAZ – Não apoquente o rapaz, madrinha! anda, Casimiro, aproveita a mocidade.

CASIMIRO – Também tu?...

BRAZ – Defendo a nossa causa; nascemos no mesmo ano, quando o Brasil subiu a reino, descemos ou nos fizeram descer para este vale de lágrimas: 1815! meio século e mais quatro anos só! é a estação das flores! Vai ver a bela vizinha, rapaz.

VIOLANTE – Por fim de contas das três uma: ou namoras por vaidade, ou queres casar, ou pretendes seduzir.

CASIMIRO – Escolha à sua vontade qualquer das hipóteses.

BRAZ – Que suave condescendência! ouviu, madrinha? ele está por tudo; aceita a linda vizinha em todas as hipóteses.

VIOLANTE – Se namoras por vaidade, cais em cheio no grotesco: um velho namorando uma menina, o inverno rendendo finezas à primavera, é como...

BRAZ – É como um general brincando com bonecas, e um frade barbadinho dançando a polca... entretenimentos inocentes...

CASIMIRO – Então casa-me?

VIOLANTE – Viúvo, com dois filhos, e tendo cinqüenta e quatro anos, se casasses com uma menina de dezoito, merecerias que a própria noiva no fim de poucos meses te desse de palmatória. BRAZ – Et coetera, madrinha, et coetera.

CASIMIRO – Resta a sedução: arvore-me em Fanblau ou em Casanova.

VIOLANTE – É nos casasvelhas que a sedução se mostra mais perversa e imperdoável. Por fim de contas, Casimiro, toma cuidado: quem tem telhado de vidro, não atira pedradas.

CASIMIRO – Não a entendo.

BRAZ – Nem pode entender: pois se a madrinha está falando em português!

VIOLANTE – Lembra-te de Clemência, que também é donzela e pobre.

CASIMIRO – Mas, graças a meus desvelos, perfeitamente educada. É capaz de pô-lo em dúvida?

VIOLANTE – Sou.

BRAZ – Magnífico!

CASIMIRO – E esta? Violante, você é a mais impertinente das velhas.

VIOLANTE – Clemência é boa menina por dotes que deve à natureza; tu, porém, deste-lhe uma educação que faz pena; preparaste nela uma boneca e não uma senhora, um atavio de sociedades e não um tesouro do lar doméstico; não a ornaste, afeitaste-a; e por fim de contas tomaste-a jóia falsa, resplendendo por fora, como diamante, e valor intrínseco nulo. Nem ao menos a ensinaste a amar a Deus; mas, em compensação, ela parece amar o próximo desesperadamente.

CASIMIRO – Que quer dizer, Violante?

VIOLANTE – Clemência aceita a corte de quantos lha querem fazer, e sorri a todos os mancebos; é verdade que por fim de contas ela tem bonitos dentes.

CASIMIRO – Minha filha sabe ser agradável sem comprometer-se.

VIOLANTE – Cumpria que fosse mais recatada. As donzelas devem ser como as flores cultivadas em estufas.

CASIMIRO – Para irmãs de caridade? nós cultivamos essas flores ao ar livre da boa sociedade. Você é um anacronismo vivo: quer que tudo se passe como no tempo do rei.

VIOLANTE – Se dirigiu mal a filha, ao filho muito pior.

CASIMIRO – Vamos lá: que acha em Mário?

VIOLANTE – É um vadio: está abandonado à mãe dos vícios, à ociosidade; aos vinte e três anos de idade Mário só se ocupa de andar trocando as pernas.

CASIMIRO – Há um ano que me empenho por obter para ele um emprego no tesouro ou na alfândega; isso, porém, hoje é tão difícil!

VIOLANTE – O irmão da vizinha não é empregado público e sustenta a mãe e a irmã com o seu trabalho.

BRAZ - Mas não tem a honra de sentar-se à mesa do orçamento; é um original que com a vacina do trabalho independente preservou-se da emprego mania. Casimiro é sábio. Mário deve andar trocando as pernas até que o governo lhe dê, à custa do Estado, um par de muletas.

