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Romance de uma Velha/III

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Sarau em casa de Violante; a grande varanda sobre o jardim que fica ao fundo; portas aos lados comunicando com o interior da casa; ao lado direito parece ficar o salão da dança e da música.

CENA I

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CASIMIRO e IRENE

IRENE – Basta, senhor! não posso ouvi-lo mais; até hoje tenho tolerado lisonjas que me pareciam gracejos de um homem idoso a uma menina; nem um só instante, porém, autorizei pretensões, que, ainda mesmo sendo honestas, me causariam repugnância. Agora o senhor acaba de levar as suas impertinências até um ponto, além do qual me aviltaria com a injúria...

CASIMIRO – Calunia as minhas intenções... atenda-me, bela Irene!

IRENE – Lembrou-me a tempo a pobreza, e a triste posição da minha família... eu não devia ter entrado nesta casa... não é aqui o meu lugar... deixe-me... quero ir ver meu irmão.

CASIMIRO – É uma injustiça... protesto... não há de retirar-se... não perturbará com um desgosto esta reunião...

IRENE – Deixe-me passar... senhor...

CENA II

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CASIMIRO, IRENE e VIOLANTE

CASIMIRO – Mana, reclamo a sua intervenção contra a nossa bela vizinha, que pretende retirar-se, supondo-se com dores de cabeça... (A Irene) por quem é! (A Violante) eu as deixo... mas você, Violante... prenda dª. Irene aqui.

CENA III

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IRENE e VIOLANTE

VIOLANTE – Que tem, menina?

IRENE – Tenho... seu irmão o disse, minha senhora... uma forte enxaqueca... eu não devia ter vindo... é castigo...

VIOLANTE – Enxaqueca! ah! eu sei o que isso é; e por fim de contas o egoísta queria obrigá-la a ficar! enxaqueca menina, vou chamar já seu irmão para conduzi-la. Coitadinha! (Indo-se)

CENA IV

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IRENE, VIOLANTE e BRAZ

BRAZ – Não vá.

VIOLANTE – Por que?

BRAZ – A enxaqueca de dª. Irene é um pretexto generoso...

IRENE – Senhor!

BRAZ – Não há murmurador que não seja curioso; nas reuniões e em toda parte o meu ofício é espreitar: nobre menina, eu ouvi tudo.

IRENE – Ah!

BRAZ – Não curve a fronte, onde julgue o diadema da honestidade; mas não há razão nem para tanto vexame, nem para tão brava revolta.

IRENE – Não há razão?

BRAZ – Madrinha, parvoíces de Casimiro! no meio de um fogo volante de juramentos de amor, o velho namorado lembrou a esta menina a humilde posição social de sua família, e a insuficiência de seus recursos, e procurou deslumbrá-la com a riqueza que ele espera partilhar com a irmã, meio milhão; explicou-se porém de modo, que dª. Irene o entendeu mal.

IRENE – Do que ouvi a um insulto é pequena a distância...

BRAZ – Está confessando que não houve insulto...

VIOLANTE – Casimiro é tão capaz de todas as asneiras, como incapaz de uma ofensa.

IRENE – Ainda assim... devo, quero retirar-me.

BRAZ – Que teimosa! escute; a senhora não pode deixar-nos; a madrinha e eu formamos aqui uma espécie de maçonaria, em que ninguém mais devia entrar; a menina porém acaba de iniciar-se à força pela dignidade com que se houve repelindo Casimiro, e agora é fato consumado, está maçônica... eis o toque... (Beija-lhe a mão)

VIOLANTE – Entendo, Braz... ela há de ficar...

IRENE – É impossível... perdão, minha senhora... eu desprezo o dono desta casa.

BRAZ – Dª. Irene, o irmão da dona desta casa tem um filho...

IRENE – Sobrinho de uma senhora riquíssima, de quem será um dos herdeiros: eu o sei.

BRAZ – Meio ou muito estouvado; mas bom e elegante rapaz, a quem uma bela e ajuizada noiva pode bem fazer assentar a cabeça.

IRENE – Sim... confesso... eu o amava... amo-o talvez ainda; mas hei de vencer este amor: o pai de Mário abriu-me os olhos.

