Rui de Leão/II
Rui de Leão voltou ao lugar onde se achava enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o, tirou-lhe a tampa e examinou atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo, com seus reflexos azuis quando recebia os raios do sol.
A porção não era muita, nem para o fim proposto era preciso mais.
O cheiro do líquido era uma mistura de almíscar e canela.
O esposo de Nanavi enterrou o vaso e sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.
Não se pode saber que tempo gastou Rui de Leão nas profundas reflexões em que se mergulhou o seu espírito. Apenas sabemos que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
— Ilusão! exclamou ele; isto é impossível. Por que motivo não vi logo que o pajé era vítima de um sonho, ou desejava impor a sua privança com Tupã? Imortalidade! só Deus poderia dá-la, mas esse não a dá com certeza: a verdade é esta. Eia, Rui de Leão, evoca o teu bom senso; não sejas tamoio em tudo. O pajé podia iludir aos outros, mas a mim!...
Levantou-se, deu dois passos e parou contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso vaso.
— E, contudo, disse ele, era tão bom possuir a imortalidade! Ver correr os séculos uns após e outros; ver passar as gerações; o nascimento e a queda dos impérios, e ficar sobranceiro a tudo; zombar do tempo e dos homens!... Oh! seria uma grande ventura, e se realmente o elixir do pajé...
Ouviu uns passos. Era Nanavi.
— Pensas no teu país? perguntou a indígena.
— O meu país é o teu, Nanavi, a minha pátria é o teu amor. Que teria eu lá mais do que tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se a mesma terra; respira-se o mesmo ar. Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma morte.
Nanavi lançou os braços à roda do pescoço de Rui de Leão; este beijou-a ternamente na testa.
— Andas pensativo... que tens?
— Nada; saudades do pajé.
— Pobre pai!
Rui de Leão sentou-se sobre uma pedra.
— Era um grande homem teu pai, disse ele.
— Era um sábio.
— Sim, era.
— Ninguém melhor do que ele, continuou Nanavi, sabia ler no céu, nem combinar as raízes da terra.
Rui estremeceu.
— Que tens?
— Nada. Teu pai conhecia as virtudes das raízes?
— Quem as não conhece entre os filhos de Tupã?
— Tens razão.
— Meu pai era mais sábio que todos os outros; mas não o dizia a ninguém.
Rui de Leão ficou pensativo.
— Quem sabe, dizia ele consigo, quem sabe se o pajé não combinou este elixir por meios secretos, e modestamente o atribuiu a origem divina?
Não sem admirar a modéstia do pajé, Rui de Leão demorou-se nesta idéia e concluiu que, em todo o caso, não sendo provável que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se não lhe desse a imortalidade, também não daria a morte.
Dois meses depois veio à luz um amável pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.
Segundo o uso, Rui de Leão meteu-se na cama, tomou os caldos, recebeu as visitas, ao passo que a mulher foi cuidar dos arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Rui, não porque ele carecesse dos seus serviços médicos, mas porque era conversador e alegre nas horas de bom humor.
Numa das ocasiões, disse-lhe que havia chegado àquela região um padre da nação de Rui, homem apessoado e de falas de mel.
— Onde está? perguntou Rui.
— Anda perto; foi visto na foz do rio.
Daí a dias apareceu efetivamente o padre Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que havia ali um homem seu compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.
O frade Norberto falou de Portugal e da família de Rui. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de um primo que fora meter uma lança em África.
— Pouco me importa saber, frade Norberto, do que vai lá pela minha família, nem se são vivos ou mortos. Hoje a minha família é Nanavi e meu filho.
Justamente nessa ocasião acordou o pequerrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da indígena com o europeu; e disse ao fidalgo.
— Vamos batizá-lo?
— Não.
— Pois quê! não quer?
— Não.
— Meu Deus! continuou o frade Norberto, será isso possível! dir-se-á que estes gentios nascidos e criados sem a luz da fé, são mais fáceis de converter que V. Mercê nascido e criado no seio da Igreja.
O argumento não tinha resposta; por isso mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno frade ouviu-o silencioso.
Quando o fidalgo acabou disse o frade:
— Peço a Deus que não faça cair sobre V. Mercê a justa pena deste ato... E saiu.
Logo nessa noite, teve Rui de Leão uma intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma raiz, nenhuma folha pôde abrandar o mal do pobre Rui. Esgotou-se a farmacopéia do deserto; a doença tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta luta entre a natureza e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o último remédio não produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.
Rui não sabia que já estava condenado, mas suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto; contemplou o filho, apenas nascido, a mulher ainda no viço dos anos. Todas estas coisas juntas fizeram com que Rui reunisse todas as suas forças (que bem poucas eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.