CASIMIRO – Não os posso sofrer mais: vocês entendem-se admiravelmente: nasceram um para o outro: foi pena não se terem casado... Vejam se ainda é tempo.

VIOLANTE – Antes uma boa morte.

BRAZ – De acordo, madrinha. (Casimiro sai pelo portão).

CENA II[editar]

VIOLANTE e BRAZ

VIOLANTE – Por fim de contas no meu tempo não era assim.

BRAZ – A madrinha dá forte e rijo, mas há de cansar. Casimiro é incorrigível, e nesta casa toda a família padece, porque a cabeça desatina: eu já cansei de ralhar; a madrinha também há de cansar.

VIOLANTE – Não hei de; sou teimosa, cumpro meu dever, e agora tenho privilégio.

BRAZ – Privilégio? para ralhar?

VIOLANTE – Sim; enquanto fui pobre, se tivesse vindo morar com eles, creio que seria bem tratada; mas a campainha das minhas censuras acabaria por aborrecê-los, e eu me curvaria à imposição de silêncio; prudente, deixei-me sempre na companhia do meu bom tio e padrinho, e hoje, e desde quatro meses rica herdeira de quinhentos contos de réis por morte desse meu segundo pai, são eles, meu irmão e sobrinhos, que moram comigo, e a velha celibatária elevou-se a irmã e tia veneranda com direito de dizer tudo quanto lhe vier à cabeça.

BRAZ – Anda por aí boa dose de injustiça: Casimiro e seus filhos nunca a esqueceram nem a desamaram.

VIOLANTE – Agora, porém, adoram-me... por fim de contas...

BRAZ – Alto lá, madrinha! fui triste enjeitado que seus pais adotaram e educaram, e a lembrança do benefício não me permite ouvir levantar aleives ao filho e aos netos de meus pais de adoção: são uns cabeças de vento, mas corações de ouro sem liga.

VIOLANTE – Sabes que os amo; não confio porém no juízo deles, e a prova é que não foi a Casimiro, e sim a ti que entreguei a administração dos meus bens e a guarda da minha riqueza.

BRAZ – Deus sabe se teve razão: só o futuro lhe poderá dizer que imenso miolo de hipocrisia e de egoísmo se esconde por baixo desta bonita casca fisionômica.

VIOLANTE – Por fim de contas farei a experiência.

BRAZ – Pois que me preferiu a seu irmão legítimo, que é um velho gaiteiro, mas homem honrado, merecia que, em minha qualidade de procurador de causas, eu aproveitasse na administração da sua fortuna a lição do epigrama de Bocage. Ah! mal pensa no que fez e ao que se expôs! a madrinha não sabe o que vai pelo mundo; a falta de dinheiro tem desenfreado a sagrada fome, sacra fames auri, que é coisa nunca vista; olhe há uma epidemia de pouca vergonha, um frenesi de viver à custa alheia, uma choleramorbus de velhacaria et coetera, et coetera, que a cidade do Rio de Janeiro está cheia de... et coetera, madrinha, et coetera.

VIOLANTE – Pões-me tonta.

BRAZ – E é para tontear! quero dizer que em caso de epidemia ninguém é atacado por sua vontade: as gentes não são de ferro, e a madrinha, confiando-me a gerência da sua riqueza, expôs-me cruelmente ao contágio epidêmico.

VIOLANTE – Tens língua de serpente, Braz; mas fala-me sério: o mundo chegou deveras a tanta baixeza?

BRAZ – Sim, madrinha; o mundo subiu a essas alturas.

VIOLANTE – Santo Breve! no meu tempo não era assim.

BRAZ – Era; cada época tem suas moléstias sociais; no nosso tempo de outrora havia deformidades que horrorizavam; o meu tempo de hoje é outra coisa: é uma estragação que faz gosto! à parte a epidemia reinante, de que há pouco falei, brilham os costumes com todo o esplendor da lua da civilização em quarto minguante e com todo o impulso do progresso em andar de caranguejo.

VIOLANTE – Por fim de contas...

