Senhora/O Preço/XI
Desde então Seixas encontrou-se quase todas as noites com Aurélia, ou em casa desta, ou na sociedade.
A maneira afável por que a moça o tratava tinha, se não desvanecido completamente, ao menos embotado, as suscetibilidades de sua consciência acerca do ajuste que fizera com Lemos. Não que se absolvesse da culpa; mas esperava remi-la pelo amor.
Suas conversas com Aurélia versavam ordinariamente sobre temas de sala. Às vezes, porém, ele aproveitava um pretexto para falar-lhe nesse estilo terno e mavioso, que é como o canto do amor, e por isso não carece da idéia, mas somente do vocábulo sonoro, para embalar o coração aos suaves harpejos dessa música.
Então Aurélia pendia a fronte, e escutava com recolhimento o lirismo da palavra inspirada pelo moço; todavia, nunca em seu rosto ou em sua pessoa transpareceu o menor sinal de retribuição a esse afeto. Ela abria a alma ao amor; porém o amor que filtrava nas meigas falas de Seixas evaporava-se como uma fragrância que a envolvia um instante, sem penetrar-lhe os seios d’alma.
Houve ocasião em que escapou a Seixas outra alusão ao passado. Como da primeira vez ela o atalhou:
— Esse tempo não existe para mim. Nasci há um ano.
Encontrando-se uma tarde com Lemos, Seixas o interpelou:
— Tenho um favor a pedir-lhe.
— Dois que sejam.
— Diga-me com franqueza, qual o motivo por que o senhor escolheu-me de preferência para marido de sua pupila, quando nem me conhecia?
O velho debulhou uma risadinha que lhe era peculiar.
— Hã! hã!... Então quer saber? Pois lá vai; não faço mistério, não me convinha que a pequena se deixasse iludir pelas lábias de um desses bigodinhos que lhe andam ao faro do dote. Então soube que ela outrora gostara do senhor, e como pelas informações que tinha, me quadrava, fui procurá-lo. Agora o resto é por sua conta, maganão.
Esta explicação mais serenou o espírito do moço, e dissipou uns últimos rebates que ainda o assaltavam às vezes. Pensando bem, o modo por que ajustara seu casamento não era nenhuma novidade; todos os dias se estavam fazendo dessas alianças de conveniência, em termos idênticos; se não mais positivos.
Além disso a sorte, por uma feliz coincidência, fizera que desse projeto de casamento de razão surtisse um enlace de amor; de modo que o coração absolvia e santificava quanto se havia feito para realização de seus votos.
Continuou pois Seixas com os seus doces madrigais e os maviosos noturnos ao canto da sala.
Depois da noite da apresentação deixara Lemos a seu protegido, como o chamava, o cuidado de arranjar seus negócios. Apareceu-lhe porém uma manhã:
— Meu amigo, se não tem que fazer agora, vamos concluir o negócio. Isto de casamento é como a sopa; não se deixa esfriar.
Seixas também tinha pressa de sair da situação em que se achava; temia a cada instante ver dissipada a doce ilusão com que sua alma disfarçava a transação por ele aceita. A idéia de aparecer ante a moça sob o aspecto de um especulador, era-lhe suplício.
Acedeu prontamente ao convite do negociante, e acompanhou-o à casa de Aurélia, em trajo de cerimônia.
A moça prevenida da visita os esperava no salão, onde foram logo introduzidos; depois dos cumprimentos e de uma conversa frouxa e distraída, Lemos, formalizando-se, tomou a palavra:
— D. Aurélia, o Sr. Seixas a quem já conhece por suas excelentes qualidades, pessoa digna de toda a estima, pediu-me sua mão. Por minha parte eu não podia fazer melhor escolha, em todos os sentidos; mas tudo isto nada vale, se não tiver a fortuna de merecer o seu agrado.
Aurélia fitou em seu pretendente um olhar que desmentia o sorriso em flor de seus lábios.
— Não lhe assustam meus caprichos e excentricidades?
— Se eu os adoro! respondeu Seixas galanteando.
— Não lhe parece difícil fazer a felicidade de um coração desabusado como este meu, e tão afligido pela dúvida?
— Tenho fé no meu amor; com ele vencerei o impossível.
Apagou-se nos lábios de Aurélia o sorriso; e a expressão de um ardente anelo, ressumbrando do mais profundo de sua alma, imergiu-lhe o semblante.
— Aqui tem a minha mão; e tudo quanto posso dar-lhe. A mulher que ama e que sonhou, essa não a possuo. Mas se o senhor tiver o poder de a realizar, ela lhe pertencerá absolutamente como sua criatura. Acredite que esta é a esperança de minha vida, eu a confio de sua afeição.
A moça com um gesto de sublime abandono oferecera sua mão acetinada a Seixas, que a beijou murmurando as efusões de seu júbilo e gratidão.
O Lemos que se apartara discretamente para não acanhar os noivos, tornou à conversação, que reassumiu o tom ligeiro das banalidades do costume.
A notícia do próximo casamento de Aurélia produziu na sociedade fluminense grande assombro.
