Rui de Leão/III
É incrível que nenhuma história publicada daquele tempo mencione a chegada deste prodigioso sujeito à corte de Lisboa e dos casos que aí houve.
Rui não foi apresentado ao rei, não se sabe bem por que razão; mas andou por toda a parte; figurou nos solares da fidalguia como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de coisas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o célebre conde de S. Germano em Paris, ainda que este misterioso personagem não possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
Sabido é que às mulheres agrada o misterioso e o raro. Uma D. Beatriz, formosíssima fidalga daquele tempo, veio a enamorar-se do nosso Rui que também se enamorou dela. Como a moça estivesse para casar com D. Álvaro, marquês de P... saiu este paladino a campo e desafiou Rui por um combate singular.
Não era homem de recusar duelo o nosso Rui; aceitou o reto do fidalgo, que o não era mais que ele, e bateram-se à espada nas imediações de Lisboa.
Infelizmente o uso da flecha desabituara o viúvo de Nanavi ao uso da espada. O marquês era esperto jogador desta arma. O combate era desigual. Todavia, não aceitou Rui o conselho dos que lhe diziam que fizesse um estudo prévio.
Durou o duelo uns vinte minutos de angústia para os padrinhos de Rui; ao cabo desse tempo, D. Álvaro varou o nosso homem de meio a meio. Correram todos ao ferido que imediatamente caiu no chão lavado em sangue.
— Está morto! exclamaram todos.
— Ainda não, disse Rui; não estou morto.
E com a própria mão estancou o sangue, enquanto um físico, adrede convidado, lhe administrou os primeiros socorros.
— Morre daqui a duas horas, disse tristemente o cirurgião aos padrinhos de Rui.
Duas horas depois, Rui aparecia nas ruas de Lisboa, com grande espanto do povo que ouvira falar no duelo e nos resultados dele.
— Sabem que mais? dizia o cirurgião, aquele homem é o diabo.
Naqueles tempos de fé uma descoberta desta ordem equivalia ao exílio perpétuo do homem. Rui viu fecharem-se-lhe as portas dos palácios, as hospedarias, as casas todas enfim; e compreendeu que estava abandonado.
Ajuntou algum dinheiro que tinha, guardou na algibeira um frasco contendo o resto do elixir de imortalidade, e partiu para Espanha.
Ali deixou de dizer quem era, nem a idade que tinha; viveu desconhecido. Mas não deixou de lhe ser proveitoso e incógnito. Jogou a sorte nas casas em que isso se fazia e ganhou somas fabulosas.
— Que farei agora? perguntava Rui a si mesmo.
Partiu para a Alemanha e dispôs-se a estudar. Com o dinheiro que tinha ganho nas tavolagens de Castela, pôde o nosso célebre Rui de Leão ocorrer às despesas do estudo.
Ao cabo de longos anos, era ele doutor em teologia, filosofia, matemática, direito, medicina, profundo antiquário, extremado nas ciências físicas e químicas; em suma o doutor dos doutores, a expressão mais alta da ciência humana. Aprendeu o latim, o grego, o árabe, o armênio, o turco, o hebraico. Traduziu para várias línguas as obras de Santo Agostinho e S. Tomás; fundou uma academia arqueológica e um liceu de filosofia; comentou os atos dos apóstolos, escreveu uma história dos mártires, fez descobertas arqueológicas em Roma, anunciou dois cometas e espantou toda a Europa científica não menos pela profundidade e variedade dos seus conhecimentos, como pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que presenciara.
Graças à riqueza que facilmente adquiriu, casou o nosso homem com uma fidalga de Espanha cinco vezes marquesa e rica de mais a mais. Durou pouco o casamento; a mulher faleceu dois anos depois, e foi essa a maior dor de sua vida, posto que a morta lhe deixara uma grande riqueza nas mãos.
De novo se entregou aos estudos da ciência, com redobrado ardor. Mas apesar da admiração que o mundo científico lhe votara, apesar da espécie de infalibilidade que adquirira perante as sociedades e academias, o nosso Rui entrou a sofrer de um incurável aborrecimento. Tinha quase dois séculos e a vida já lhe pesava; o mundo não lhe oferecia espetáculo novo; a ciência perdera o prestígio do princípio: o imortal começou a desejar a morte.
Mas era tarde.
Como acharia ele a morte?
Rui recorreu ao suicídio; sabia que era um crime perante Deus e os homens; mas não tinha outro recurso. Achava-se então em Lisboa, mas como já muitos dos que o conheceram antes tinham morrido, ninguém viu nele o mesmo Rui de Leão e ele teve o cuidado de trazer nome suposto.
Ali resolveu acabar os seus dias. Foi ao Tejo e atirou-se à água; em ocasião em que não podia ser socorrido. Sabia nadar, mas não quis usar do que sabia. Debalde! o corpo voltou à tona e desceu até esbarrar num galeão, de onde foi visto e pescado.