BRAZ – As idades se confundem: salvas as exceções importunas, os meninos vão para a escola pendurados em grandes charutos, e marcam as lições com as cartinhas das namoradas; os jovens fumam ao lasquenet, instruem-se no alcazar, e ceiam em colégios noturnos; os velhos agarram-se à mocidade postiça e no furor de remoçar tropeçam no ridículo e jogam as cambalhotas, como na infância; é o mundo às avessas: não acha que tem sua graça?

VIOLANTE – E as senhoras?

BRAZ – São invioláveis e sagradas; para mim elas fulguram pela irresponsabilidade. Não tenho notícia de costumes censuráveis, de educação falsa, e de erros de senhoras, que não provenham da influência masculina; na vida social os homens fazem-se, as senhoras são feitas; por conseqüência, pecado de senhora, penitência ao homem. Mas... não atassalhemos a sociedade: eu gosto de dar à língua; porém, a justiça deve começar por casa: a madrinha quer cortar na pele dos seus parentes?

VIOLANTE – É o teu ofício: mãos a obra!

BRAZ – Que tem que dizer de Casimiro? estaria rico, se não fosse esbanjador; mas que quer? há duas paixões em moda: é pecar no sexto e ainda em outro dos mandamentos da lei de Deus, e é regra de bom gosto que, quanto mais velho, mais pecador. Como Casimiro há tantos!...

VIOLANTE – É desmoralização! aqueles que deviam ensinar com o seu exemplo...

BRAZ – E ensinam, a pecar pelo menos. Mário não cuida em outra coisa: namora, joga, extravagância, e disse: não; faz mais: passeia em cavalo de raça que é a ocupação das suas horas vagas.

VIOLANTE – E Clemência?

BRAZ – Inviolável e sagrada; para que lhe deram o nome de Clemência? não tem culpa de ser muito clemente; asseguram-lhe todos que é formosa; ora, o trabalho e a fadiga são nocivos à formosura, e, portanto, ela passa os dias a limpar e a delgaçar as unhas que usa crescidas, como a imperatriz da China; o pai se ufana de vê-la realçar-se nas sociedades; é lógico pois que ela despenda com vestidos e enfeites muito mais do que o vaidoso está no caso de gastar com a filha. Eu não vejo que censurar em Clemência.

VIOLANTE – Hás de repetir tudo isso diante deles.

BRAZ – Seria a milésima edição de uma obra, de que não se tivesse vendido um só exemplar das novecentas e noventa e nove; mas vire agora a folha e leia no verso: Casimiro é um negociante modesto, porém honradíssimo; Mário é generoso e sensível; Clemência é honesta, paciente e de ótimo caráter na vida doméstica; são três anjos pelos corações que parecem três diabos pela falta de juízo.

VIOLANTE – Por isso ralharei até rebentar ou corrigi-los.

BRAZ – Tratarei de preparar o meu luto; porque a madrinha rebenta.

VIOLANTE – Braz, é deles que hoje me preocupo; há na vida três idades: a idade em que se vive pelos outros, a idade em que se vive com os outros, a idade em que se vive para os outros; estou nesta última: aos sessenta e dois anos chegaram-me as nozes, quando já não tenho dentes; a minha riqueza é apenas um depósito, pertencerá a vocês mais tarde.

BRAZ – Que tentação! madrinha, não repita isso, que faz calafrios... as cócegas da herança são capazes de fazer-me ir conversar com algum químico sem consciência.

VIOLANTE – Ainda não fiz testamento.

BRAZ – É o que lhe vale: declaro-me inofensivo provisoriamente.

VIOLANTE – O gracejo é de mau gosto.

BRAZ – Gracejo! o caso é muito sério e os dois animais mais sérios deste mundo são o burro e o dinheiro; creio que foi por isso que se chamou burra a arca pecuniária.

VIOLANTE (Vendo Clemência.) – Até que enfim.

CENA III[editar]

VIOLANTE, BRAZ e CLEMÊNCIA, vestida com exageração da moda

BRAZ – Amanheceu.

CLEMÊNCIA – Engana-se; a hora é quase do crepúsculo da tarde. (Chega ao portão.)

BRAZ – Segue-se que me enganei na hora; mas não me enganei com o Sol: sinto que o crepúsculo preceda apenas ao ocaso.

