Sensibilidade (Evocações, grafia de 2008)

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Com os seus lindos bandôs brancos e o seu rendado mantelete de vidrilhos, aquela doce velhice tinha, apesar de enrugada e trêmula, um certo encanto nobre.

Fazia lembrar uma gravura antiga e grave, dessas, solenes e vagas, que pousam tristes, quase apagadas de traço, esmaecidas na tela, mas saudosas, ao fundo de algumas salas severas.

O seu nome carinhoso e parnasiano, recordava à primeira vista, pelo esmalte claro das sílabas, a forma de delicada porcelana, um fino e precioso mosaico ou os embutidos luxuosos dos charões.

E esse nome, aveludadamente azul — Lúcia — cantava-me ao ouvido com a doçura, a terna suavidade da mais íntima, penetrante carícia.

Rara e obscura existência, cabeça embranquecida nos gelos das sombrias dores ignoradas e apunhalantes, Lúcia, no entanto, andava dentre auréolas invisíveis de bem-aventurança, dentre etéreas redomas de clemência divina, como se nunca roçasse as diáfanas e níveas asas sutis das suas ilusões e reminiscências no lutulento, letífico charco da terra...

Era assim uma alma ainda não esgotada, ainda intacta, inédita, purificada nos rios claros e evangélicos das esperanças, atravessando o mundo sem ruído, oculta, calada, vivendo baixo, devagar, nos sugestivos silêncios, como numa eterna pausa de todos os rumores, pedindo aos recônditos dilaceramentos do coração que emudecessem, ou magoassem e afligissem, mas em segredo, para que lá fora o faustoso clamor da Vida, desdenhoso e vão, não se importunasse e humilhasse.

Era uma dessas assinaladas e tocantes velhinhas que impressionam e das quais, muita vez, a tremenda complexidade da Dor fica como que encerrada aos olhos insensíveis da formidanda massa do Mundo, através das brumas do egoísmo.

E ela mesma como que faz pensar em todas essas brumas, porque o seu perfil é brumoso, são brumosos os seus belos cabelos, é brumosa toda a sua contemplativa figura, que as brumas, as neblinas, os nevoeiros de fundo mistério envolvem de um luar solitário...

Outrora toda a sua bondade espiritualizava-se, subia à serenidade dos Astros, quando, pelas manhãs d'ouro e linho virgem, frescas de sol, eu a via, junto ao mar melancólico, gozando a saudade das vagas.

Por ali, perto das vagas, erguia-se um muro austero e alto, donde bucolicamente pendiam imensas e exuberantes latadas, verdes tentáculos de folhagem estrelados de rosas jaldes, de rosas brancas e de rosas rubras. Através de um gradil aberto viam-se louçanias de jardins, preciosidades de plantas, uma alegria pinturesca de vergéis e um repouso secreto e claro de Recolhimento, quebrado em dadas horas pelo quente esplendor bizarro de risadas.

Era uma página de comunicativa emoção, de emoção sempre crescente, sentir, no ouro e na prata fluido-vagante das manhãs, o pequenino perfil da Lúcia, vago e triste, tão humanizado naqueles momentos, tão existente, tão ser, tão vivo na irradiação alegre, clarinal do dia, olhando ao mesmo tempo, com igual enternecimento, o mar e os jardins próximos ruidosos em certas horas.

O peito desoprimia-se, respirava ao largo amplos e sadios haustos de mar diante dessa velhinha meiga, tão infinitamente sensível, tocada de uma graça de amor supremo, talvez pouco da terra já! mas que parecia ser o símbolo sagrado das resignadas, abnegadas mães.

Toda aquela vida era, entretanto, assediada de agitações constantes, com todos os fenômenos do Desconhecido, fenômenos profundos, com origens e raízes longínquas e em cujo centro ciclônico, terrível, ela girava amargamente, confusamente, arrebatada na vertigem do Mundo.

E tudo, em redor, como que a torturava em fogueiras acesas de inquisições, fazendo-a delirar de angústia, dessa lancinante impaciência, dessa inquietude que alvoroça os corações velhos que não têm a esperar mais nada.

E quantas, quantas vezes eu a vi, perdida nos tumultos, circulando por entre as multidões cerradas e atordoantes — erma, isolada, trêmula e triste, como se levasse toda a fatigada velhice lutadora de rastros ao sacrifício dos desdéns eternos, à indiferença de ferro das bárbaras hordas humanas.

E tão só, tão só caminhava, talvez sem objetivo, talvez sem rumo, que a minh'alma compadecida a acompanhava de longe, numa grande e genuflexa piedade muda de companheira misteriosa e solitária.

Mas com que dolorosa agonia, com que tormento, quase voluptuoso, ela circulava através multidões, errava através do ruído, através do alarido das ruas, das praças, através dos burburinhantes enxames de uma população variada, diversa de atitudes, de sensações, brutal de instintos, impetuosa de gestos, frívola, fútil, mexendo-se em ondulações de estupendos bichos vorazes, venenosamente serpenteando...

Muitas vezes era pelos dias de abrasante sol e poeira, quando os mormaçosos estios relampejam e torram as vegetações recentes e o ar pesa elétrico, túmido de trovões e raios.

As correntes intensas e luminosas do calor, as atmosféricas fulgurações zumbentes e escaldantes, atravessadas da poeirada fatigante, punham no ambiente lassa preguiça tropical, dando uma forte exaustão de nervos, que pedia longas, demoradas sestas...

Era por esses dias febrilmente calmosos, em que o espaço, hirto, rígido, parece feito de metais incandescentes e de vidro.

Candente dureza estéril, surda, sufoca, numa asfixia mortal.