BRAZ – Já não é pequeno favor: e agora, com os olhos abertos, que vê?

IRENE – Vejo o meu horizonte, e não quero sair dele; há certas flores que se amesquinham, e, em vez de vicejar, desabrocham como que em constrangimento, quando a riqueza e o luxo as cultivam por meios artificiais fora dos seus climas; as moças pobres devem ser assim. Cada qual no seu horizonte; casamentos desiguais são erros perigosos; procurarei um marido entre os artistas ou os operários laboriosos.

VIOLANTE – Menina, meu sobrinho pertence absolutamente ao seu horizonte, menos pelo juízo e pelo labor; já vê que nem mesmo a iguala.

IRENE – Agradecida; este amor foi para mim até hoje doida fantasia poética; se, porém, amanhã o sr. Mário me pedisse em casamento, eu o rejeitaria; perdão... quero meu pobre irmão... quero ir-me embora...

BRAZ – Vamos procurá-lo; aceita o meu braço? pode aceitá-lo, não é de artífice, nem de artista, mas é de arteiro et coetera...

IRENE – Seja o que quiser; tenha a bondade de me levar a meu irmão.

BRAZ – Iremos pelo caminho mais longo para chegar mais depressa; até já, madrinha; verei se consigo serenar este anjinho encolerizado; menina, fui amigo de seu pai... no outro tempo... (Indo-se com Irene) antes não tivesse sido, e contasse trinta anos de menos... porque em tal caso, palavra de honra, tomava a enxó de carpinteiro, ou o buril de estatuário, para viver no seu horizonte. ( Vão-se os dois)

CENA V

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VIOLANTE e AUGUSTO

AUGUSTO – Enfim, minha senhora, a fortuna, desde duas horas cruel, me depara o ensejo mais ardentemente almejado.

VIOLANTE – Para que, sr. doutor?

AUGUSTO – Para assegurar a v. ex. a profunda energia do terno sentimento que me inspirou e a pureza das minhas intenções...

VIOLANTE – Eu não compreendo... e a perturbação... o vexame... seria possível, sr. doutor?

AUGUSTO – A minha maior glória fora merecê-la em casamento...

VIOLANTE – A proposição me lisonjeia... mas quando penso que vou fazer sessenta e três anos daqui a dois meses.

AUGUSTO – Diana de Poitiers era bela nessa idade e Ninon de Lenclos inspirou ardente paixão aos oitenta anos.

VIOLANTE – Por fim de contas, não conheci essas senhoras...

AUGUSTO – É natural; elas floresceram em outros séculos.

VIOLANTE – Mas aposto que não usavam, como eu, de óculos e touca; ah, sr. doutor, quando o considero tão jovem, e tão bonito, com tanto direito a ser esposo de alguma linda moça...

AUGUSTO – Não me conhece ainda; jovem, tenho já austeros costumes; aborrecem-me essas meninas, para quem a vida consiste em vaidades e loucuras; o meu belo ideal é a majestade da senhora que passou além dos limites da idade dos desvarios; excelentíssima, nós nascemos um para o outro; v. ex. é para mim o páramo da vida tranqüila, a beatificação pela serenidade; eu sou o desinteresse que assegura a dedicação, o amor que garante a felicidade, e a ciência do direito que defenderá sem ambição a sua fortuna ameaçada pelos velhacos que enchem o mundo, e dos quais sou mortal inimigo.

VIOLANTE – Eu me sinto comovida... a ventura é tão grande... tão inesperada...

AUGUSTO – (Ajoelhando-se.) – Oh! serei pois tão ditoso!... (Beijando a mão de Violante.)

VIOLANTE (Suspendendo-o.) – Tenha dó da minha reputação... e dos tormentos do meu pudor; o seu pedido exige reflexão... deixe-me pensar... agora não estou em mim... mas... aqui mesmo... nesta varanda, receberá a minha resposta às duas horas da madrugada em ponto.

AUGUSTO – Que bárbaro adiamento da bem-aventurança que me sorria...