De outra vez recorreu à faca mas o mais que conseguiu foi abrir no pescoço uma ferida que se curou rapidamente.
Era impossível morrer.
Imagine quem puder o suplício deste homem condenado a ser imortal, a ver os mesmos dias, as mesmas comédias — este Tântalo da morte, ambicionando aquilo que os outros receiam — pedindo ao céu como a suprema felicidade uma cova para dormir.
A situação é de si tão patética que eu não preciso lacrimejar o estilo; basta dizer a coisa para que ela seja compreendida.
Depois de estudar tudo e tudo ver; depois de passear pelas várias partes do mundo, sem encontrar novidade que lhe divertisse o ânimo; depois de ser assíduo espectador de tudo quanto pudesse despertar a curiosidade de um homem enfadado como, por exemplo, o homem de botas de cortiça, o boneco jogador de xadrez e outros, determinou Rui de Leão voltar ao Brasil nos princípios deste século ali pelos anos de mil oitocentos e tantos, estando ainda cá o rei.
Efetivamente aqui aportou no Rio de Janeiro o imortal Rui. A cidade não oferecia então o aspecto que hoje tem. A rua do Ouvidor não era a via elegante da capital; nem o Rocio estava transformado no jardim que aí vemos. Eram os belos tempos de Vidigal e seus granadeiros, de cujas proezas tão habilmente falou o nosso chorado Dr. Manuel de Almeida, talento como poucos.
Rui tratou de encobrir-se o mais que pôde; entrou como verdadeiro desconhecido. Contudo a presença de um homem tão sábio e tão rico, não era coisa que passasse despercebida ao povo nem à corte. Não tardou que fosse convidado para as melhores casas e os vários fidalgos de respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua sala. Era parceiro obrigado no whist dos velhos fidalgos, grande par do minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a flor da boa roda.
Mas esse recreio durou pouco. No fim de dois meses voltou Rui de Leão às suas mágoas antigas.
Foi então que lhe aconteceu um caso decisivo na sua vida.
Entre as damas que mais apreciavam o saber e os dotes do ilustre Rui, havia uma D. Madalena de Sousa e Pedroiça, criatura tão notável pela graça do semblante, quanto pelas virtudes fidalgas da vida. Rui ficara sempre com um grande pendor às mulheres, o que era naturalmente um corretivo da imortalidade, porquanto ser imortal e aborrecer as mulheres seria estar no pior de todos os infernos deste mundo e do outro.
Agradou-lhe D. Madalena, mas esta posto que o apreciasse muito, não lhe aceitou o coração. Coração repelido é o ideal da pertinácia. Rui multiplicou as suas armas galantes, a ver se colhia a esquiva dama, e esta sempre isenta, dava de tábua às seduções do namorado.
Durou esta luta cerca de dois anos.
Uma noite, vindo recolher-se para casa o nosso Rui, surdiu-lhe em frente um sujeito e lhe disse:
— Quer saber por que razão D. Madalena lhe recusa a mão?
— Quero.
— Ama a outro.
— Impossível.
— É verdade!
O sujeito tinha a cara meio coberta com uma das abas do capote. Descobriu-se então e Rui pedindo a lanterna ao criado que tinha com ele, pôde reconhecer a um parente de Madalena.
Passava-se esta cena nos Cajueiros e o nosso Rui morava perto do Valongo: convidou o parente da moça para acompanhá-lo à casa.
Quando lá chegaram, tomou palavra o parente da moça, D. Martim, e disse:
— D. Madalena ama o licenciado Álvares e quer casar com ele; o pai opõe-se ao casamento e já a ameaçou com o convento. É essa a razão por que não aceita o seu amor.
— Mas, disse Rui, eu não sei que diabo achou ela no licenciado...
— Nem eu, mas a verdade é esta.
Rui refletiu na dificuldade de sua posição.
— Deste modo, disse ele, perco o meu tempo...
— Como eu perdi, replicou D. Martim: também eu a amei, mas nada pude conseguir. O licenciado transtornou-lhe a cabeça. Que lhe havemos de fazer?
— Dar uma lição ao licenciado.
D. Martim piscou o olho, via-se-lhe no rosto que ele não vinha para outra coisa.
— Como lhe daremos a lição?
— Como?
— É verdade que ele costuma a falar com a prima às escondidas...
— A horas mortas?
— Sim. Chega ao portão e ela fala de cima da janela que dá para o jardim.
— Basta.
— Qual é o seu plano? perguntou D. Martim arranjando o capote.
— Esganá-lo.
— Mas isso é perigoso; o intendente da polícia não é de graças.
— Qual intendente! exclamou Rui; pois eu cá vou consultar intendente para esganar um patife?