CLEMÊNCIA – Não se aflija; há sóis que brilham também de noite. (Senta-se.)

VIOLANTE – Modéstia até aí! Clemência, o Braz está se divertindo contigo: tu mesma, se te julgasses formosa, como o Sol, não levarias tanto tempo a enfeitar-te diante do espelho.

CLEMÊNCIA – Que erro! só as feias fogem do espelho. O toucador tem encantos!... é claro que não falo de mim; quando, porém, uma moça bela e gentil, em pé, defronte do espelho, se embevece, contemplando a sua imagem, ao mesmo tempo que com suave e preguiçoso pente alisa as ondas de seus formosos cabelos, e admira o contraste da negrura deles com o marfim de seus ombros magníficos, e sorri de indizível satisfação que ainda se exalta com o reflexo da graça do seu riso, do mimo da sua boca, da brancura e pureza de seus dentes, da flama celeste, irresistível do seu olhar... é claro que não falo de mim... criatura feliz, privilegiada, rainha de corações... oh! o tempo corre e ela o não sente... as horas passam no gozo do êxtase... da bem aventurança da consciência...oh! o espelho é tão doce!... tão embriagador!... tão feiticeiro!... titia, às vezes eu fico aí presa manhãs... tardes inteiras...

BRAZ – É claro que ela não fala de si.

CLEMÊNCIA – Só conheço um enlevo igual a esse.

VIOLANTE – Juro que não será ocupação séria.

CLEMÊNCIA – É o baile, titia.

BRAZ – Ao menos é expansiva e franca: então o baile...

CLEMÊNCIA – É a festa do amor e o triunfo da beleza; o baile é a liça ruidosa e fulgurante das senhoras que se disputam a primazia, combatendo-se com os olhos, com os sorrisos, com as graças do semblante, com a gentileza do corpo, o espírito e as prendas, com os brilhantes que ofuscam, com o bouquet, com o leque delicado que perguntam e respondem, e então... a mais bela... não falo de mim, repito; a mais bela suspira surpreendida pelo fim da noite que voara, e em que ela esquecera o passado, e não pensara no futuro excitada pela música, arrebatada pela valsa, embriagada de incensos, aturdida de elogios, soberana de escravos, ídolo de admirações, ensurdecida pelos hinos, e feliz, imensamente feliz, porque a luz da sua beleza resplandeceu como a flama do incêndio, deixando o fogo em vinte ou mais corações...

VIOLANTE – Misericórdia! por fim de contas no meu tempo não era assim.

CLEMÊNCIA – Era, titia; ou no seu tempo não havia moças.

BRAZ – Mas em último caso o que dá de si o baile?

CLEMÊNCIA – Dá antes de tudo o gozo do que chamam vaidade, que é a poesia da vida da moça bela e gentil. A vaidade! falem de nós os senhores que morrem por comendas, títulos, grandezas, e que põem em guerra a humanidade para serem ministros de estado só pelo gosto de trazerem ordenanças atrás dos carros: a vaidade! que seja vaidade; a nossa é menos nociva.

BRAZ – Concordo, menina, concordo, palavra de honra; mas além da satisfação da vaidade...

CLEMÊNCIA – No baile a mulher procura, e acha, ou pode achar a realização da sua única esperança de futuro, o amor, e pelo amor um marido apaixonado...

BRAZ – Bravo! um amor violento, porque desenfreia na valsa, suave, porque engoma contradanças, e cheio de fogo, porque recorre aos sorvetes, que nunca faltam no baile!

VIOLANTE – Amor e marido apaixonado a compasso de música! hão de ser bons: prefiro o meu tempo, em que as donzelas se casavam pelo juízo dos pais; hoje em dia as moças casam-se pelo cálculo dos noivos, quando são ricas, ou por vento de felicidade rara, quando Deus permite.

CLEMÊNCIA – Que blasfêmia! é duvidar do poder da beleza, e descrer a influência dos anjos humanos.