VIOLANTE – Também a mim me custa... creia; dou-lhe a mão a beijar para consolar-nos... mas depressa... que não chegue alguém...

AUGUSTO (Beijando a mão.) – Delícia! delícia!

VIOLANTE – Aí vem minha sobrinha...

AUGUSTO – Até às duas horas. (Vai-se.)

CENA VI

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VIOLANTE e CLEMÊNCIA

CLEMÊNCIA – Muito bem, titia!

VIOLANTE – Estavas me espiando?

CLEMÊNCIA – Para que? a sua aparente vitória é manifesta: há meia hora Leopoldo, que simula desdenhar-me, fez-lhe em um passeio proposição semelhante à do dr. Augusto e recebeu a mesma resposta.

VIOLANTE – Por fim de contas uma hora antes Polidoro foi o primeiro.

CLEMÊNCIA – Acredito; mas porque a titia marcou aos dois e talvez também a Polidoro o mesmo lugar e a mesma hora para a decisão?...

VIOLANTE – Para te chamar e te pedir que me aconselhasses na escolha do noivo.

CLEMÊNCIA – Estás pois resolvida a casar-se?

VIOLANTE – Que pergunta! fala a verdade: no meu caso que farias?...

CLEMÊNCIA – Não sei responder, porque ainda não tenho a sua idade.

VIOLANTE – Fica pois sabendo que para a mulher o casamento é aos dez anos um brinquedo, aos quinze sonho dourado, aos vinte empenho aflitivo, aos trinta sede devoradora, aos quarenta desesperado desejo, e aos sessenta e daí por diante mais do que paixão, desatinada fúria; faze idéia, como estou entusiasmada! Clemência, em sinal de regozijo, proponho-te a anulação da nossa aposta.

CLEMÊNCIA – Rejeito esse favor, e peço outro: rogo-lhe que me conceda uma dilação.

VIOLANTE – Dilação de que?

CLEMÊNCIA – Da escolha do seu noivo; se se julga invencível, dê-me oito dias e verá que reconquisto os meus três apaixonados.

VIOLANTE – Oito dias é impossível, morro por casar-me; tu não me concederias oito horas, eu cedo três dias à tua louca vaidade.

CLEMÊNCIA – Três dias?... aceito. Confio na sua palavra; mas trema, titia, porque perdeu as suas vantagens. Veja bem, que tenho três dias. (Vai-se.)

VIOLANTE – Eu te daria trezentos sem receio de ser vencida. ( Vai-se)

CENA VII

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POLIDORO e LEOPOLDO

LEOPOLDO – O seu procedimento não é de amigo, parece antes verdadeira traição.

POLIDORO – Em primeiro lugar, amigos amigos, negócios à parte; em segundo, qual de nós pode mais queixar-se do outro?

LEOPOLDO – Eu, que me apaixonei por dª. Violante logo que lhe fui apresentado, logo que a vi, logo, logo...

POLIDORO – E se eu lhe dissesse que por ela me apaixonei antes de tê-la visto?

LEOPOLDO – É inverossímil: eis a prova da sua deslealdade comigo.

POLIDORO – Sr. Leopoldo, estamos sós; deixemo-nos de histórias; não há deslealdade, nem amor pela velha em nenhum de nós, o que ambos queremos é pescar o meio milhão.

LEOPOLDO (Batendo no ombro de Polidoro) – Maganão! como é despachado! pois sejamos amigos; embora eu não seja ambicioso, como o senhor, achando-me namorado de dª. Violante, mas respeitando os seus cálculos, proponho-lhe que abandone o seu projeto de casamento, e se eu me casar com a velha dar-lhe-ei cinco por cento do que ela teve em legado.

POLIDORO – Aceite a mesma proposição, tal e qual.

LEOPOLDO – Mas então o senhor é um homem intransigível!...

POLIDORO – Faço-lhe a mesma observação, tal e qual.

LEOPOLDO – Deste modo nunca nos entenderemos.

POLIDORO – Parece.

LEOPOLDO (Batendo-lhe no ombro.) – Maganão! sejamos amigos eim? transação aceitável; de nós dois o vencedor, o feliz, indenizará o outro com os tais cinco por cento, pagos oito dias depois do casamento com a velha; eim?