Saiu D. Martim exultando de contente, e Rui deitou-se meditando na vingança que devia tomar do rival.
Na subseqüente noite não apareceu Rui de Leão em casa da família de D. Madalena, e foi esperar o licenciado no sítio indicado por D. Martim. A noite era escura: e ameaçava temporal. Rui saíra de casa sem criado nem lampião. Armou-se com uma faca, encostou-se à parede e esperou que batesse a hora da vingança.
Ao cabo de longo tempo, que é sempre longo para quem espera, Rui de Leão ouviu passos ao longe na direção do ponto em que se achava. Ao mesmo tempo abriu-se a janela de Madalena e o vulto da moça apareceu como Julieta quando esperava Romeu e a escada.
Era a hora suprema.
Coseu-se o doutor dos doutores com a parede e esperou o feliz rival que se aproximava cautelosamente. Mal o pobre namorado soltava as primeiras palavras, saltou-lhe acima o fidalgo e enterrou-lhe no estômago uma comprida faca. O licenciado apenas deu um gemido e tentou murmurar o nome de Madalena. Caiu. Rui afastou-se rapidamente do teatro do crime.
No dia seguinte de manhã apareceu a polícia, levantou o cadáver, fez-lhe os exames precisos, e começou as indagações para ver de onde partia o crime.
A primeira suspeita recaiu sobre o pai de Madalena cuja oposição ao licenciado era conhecida; mas o pai, vendo contra si a espada da lei, declarou que talvez fosse antes o crime praticado por um indivíduo que igualmente pretendia Madalena, homem de boa presença, formado em várias matérias e conhecido em toda a cidade.
Houve da parte do intendente tão virtuosa repulsa ao ouvir tão negra suspeita, que o nosso Rui se lha visse, devia votar-lhe eterna gratidão.
Todavia, como a justiça não podia deixar de averiguar tudo, mandou-se chamar Rui de Leão, que apenas chegou negou o crime. Entretanto deu-se-lhe busca em casa, e achou-se-lhe a faca ensangüentada, que por um incrível descuido Rui esquecera de lavar ou deitar fora. Interrogada a criadagem, confessou que o amo saíra de casa à noite, sem escudeiro, embuçado num capote e escondendo alguma coisa.
Todos os indícios eram contra o assassino.
A justiça d’el-rei tomou conta do réu; abriu-se processo em regra e ao cabo de algum tempo foi condenado Rui de Leão a morrer de morte natural na forca.
Madalena, que até então estimara a prisão e o processo do réu, teve pena dele quando soube que ia morrer enforcado.
Não deixara de lembrar-se que a causa daquele crime era ela. Rui aparecia aos olhos da moça com um aspecto tão interessante que ela lhe daria a mão de esposa se tanto fosse preciso para livrá-lo da forca.
Pobre licenciado! ...
Marcado o dia para execução, levantou-se no largo de Moura a forca, e o cortejo saiu da cadeia com o juiz, o padre, o carrasco e o pregoeiro. Troava a campa à frente, lia o pregoeiro a sentença da relação em cada esquina, e lá ia o nosso Rui recebendo do sacerdote as consolações que o carrasco lhe não podia dar.
Grande número de povo enchia o largo da execução, mas quem pensa o leitor que estava entre os espectadores? D. Martim mais pálido que a morte, vítima do remorso e da curiosidade, causa indireta do crime e da desgraça. Queria ele ouvir as últimas palavras do condenado, de que receava alguma revelação relativa à sua pessoa.
Subiu Rui as escadas da forca, colocou-se em posição conveniente, abriu a boca para fazer um discurso, mas os tambores cobriram a voz do orador.
Imediatamente entrou o carrasco nas honrosas funções que a lei lhe conferia em nome do evangelho, e o corpo de Rui de Leão ficou pendente da forca.
A pouco e pouco foi saindo o povo aterrado com o espetáculo; e em todas as boticas e casas de barbeiro da cidade foi comentado o crime do defunto.
Quando veio a noite foi o carrasco tirar da forca o cadáver do réu acompanhado do respectivo ajudante. Cortou a corda e o corpo foi à terra.
Ai! disse Rui, — atordoado com a queda.
— Que foi? perguntou o carrasco ajudante.
— Não sei; foi um gemido de cão.
Aproximaram-se do corpo; mas qual não foi o seu espanto? Rui desatava tranqüilamente o laço da corda e dizia:
— Levem-me a uma hospedaria que tenho fome.
O carrasco e o ajudante não ouviram mais do que a palavra, — levem-me; viram o gesto de Rui e deitaram a correr. Toda a cidade ficou em alarma. Só falava do enforcado que ressuscitara.
— Estava inocente! gritavam uns.
— É um santo! diziam outros.
Entretanto o ex-enforcado procurou tranqüilamente coisa que comesse e cama em que dormisse.