BRAZ – Pois eu digo que a madrinha tem razão; a civilização e o progresso material mataram o amor, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro; perdão... eu vou demonstrá-lo. O amor é uma espécie de sistema representativo, porque sem oposição degenera em água morna; o amor vive de desejos contrariados, de esperanças duvidosas, de saudades agridoces; tem o seu encanto no mistério, a sua força nos obstáculos, o seu brilho na adversidade; adora o segredo das negociações pendentes, como um ministro dos negócios estrangeiros; maldiz da luz e da publicidade, como um chefe de polícia, e salta por cima do direito e das leis, quando isso lhe faz conta, como o poder executivo.

CLEMÊNCIA – E depois disso...

BRAZ – A civilização e o progresso acabaram com todos esses elementos da vida do amor; para a saudade não há mais distâncias separadoras, por causa das estradas de ferro; o doce mistério de uma cartinha amorosa não se observa mais: os namorados vão ao Jornal do Commercio e escrevem para todos lerem: “C... Adoro-te sempre; hoje à tarde espera-me à janela, e me verás passar no meu cavalo baio; guarda-me a primeira valsa no baile do barão; não quero que dances com o moço de bigodes: teu louco apaixonado... E.” Já vê? o amor caiu na publicidade dos anúncios a seis vinténs por linha, e manifesta-se a pataca e meia.

CLEMÊNCIA – Está gracejando...

BRAZ – Dantes os lampiões a azeite deixavam à noite recantos escuros, onde o amante esperava ansioso o recado ou a resposta da amada; hoje veio a iluminação a gás e dissipou as sombras amigas; dantes os pais escondiam as filhas, e alguns minutos de confidência secreta eram raros favores devidos à astúcia ou ao acaso; hoje um moço e uma moça tratam do que chamam de amor, em casa, no baile, no teatro, no passeio, sem cuidados, nem cerimônias, e exatamente como dois agiotas que na praça do comércio ajustam ações de uma empresa, de que eles próprios desconfiam; por conseqüência...

CLEMÊNCIA – Há de ser curiosa a conclusão!

BRAZ – Por conseqüência o amor, o verdadeiro amor, privado dos seus elementos de vida e de estímulo, desertou, fugiu para longe da cidade do Rio de Janeiro, onde tomou-lhe o lugar o cálculo enfeitado pela cortesia; não há mais amantes, há calculistas; não há mais amadas, há calculadas.

CLEMÊNCIA – Então... atualmente o amor...

BRAZ – É uma operação de aritmética.

CLEMÊNCIA – A beleza, as graças, o merecimento de uma senhora....

BRAZ – São agradáveis orações incidentes no período gramatical do casamento.

CLEMÊNCIA – E a oração principal?

BRAZ – O dinheiro: prova irrecusável; o Sol tem já vinte anos de idade, e ainda não conseguiu casar.

CLEMÊNCIA – Porque ainda não quis escolher.

BRAZ – Pois escolha, e se alguma lua minguante com um dote avultado lhe disputar o escolhido, verá que, apesar da luz do Sol, fica solteira.

CLEMÊNCIA – O senhor calunia a sociedade e ofende a formosura; titia, freqüente comigo os bailes e o teatro, e verá o desmentido eloqüente. .

VIOLANTE – Não... não... perguntariam e saberiam quem sou... e chegariam ao conhecimento da minha herança de quinhentos contos de réis...

CLEMÊNCIA – Que importa isso?

VIOLANTE – Não quero expor-me a roubar-te os namorados.

CLEMÊNCIA (Desatando a rir) – Ah! ah! ah!

BRAZ – Não ria; juro que a madrinha seria sua rival preferida por muitos.

CLEMÊNCIA (Rindo-se mais.) – Ah! ah! ah!...

BRAZ – Preferida, mostrando-se mesmo de touca e óculos, como está.

CLEMÊNCIA (Rindo cada vez mais.) – Ah! ah! ah!

VIOLANTE – Estás me provocando!

CLEMÊNCIA – Que extravagante idéia!

BRAZ – Caso de aposta...

VIOLANTE – Braz...se não fosse o ridículo!

BRAZ – Vale a pena pela lição.

VIOLANTE – Aposto.