POLIDORO – Há perfeita igualdade nas condições; salvam-se as entradas, como se diz no empate do trinta e um. Convenho. Palavra de honra?

LEOPOLDO – Na praça só o escrito obriga; assinaremos um contrato bilateral feito em regra e capaz de aparecer... porque...

POLIDORO – Perfeita igualdade de condições: convenho.

LEOPOLDO – Estamos de acordo. Maganão! e como vai de esperanças? vejo bem que a velha está pendendo para o seu lado...

POLIDORO – Qual! arrepia-me quando lhe falo em amor; mas hei de teimar...

LEOPOLDO – Que diabo! então é uma fortaleza; comigo é dura e muda como um rochedo; o senhor já lhe propôs à casamento?

POLIDORO – Ora! que pergunta! e o senhor?

LEOPOLDO – Eu ainda não me animei.

POLIDORO – Tal e qual como eu!

LEOPOLDO – Maganão!... creio que é melhor irmos dançar... mas sempre amigos..

POLIDORO – Perfeita igualdade de condições: convenho. (Vão-se.)

CENA VIII

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VIOLANTE e LAURIANO (Ouve-se o canto de uma senhora.)

VIOLANTE – Conhece aquela senhora que canta?...

LAURIANO – De nome e de pessoa; mas não tenho relações com a sua família.

VIOLANTE – Admira que a não felicite com a sua amizade; dizem-me que ela é disputada pelas mais escolhidas sociedades.

LAURIANO – Eu não freqüento as sociedades; por exceção vim aqui; sou muito pobre para subir até o mundo elegante, que custa muito caro.

VIOLANTE – Procure enriquecer depressa; o trabalho não basta para tanto; mas com o seu merecimento bem pode fazer casamento rico.

LAURIANO – As moças ricas não olham para mim... eu também não penso em amar inutilmente alguma delas...

VIOLANTE – Há casamentos de conveniência, em que uma senhora, ainda mesmo que não seja moça, pode enriquecer um mancebo, no seu caso.

LAURIANO – Na minha pobreza chegarei talvez a vender o meu relógio... que foi de meu pai; mas por certo que não venderei o meu coração.

VIOLANTE – Quem fala em venda de coração? não exagere o melindre. Por fim de contas figuro uma hipótese; sou velha e feia, não posso pretender nem pretendo ser amada; possuo porém avultada fortuna, e arreceio-me de parentes esbanjadores; se eu pois lhe dissesse: case comigo para aparar minha velhice com a sua amizade e com a sua paciência, como se fosse meu filho, e em troco da sua dedicação, do seu sacrifício, seja rico... brilhe... goze...

LAURIANO – Ainda bem que figurou uma hipótese, minha senhora, deixandome a liberdade de responder-não-sem a mágoa de ofender pessoalmente vossa excelência.

VIOLANTE – E se por fim de contas não fosse hipótese? se fosse deveras?...

LAURIANO – Ah! eu o sentiria profundamente...

VIOLANTE – Não se aflija por isso; o que o senhor... nobremente...repugna, há naquele salão mais de três que desejam e aspiram...

LAURIANO – Achará por certo mais de trinta, minha senhora; mas se eu fosse capaz de oferecer-lhe um conselho...

VIOLANTE – Aconselhar-me-ia...

LAURIANO – A desprezar miseráveis exploradores da fortuna alheia...

VIOLANTE – Que exaltação de conselheiro! por fim de contas explora-se de todos os modos, e eu lhe juro que por fim de contas a tia está resolvida a casar-se, e a sobrinha ficará sem a herança com que se calcula.

LAURIANO – Minha senhora.... julga-me com injustiça...

CENA IX

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VIOLANTE, LAURIANO, CLEMÊNCIA, por um lado, BRAZ, por outro; BRAZ quer prevenir VIOLANTE, CLEMÊNCIA pede que não; mímica expressiva de ambos.

VIOLANTE – Sei aonde pega o carro... não é capaz de negá-lo! por fim de contas o senhor e Clemência namoram-se... Clemência deixa-se namorar por todos... e o senhor? namorava-a antes de conhecer-lhe a tia velha e rica? responda por fim de contas.