Fê-lo a muito custo; logo à porta da cabana teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem despertar ninguém. Caminhou lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.
No dia seguinte amanheceu melhor. Os parentes de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro ilustre, ficaram agradavelmente surpresos quando viram a rápida melhora que naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.
Restabeleceu-se Rui de Leão da moléstia, e grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era realmente a luz daquela gente e o melhor conselho dos casos difíceis.
Certeza de que estava imortal, não a tinha ainda Rui de Leão; mas certeza de que o elixir curasse febres teimosas, essa adquiriu logo. Esperemos o resto, dizia ele consigo.
E esperou.
Não tardou que se admirasse toda a gente daquelas paragens da robustez crescente de Rui de Leão; era o segundo efeito do elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, coisa que sumamente agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.
Com os anos cresceram as esperanças de Rui. O tempo nenhuma ação tinha nele; não só os poucos cabelos que tinha continuaram a ficar pretos, senão que lhe nasceram outros, e dentro em pouco tempo tinha o homem uma verdadeira floresta na cabeça, a qual floresta, atenta à falta de pentes no sertão, era uma verdadeira floresta virgem. Nenhuma ruga lhe afeiou o rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.
Tinha Rui sessenta anos e era o mesmo homem dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Rui adquiriu a plena certeza de que tinha vencido a morte.
Não aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que andando um dia a colher frutas no mato, recebeu em cima da cabeça um tronco que a levou desta para melhor. Ficou a criança, rapazote de largas esperanças, único fruto dos amores de Rui e Nanavi.
Como o frade Norberto continuasse em missão, encontrou-o um dia o nosso neo-tamoio e travou conversa com ele.
Sem descobrir o segredo do pajé, disse-lhe que tinha meios de fazer uma conversão em larga escala durante longos decorreres de anos; que para isso ajudaria com dedicação os frades da companhia não somente com as luzes que tinha da língua do Brasil como também pela autoridade moral que adquirira entre os índios; finalmente que por prova de que servia sinceramente a igreja, dava a batizar o filho de Nanavi.
— De boa razão é vosso procedimento Sr. Rui de Leão e eu estou que a fé colherá grande proveito com o auxílio de vossa pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora além de injustiça, erro grosseiro, porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao inocente filho que nos dais para batizar e iniciar na fé. Onde está a mãe?
— A mãe morreu.
— Culpa vossa, Sr. Rui de Leão; perdeu-se uma alma pela obstinação com que V. M. se houve...
— Estou arrependido, padre Norberto, disse Rui ajoelhando aos pés do frade.
Foi batizado o pequeno e iniciado nos preceitos da fé cristã, ao passo que o pai incumbido de arrebanhar a gentilidade, saiu pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e outro.
Longo tempo andou nessa missão. Colheu a Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram todos três para asilo dos frades houve grande e preciosa festa em honra de todos e principalmente de Rui. Os frades asseveraram à porfia que a piedade do fidalgo fora exemplar e os seus esforços incessantes.
Notaram todos, porém, que se os frades voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos, Rui estava tão sadio e robusto como fora. Maior admiração houve quando o fidalgo confessou ter mais de sessenta anos.
— Não admira, respondeu o fidalgo rindo; eu adquiri o privilégio desta gente que vive geralmente até os cem anos.
Ficou o nosso Rui no convento acompanhando os frades. Uma noite veio do sertão uma horda de índios, e atacou o asilo monástico com desusado vigor. A defesa foi quase toda nula contra os ferozes índios. Após uma luta porfiada, Rui conseguiu fazer ouvir a sua voz e acalmar os ânimos. Os índios foram embora deixando dois cadáveres dos seus. Dos frades tinham morrido dois às envenenadas flechas do inimigo. A todos admirou, porém, que Rui recebesse uma flecha nas costas, que a arrancasse, e não morresse como acontecera aos outros.
— Que mistério é esse irmão? perguntou-lhe um frade.
— Nenhum, respondeu Rui; provavelmente a flecha não vinha ervada.
Correram os anos; os frades estavam substituídos à proporção que iam morrendo; e assim se chegou aos anos de 1730, sem que Rui perdesse sequer um dos traços de sua vigorosa pessoa.
Toda a gente ficava pasmada diante de semelhante prodígio. Prodígio havia de certo porque de cem anos por cima é impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Rui deixou de ter a mesma cara.
Foi em 1730 que um oficial régio tendo sabido da maravilhosa mocidade de Rui, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a fim de apresentá-lo ao rei que era então D. João V. Partiram.