Ninguém podia capacitar-se de que essa moça, pretendida pelo creme dos noivos fluminenses, podendo escolher à vontade, entre os seus inúmeros adoradores, maridos de toda a espécie, tivesse o mau gosto de enxovalhar-se com um escrevinhador de folhetins.
O Alfredo Moreira, quando a encontrou depois da novidade, não pôde esconder o despeito:
— Então casa-se?
— É verdade.
— Afinal achou; cotação muito alta sem dúvida? replicou o elegante com ironia.
— Não, tornou-lhe a moça no mesmo tom. Ficou-me por uma ninharia.
— Ah! estimo muito. Que preço?
— Quer saber o preço?
— Estou curioso.
— Foi o seu.
O Moreira mordeu os beiços e riu-se. Apesar de tudo não perdera a derradeira esperança. O projetado casamento podia desfazer-se por qualquer motivo, e não era difícil que a moça de um momento para outro se arrependesse da escolha com a mesma volubilidade com que a tinha feito de repente e por um capricho.
Assim pensava o malogrado pretendente; enquanto que todos os indícios pareciam revelar da parte de Aurélia a firme intenção de persistir na primeira resolução, que ela não tomara, senão depois de muito refletida.
Desde que anunciou-se o casamento, começou a moça a aparecer mais raramente na sociedade, até que de todo retirou-se; limitando-se ao pequeno círculo que freqüentava sua casa, e no qual ela por assim dizer espanejava sua alma de um certo entorpecimento que lhe deixavam as ternas confidências e devaneios namorados do noivo.
Seixas pelas palavras que Aurélia havia proferido tão d’alma, na ocasião de dar-lhe a mão de esposa, julgara compreender o segredo das estranhezas e oscilações do caráter da moça.
Ela duvida que eu a ame; pensou consigo. Suspeita que tenho a mira em sua riqueza. É preciso que a convença da sinceridade de minha afeição. Se ela soubesse! Um desgraçado pode sacrificar sua liberdade; mas a alma não se vende!
Imbuído dessa idéia, não é de estranhar que Seixas tivesse em suas expansões uma exuberância que descaía em exageração. Muitas vezes fatigada, se não opressa, dessas demonstrações apaixonadas, Aurélia que debalde tentara adormecer com elas as desconfianças de sua alma, exclamava entre fagueira e irônica:
— Ah! deixe-me respirar! Nunca fui amada, nem pensei que o seria com tamanha paixão. Careço de habituar-me aos poucos.
A residência de Laranjeiras fora recentemente preparada com luxo correspondente às avultadas posses da herdeira, e já na previsão do próximo consórcio. Poucos eram os preparativos a fazer, para a celebração do casamento, e esses, apressou-os o dinheiro, que é o primeiro e mais eloqüente dos improvisadores.
Tratou-se pois de marcar o dia. O Lemos pôs em discussão a questão dos padrinhos. Já ele tinha cogitado sobre o assunto, e segundo a moda de nossa sociedade julgava indispensável pelo menos uma baronesa para madrinha e dois figurões, cousa entre senador e ministro, para padrinhos.
Não tinha ele amizade com gente dessa plaina, mas entendia que um simples conhecimento de chapéu, e até mesmo a carta de recomendação eram títulos suficientes para solicitar semelhantes favores, com que a vaidade dos grandes se lisonjeia e a presunção dos pequenos se exalta.
Grande foi portanto o embaraço de Lemos quando Aurélia declarou que um dos seus padrinhos havia de ser o Dr. Torquato Ribeiro.
— Que lembrança! disse Fernando involuntariamente.
— Desagrada-lhe?
Na fisionomia da moça perpassou um súbito lampejo. Podia-se tomar esse brilho pela chispa do solitário de seu anel que a luz feria, quando a mão corrigia um crespo do cabelo desprendido do toucado.
— Podia escolher outra pessoa, Aurélia.
— Não é seu amigo? Ah! cuidava!...
— Não tem posição.
— Decerto! acudiu Lemos. A posição é essencial.
Um simples bacharel não correspondia por modo algum à noção aristocrática que o velho tinha do paraninfo de uma herdeira milionária. Além de que transtornava-lhe o plano, pois os altos personagens convidados declinariam infalivelmente de ombrear com um rapazola que nem comendador era.
Aurélia porém não cedeu.
No dia seguinte assinou-se a escritura nupcial de separação de bens que assegurava a Seixas um dote de cem contos de réis.
A moça que sempre esquivara-se à mínima interferência em assuntos pecuniários, deixando esse cuidado ao tutor e conservando-se de todo estranha a semelhantes arranjos, ainda desta vez soube evitar qualquer inteligência com seu noivo acerca de interesses materiais.
Lemos levou Seixas ao cartório do Fialho, dizendo-lhe que era isso uma exigência do juiz de órfãos, no que não faltou à verdade, embora fosse antes a vontade da herdeira quem determinara essa condição, que facilmente se ilude no foro.
Só mais tarde assinou Aurélia, para o que levou-lhe o tabelião o livro à casa. Nenhuma palavra porém trocou-se entre ela e o noivo a tal respeito.