LAURIANO – Minha senhora; com efeito coube-me a honra de conhecer ao mesmo tempo a vossa excelência e a sua digna sobrinha, juntas nesta chácara; também é verdade que amo dª. Clemência, a ela não me atrevi ainda a dizê-lo; mas a vossa excelência, pois que o pergunta, declaro-o...

VIOLANTE – Por fim de contas...

LAURIANO – Mas nem jamais pensei na herança possível ou provável de dª. Clemência, nem ela até hoje me deixou exaltar com a glória do seu amor...

VIOLANTE – Pois a herança provável foi-se: eu caso-me; e o que possuo será do marido que me aturar...

LAURIANO – Tanto melhor para mim; darei expansão ao meu amor, e a Clemência, não rica, eu pobre ousarei confessar que a amo...

BRAZ – Madrinha! eu sou fiel... atenda que a escutam...

VIOLANTE (Voltando-se) – Oh!... escutavas?... pois ele não entrou na aposta.

CLEMÊNCIA (A Lauriano.) – Obrigada!... e pobre ou rica... (Sinal de contradança dentro.) é a nossa quadrilha... vamos! (Vão-se ambos.)

CENA X

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VIOLANTE e BRAZ

BRAZ – Também este, madrinha?... olhe que caçava fora da coutada da aposta!

VIOLANTE – Foi muito incivil comigo; mas hei de ensiná-los.

BRAZ – É uma família de originais; não faz idéia quanto me custou reduzir dª. Irene a ficar; precisei recorrer à retórica sentimental; ela, porém, jura que não torna mais a esta casa.

VIOLANTE – Desconfio muito de tanto desinteresse e de tanta virtude; no meio da enchente da desmoralização, não é natural a erupção de dois milagres em uma só família.

BRAZ – Isso é que é natural; deviam sair iguais; porque a educação foi o molde.

VIOLANTE – Tu tens queda para estes dois...

BRAZ – Conheci-lhes o pai, que era original, como eles, e a mãe é uma santa mulher, que sabe só trabalhar e rezar. Como vão os negócios? o sarau que improvisamos dá de si?

VIOLANTE – Ferve-me na cabeça uma idéia, de que talvez te ocupe depois; hoje emprazei os três pretendentes à minha mão de esposa para receberem a minha decisão às duas horas da madrugada em ponto aqui mesmo; cedi porém a Clemência três dias de dilação...

BRAZ – Foi um erro; devia tê-los negado: Clemência tem em mente algum golpe de estado.

VIOLANTE – Foi um acerto... eu te hei de dizer porque... começa a ferver-me certa idéia na cabeça.. quanto ao meu triunfo, é coisa certíssima.

BRAZ – Madrinha, a mocidade é traquinas, e como que se entende com o diabo, uma moça esperta é uma espécie de estudante de saia...

VIOLANTE – Que pode Clemência? por fim de contas está vencida.

BRAZ – Isto é como em eleições de deputados; até o lavar dos cestos há vindima. Nas eleições de deputados às vezes saem eleitos os que não tiveram votos; eu adivinho que Clemência vai fazer alguma duplicata.

VIOLANTE – Nem que faça triplicata por fim de contas.

CENA XI

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VIOLANTE, BRAZ, IRENE e MÁRIO que a segue.

IRENE – Oh! é perseguição que excede as conveniências... sr. Mário...

MÁRIO – Apelo para o juízo frio e insuspeito da titia e do senhor Braz que estão aqui... é um caso de consciência...

BRAZ – A madrinha é autoridade na matéria, e eu sirvo-lhe de acólito: pode falar.

MÁRIO – Confesso que estou um pouco fora de mim; mas isso mesmo é melhor para o caso, porque quando estou fora de mim, digo as coisas com franqueza...

BRAZ – A conclusão é que quando está dentro de si: etc...

MÁRIO – Titia, ao começar o sarau dª. Irene contradançou comigo, e mostrouse bela... bela é mal aplicado, bela sempre ela é, e agora mesmo apesar de enfadada... mostrou-se branda; suave... meiga... quero dizer, eu digo tudo... mostrou-se terna.