BRAZ – Designe o seu mais ardente apaixonado! (A Clemência.)

CLEMÊNCIA – Um é pouco: designarei... (Pensando.) três, não bastam?

VIOLANTE – Que batalhão tem ela!

CLEMÊNCIA – E quem perder a aposta?

VIOLANTE – Recolher-se-á ao convento d’Ajuda por dois anos; eu farei todas as despesas perca quem perder.

CLEMÊNCIA – Aceito, reservando-me o direito de perdoar.

BRAZ (Pondo a mão no ombro de Clemência.) – Coitada da recolhida!

CENA IV[editar]

VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA e MÁRIO

MÁRIO – Titia! (Beija a mão a Violante.) – Senhor Braz! (Aperta a mão de Braz.)

CLEMÊNCIA – Vens de má cara. (Aperta-lhe a mão.)

MÁRIO – Fui a um almoço dado à Ristori; antes lá não fosse, éramos trinta os festejadores do gênio... e dos trinta vinte e nove titulares, comendadores, ou filhos de barões e viscondes, de homens altamente condecorados... a única exceção fui eu...

BRAZ – Desataste a chorar.

MÁRIO – Eu tenho idéias... declarei-me republicano; era um recurso...

BRAZ – E chamam tolo ao Mário!

MÁRIO – Tolo?... mas isto não deve continuar assim; é indispensável que nos enobreçamos, para que eu não torne a ser exceção, e para que Clemência case com algum titular, ou pelo menos capitalista rico.

CLEMÊNCIA – Obrigada; não preciso...

VIOLANTE – Como porém se há de improvisar a tua nobreza, cabeça de vento? nossa família foi sempre honrada, mas nem de longe tem cheiro de fidalguia; meu avô foi alfaiate, e com fama de boa tesoura...

MÁRIO – Ninguém mais se lembra dele, e a titia, em vez de recordar essa desconsolação, bem podia resolver o problema.

VIOLANTE – Como?

MÁRIO – Que falta lhe fazem dez ou doze contos de réis? com eles dados ao tesouro meu pai ficava em quinze dias barão da guerra, ou barão do hospício...

BRAZ – Mas o teu republicanismo?

MÁRIO – Deixei-o no almoço; a titia há de pensar na hipótese; agora tenho outros cuidados. Clemência, é imprescindível que eu depene o jardim... preciso de um cesto de flores... consentes?

CLEMÊNCIA – Que há?

MÁRIO – Uma atrocidade. Certa súcia, indigna quadrilha de perversos, pretende esta noite patear a mais bonita dançarina do alcaçar; é verdade que ela dança horrivelmente; mas é o mesmo: os habitués de bom gosto vão defendê-la, e haverá chuva de flores, e tempestade de murraças; não posso faltar.

CLEMÊNCIA – É parvoíce e escândalo brigar por semelhante gente.

MÁRIO – Não é da tua conta; quero um cesto de flores.

VIOLANTE – Não hás de ir.

MÁRIO – Hei de, titia; é ponto de honra. Clemência, manda depenar o jardim... dois cestos não serão demais... até já... vou ver Hipogrifo...

CENA V[editar]

VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, MÁRIO (que ia sair e volta), CASIMIRO, IRENE e LAURIANO; logo depois criado que traz o café, de que todos se servem

BRAZ (A Mário) – Não vais ver o Hipogrifo?

MÁRIO (A Braz) – Esta moça é até capaz de fazer-me esquecer o meu cavalo.

CASIMIRO – Trago para o jardim a rainha das flores. (Cumprimentos de todos.)

MÁRIO (A Lauriano) – Disseram-me que o folhetim da Reforma sobre as últimas corridas do Prado saiu da sua pena?

LAURIANO (A Mário) – Um rude ensaio... não entendo da matéria... desculpe o folhetim.

MÁRIO (A Lauriano) – Ao contrário, admirável! obrigadíssimo por Hipogrifo!

CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Li o seu folhetim, e gostei muito; obrigada por Mário.

CASIMIRO (A Irene) – Espanta-me que eles possam pensar em outra coisa que não seja a sua formosura!

