Segundo féretro - Antônia

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Sombra de luto, de viuvez e de velhice. Angelus sem plangências consoladoras de campanário, sem ecos saudosos, sem elos de afeto, só, na solidão árida, no abandono sem limites de uma voz que chamasse por ela — já apagada a última luz dos faróis interiores, escura já toda aquela vasta região de velhice.

Era a harpa soturna, surda, sem cordas, como as que ficam ao acaso, para ali a um canto no leilão dos tempos, sem que uma vibração ambiente as faça gemer, sem que um vento dormente as faça cantar. Vida já de vacilações e de ânsias baixinho, de certos nirvanismos curiosos e mudos — alma sem impulso, sem hora, sem desejo, apenas vácuo e vácuo infernalmente circulado de símbolos desesperadores. Sentimentos anônimos, sem consolo, mas de profunda significação genésica, e que o mundo vãmente arrasta nos seus turbilhões medonhos, no seu pó secular, no tumulto das suas venenosas seduções. Tipo que vaga, tipo que ondeia, tipo que gira sem órbitas definidas, ao acaso dos Desígnios, confundidos, amalgamado no supremo Comum, mas Existente original no fundo abismal do seu ser.

Para os que sofrem a Dor do Infinito e mergulham nas profundas, longas e complexas galerias dos subterrâneos das almas, na claridade saudosa dos olhos de Antônia parecia haver a transfiguração de uma cegueira singular da alma, que andava, como as fugidias, capciosas mãos sem visão de um cego, tateando por penumbras de bruma.

Naquela ignorada alucinação da vida, que círculos, quantas correntes tão opostas se cruzariam!

E a efêmera velhinha, sempre obscura, verdadeira nebulosa de gemidos, despertava curiosidades histéricas, emotivas, como os signos assinaladores do arco de aliança — todas as cores, todo o cromatismo esquisito do sofrimento de um ser que vive isolado na ermida da alma, sobre os penhascos, os ásperos outeiros do mundo.

Alma apoiada ao bordão da velhice, tiritando e se arrastando sob as lâminas cruas das espadas glaciais da Desolação, caminhando sem tréguas por entre ruas soturnas e confusas, ao longo de imensos muros, vestidos de limo, sob o soluçante e lacrimoso brumar eterno de uma chuva fina, muito lenta, triste, monotonamente triste...

Eu a via, naquela paz lutuosa dos anos, nas ingênuas manifestações da su'alma como se ela andasse, sob as provações terrestres, a purificar-se por crisóis imortalizadores, além pelos sete céus cristalinos e astrais.