IRENE – Senhor!

MÁRIO – Que mal há nisso? eu estava terníssimo: adianta-se a noite... peço-lhe um passeio...

BRAZ – A quem? à noite? os namorados são inimigos da gramática.

MÁRIO – E dª. Irene diz-me que está fatigada: enfiei, mas dissimulei; quis conversar com ela; monossilabou-me dois minutos de má vontade e voltou-me logo o rosto; tive um ímpeto, mas contive-me; ainda há pouco enfim requeri-lhe uma valsa, note a titia, uma valsa, a pedra de toque, e sabe o que me respondeu? “não valso”; e isso com as pontinhas de uns lábios enregelados; recuei espavorido... veio-me a idéia que ela tivesse torcido algum de seus lindos pés...

BRAZ – E não torcera?

MÁRIO – Eis a gravidade do caso: não torcera; e logo depois a ingrata valsava, como um anjo, com um cavalheiro que me pareceu o diabo; apelo para a titia: que pensa do fato?

VIOLANTE – Que dª. Irene não quis valsar contigo, e quis valsar com outro.

MÁRIO – E daí?

VIOLANTE – Ela estava no seu direito.

MÁRIO – Não estava: eis a gravidade do caso; eu, quando estou fora de mim, digo tudo... ela não estava no seu direito; porque... ora... eu estou fora de mim e digo tudo de uma vez... porque eu a amo, ela ama-me; por conseqüência, nós nos amamos.

IRENE – Minha senhora, não consinta que o sr. Mário abuse da minha posição...

MÁRIO – Que mal há nisso? que vexame pode haver no amor mais puro? eu o digo em alta voz: amo-a! o que lhe tenho dito cem vezes ao ouvido, repito-o, para que todos ouçam: amo-a! a senhora também já me confessou que ama-me; porque então me desfeiteou e me maltrata?...

BRAZ – Eu não supunha que os estróinas chegassem a ter eloqüência; dª. Irene, Mário tem razão, vá dançar com ele...

IRENE – Não dançarei mais esta noite.

MÁRIO – Está ouvindo? mas que fiz eu para ser tratado assim?

VIOLANTE – Estás em maré de infelicidades, Mário; ainda não sabes de outra, cuja notícia já corre, e terá chegado ao conhecimento de dª. Irene; fala a verdade; esperavas um pouco que te coubesse algum dia uma parte da minha riqueza?...

MÁRIO – Sim... titia... para que mentir? tenho imaginado isso por vezes nas horas vagas.

BRAZ – Honra ao estróina!

VIOLANTE – Pois não tornes a imaginar: vou casar-me.

MÁRIO – Casar-se? na sua idade?... e a quem... perdão, eu ia dizendo uma asneira; mas a titia está doida?

VIOLANTE – Sinto que minha felicidade seja um infortúnio para meus parentes.

MÁRIO – Eu também sinto um pouco... é força dizê-lo; em todo caso rogo a Deus que seja feliz; mas... tornemos ao que mais importa...

BRAZ – Há então coisa que te importe mais agora?...

MÁRIO – Que pergunta! e o procedimento de dª. Irene?

IRENE (A Violante.) – Não sei porque supôs que a nova do seu casamento já me tivesse chegado; eu a ignorava; v. ex., porém, é incapaz de enganar-nos; com certeza vai casar-se?

VIOLANTE – Dentro de oito dias estarei casada.

IRENE – E a sua fortuna? e os seus parentes?...

VIOLANTE – A minha fortuna será para meu marido a compensação da minha velhice; os meus parentes... hão de ter paciência...

IRENE (A Mário) – Quer valsar comigo?

MÁRIO – Case-se, titia! case-se! juro que seu marido não será mais rico do que eu. (Vai-se com Irene.)

CENA XII

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VIOLANTE, BRAZ e logo CLEMÊNCIA

BRAZ – Ah! quem me dera ser Mário et coetera!

VIOLANTE – Acho que é fora do natural e até uma espécie de desacato haver quem ostente não dar importância à minha riqueza!