IRENE (A Casimiro) – O senhor teima em zombar de mim. (Trocando um olhar com Mário.)

VIOLANTE (A Braz) – Braz, no meu tempo não era assim; por fim de contas olha a cara desfrutável de Casimiro.

BRAZ (A Violante) – No seu tempo não era assim; mas era de outro modo, que vinha a dar na mesma coisa.

CLEMÊNCIA (Levando Irene pelo braço) – Dª. Irene, você passa a noite conosco?

IRENE (A Clemência) – Não posso; Lauriano tem trabalho urgente, e minha mãe não permite que eu fique sem ele.

CLEMÊNCIA (A Irene) – Além da felicidade da sua companhia, só você, ficando conosco, poderia conseguir obstar uma grande imprudência...

IRENE (A Clemência) – Qual?

CASIMIRO (Indo a Irene) – Protesto contra o monopólio; Clemência não tem o direito de usurpar-nos dª. Irene. (Traz Irene a sentar-se e conversa com ela.)

MÁRIO (A Braz) – Não acha que meu pai está caindo no ridículo? (A Lauriano) Magnífico folhetim! venha amanhã à tarde visitar Hipogrifo.

CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Dá-nos a sua companhia esta noite? esperamos algumas famílias amigas: o seu sacrifício será mais suave.

LAURIANO (A Clemência) – As famílias que espera serão por certo muito amáveis; mas só por quem tão cativadora me fala o sacrifício é não poder ficar.

CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Sei que trabalha assíduo, e que hoje tem apressada tarefa, mas eu sou egoísta, e apraz-me experimentar o que mereço; demore-se aqui até a meia-noite, ainda que depois trabalhe até o romper da aurora.

LAURIANO (A Clemência) – Se eu chegasse a acreditar que o deseja!

CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Gosto de ser déspota: ordeno.

LAURIANO (A Clemência) – E o escravo obedecerá feliz.

VIOLANTE (A Braz) – O que observo me põe a cabeça à roda. (A todos.) É quase noite... porque não entramos?... (Levantam-se todos.)

CLEMÊNCIA (A Irene) – Seu irmão fica; é necessário que Mário não nos deixe, esta noite haverá desordem no alcaçar, e ele quer ir...

IRENE (A Clemência) – Desordem... no alcaçar?... pois não há sempre?... (A Mário) Quando há novas corridas, sr. Mário?

MÁRIO – Daqui a dois meses... V. Ex. irá ao Prado?

IRENE – Desejo muito; Lauriano prometeu levar-me.

MÁRIO – Sublimizarei Hipogrifo...

IRENE (Mais baixo) – Sinto-me ditosa, porque vou passar a noite em sua casa...

MÁRIO (A Irene) – Logo esta noite... quando um ponto de honra me aparta...

IRENE (A Mário) – Ah!... perdão... não ouso pedir-lhe a preferência de algumas horas que me aditariam... sei bem que pouco valho...

CASIMIRO (A Braz) – Mário tem tomado uns modos tão inconvenientes que começa a desagradar-me... não reparas!

BRAZ (A Casimiro) – Estou vendo... é claro que ele gosta da vizinha; pendor da família!

IRENE (A Mário) – Se eu tivesse poder sobre o senhor, exigiria que ficasse...

MÁRIO (A Irene) – Exige de um soldado a deserção na hora da batalha! esperam-me, dª. Irene; palavra de honra que contam comigo...

CASIMIRO – Não vais hoje ao alcaçar, Mário?

MÁRIO (A Braz) – Já viu esta?... (Alto.) Não, senhor; hoje passo a noite em casa: meu pai quer o meu bilhete?...

CASIMIRO – Esqueces que hoje a noite é de recepção, adoidado?

MÁRIO – Ah! é verdade! mais uma razão para que eu não saia de casa.

VIOLANTE (A Braz) – Braz! Braz! por fim de contas no meu tempo não era assim. (Vão-se todos para a casa; Braz conduz Violante, Lauriano acompanha Clemência. Mário apodera-se de Irene, Casimiro de mau modo segue perto destes dois.)

FIM DO PRIMEIRO ATO