BRAZ – Madrinha... receio que a sua cabeça hoje... esteja... et coetera...

CLEMÊNCIA – Duas horas menos cinco minutos: estou presente.

VIOLANTE – Vem muito cheia de si... por fim de contas.

BRAZ – Foi pena que não contemplasse na oposta o apaixonado que vale mais que os três multiplicados por trezentos mil.

CLEMÊNCIA – Estava injustamente condenado nas reflexões loucas do toucador.

BRAZ – Explique-se.

CLEMÊNCIA – Por meu castigo explico-me: eu tinha medo de amá-lo, porque para marido faltava-lhe com que comprar-me brilhantes.

BRAZ – E agora?

CLEMÊNCIA – Cada um tem os seus segredos, não é, titia?

CENA XIII

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VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA e AUGUSTO

AUGUSTO – Prazo dado de amor que é tarde sempre. (Vendo Clemência.) Ah!

CLEMÊNCIA – Não se incomode, sr. doutor.

AUGUSTO – No mais sério e estremecido empenho só me pode alvoroçar a dúvida do conseguimento da glória.

CLEMÊNCIA (A Braz.) – Este doutor é do direito ou do torto?...

BRAZ (A Clemência.) – Há casos em que o direito está na tortura: este é um deles.

CENA XIV

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VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO e POLIDORO

POLIDORO – Dois minutos antes da hora: o relógio do verdadeiro amor anda sempre adiantado. (A Braz.) Que faz aqui o dr. Augusto?

BRAZ (A Polidoro.) – Também estou desconfiado: temo que a madrinha o queira tomar por advogado et coetera... VIOLANTE (A Clemência) – Este nem caso fez da tua presença: reparaste?

CLEMÊNCIA (A Violante) – Eu tenho a dilação, madrinha: lembra-se?

CENA XV

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VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO, POLIDORO e LEOPOLDO

LEOPOLDO – Duas horas: pontualidade inglesa; às ordens de vossa excelência!... (A Polidoro) Que significa a presença do dr. Augusto?

POLIDORO (A Leopoldo) – Baldo ao naipe! estou in albis.

VIOLANTE – Senhores, agradeço tanta bondade; infringindo as conveniências e os costumes da sociedade, eu os emprazei para a mesma hora e o mesmo lugar a todos três.

POLIDORO – Três!

LEOPOLDO (A Augusto) – O sr. doutor também?

AUGUSTO (A Leopoldo) – Admira-se?...

VIOLANTE – Eu procedi assim, não para ofendê-los, mas porque tive para mim que os senhores pensavam somente em zombar de uma velha...

AUGUSTO – Perdão... eu protesto...

LEOPOLDO – Minha senhora... reitero a minha proposição...

POLIDORO – E eu também com o coração nos lábios...

VIOLANTE – Era o que desejava muito ouvir diante do meu afilhado e de minta sobrinha: obrigada! agora, e isto é irrevogável, mais três dias para que os senhores reflitam, e para que eu também assente na minha escolha; daqui a três dias pois, no domingo, os senhores terão a complacência de vir jantar conosco, e no fim do jantar dirigirei o último brinde ao preferido. (Confusão e desapontamento dos três.)

BRAZ – Talvez fosse melhor fazer o brinde da preferência antes do jantar.

CLEMÊNCIA – Não, titia: os dois infelizes perderiam o apetite.

VIOLANTE – Será como disse; e até domingo reservo-me o direito de absoluto recolhimento para mais tranqüila resolver sobre a escolha.

CLEMÊNCIA – Ao menos porém até o fim do sarau...

BRAZ – Ei-lo que termina a galope.

CENA XVI

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VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO, POLIDORO, LEOPOLDO, galopada geral; os pares invadem a varanda por todos os lados; LAURIANO arrebata Clemência; MÁRIO e IRENE galopam; CASIMIRO passa e volta galopando com uma jovem; ardor na dança. Augusto, Polidoro e Leopoldo cercam Violante.

BRAZ – Eu defendo a madrinha! não consinto que ela galope!...

FIM DO TERCEIRO ATO