Paira em tudo a prostração, a combustão de um incêndio prodigioso em longas extensões de florestas, de selvas intermináveis, de matas escuras e virgens; a tontura morna e enervante da chamejação poderosa, luxuosa, rica, de grossas e resinosas cordoalhas alcatroadas ou das línguas flamívomas e fantásticas de enormes aglomerações de carvão de pedra ardendo com feéricas e estrepitosas labaredas.

Como que chiantes e algazarrantes crepitações de cigarras, riscam, retalham e cortam nervosas, com a vibrátil tensibilidade das asas, as fremências ríspidas do sol aberto, aceso estranhamente nos altos.

E o sol, devorando ferozmente as seivas, numa insaciabilidade animal de tigres e panteras esfaimadas, faz lembrar horrível, tremendo e torturante carrasco levantando no Infinito guilhotinas atrozes, cujos formidáveis e ígneos cutelos invisíveis fulminam medonhamente os corpos...

E a retina fatigada, cansada de fitar os aspectos quentes, as paisagens abrasadas, ofuscada pelos deslumbrantes estrelejamentos que a constelaram, descai langue, frouxa, perdendo já a percepção clara das linhas.

Lúcia, entretanto, nômade eterna, errava entre essa atmosfera de sol e poeira, como nas tórridas, áridas vastidões de um deserto. E o seu humilde perfil de peregrina, martirizado pela inclemente ação cáustica da luz, parecia convulsionar-se, contrair-se, contorcer-se espiralmente em eletrismos ardentes de serpes ébrias de cio, encolher-se, murchar como planta esquisita e melindrosa que a chama cresta, devora...

Era de uma sensibilidade que magoava até às profundezas da alma ver girar sob o sol em fogo, na amolentadora dormência da poeira turva, o vulto triste dessa velhinha, — alquebrada, aturdida, sonolenta nos entontecedores espasmos, nas radiantes nevroses do sol...

Parecia que todo o fino tecido, todas as fibrilhas e filamentos da claridade fulva, vibrante, a magnetizavam, a prendiam como que em redes cintilantes de raios, de brilhos, de centelhas, de siderações, de flamas, de ardências solares, de coruscantes crepitações.

Parecia que as chamejativas e agulhantes áspides mordentes e circundantes do sol a apertavam, a comprimiam, a enlaçavam, roçando, babando, lambendo sedentas, sedentas, a epiderme engelhada da supliciada velhinha, embebedando-a de sensações infinitamente complexas e esdrúxulas com as atritantes e cocegantes flexibilidades circulatórias dos seus filiformes e moles organismos...

Deveria, ao certo, embalá-la, adormecê-la, fazê-la sonhar um pouco, ao certo, toda aquela luminosidade letárgica, ansiaste, flagelativa, que morbidamente a atravessava, a inoculava de tóxicos e alcoolizadores amavios de feitiços narcotizantes, de venenosos e deliciosos ópios, de sutilezas, de delicadezas nervosíssimas de uma sensibilidade quase lasciva, de tão martirizante, dolorosa e penetrante que era através dos espessos, densos nevoeiros da poeira e do sol...

Fazia pensar que uma desconhecida voz, que ela não sabia de onde vinha, chamava com carinho por ela, a abençoava na sua aflição, no seu dilaceramento, suavizando-a na dor, protegendo-a na torturante peregrinação, compadecendo-se dela, bradando, clamando, como através do nebuloso pesadelo de um sono ou de brumas de luar, o seu nome meio velado, meio sonhado e soluçante: Lúcia, Lúcia, Lúcia — como o consolo da Sombra, como a piedade do Mistério, como a clemência do Vago: Lúcia, Lúcia, Lúcia!

O seu coração agoniado vibrava com mais veemência, com mais ímpeto, com febre, num profundo êxtase de sofrimento; e os seus amortecidos olhos, turvados pela névoa das lágrimas, espiritualizavam-se, languesciam, como num torpor comatoso, e ela então voltava, voltava, tornava a circular, ali, além, lá, por entre a multidão tenebrosa, como ainda na última esperança de alcançar o que buscava, o que em vão procurava no torvelinhoso caos da existência — velhinha, trêmula, triste, frágil, a cabeça agitada numa convulsão, no lancinamento angustioso de todo o seu ser fatigado, sob o flagelo inflamado das cortantes refrações luminosas, das faíscas e fuzis cambiantes e circunvolventes e da inquietante poeirada turva que subia em turbilhões no ar...

Parecia que aquele coração sofredor, arrancado violentamente do peito, eu sentia e via palpitar, sangrando ainda, suspenso, solto, alado, magnetizado, atraído pela intensa e estonteante vibratibilidade aérea, ao alto do Éter vertiginoso, com todos os seus gemidos, com todos os seus soluços, com todos os seus ais, com todos os seus gritos, com todos os seus gritos, com todos os seus gritos!

Penetrado de uma curiosidade doentia, desse indefinido desejo de mergulhar no absoluto das cousas, o espírito a acompanhava, sem se aperceber quase, por um movimento instintivo e simpático de atração pelo que é obscuro, isolado, só, como acompanha as emoções e sensações que abrem asas à noite, fugindo ao esmagamento do dia.

Não era apenas uma velhinha, trêmula, engelhada, que vagava todas as manhãs, desamparadamente: — era a Dor, a Dor cruel e ignota, que ninguém sentia, ninguém via, mas que vinha sempre sombriamente viver junto à estranha vida que no mar palpitava.

E, quem olhasse bem para ela, com afeto piedoso, com todo o concentrado sentimento, e demorasse num exame lento, silencioso, detalhado, de todas as suas feições, de todas as suas rugas, veria então como a Lúcia se transfigurava sempre que ouvia a matinal correria nos jardins do Recolhimento, sempre que encarava por muito tempo o mar, fitando-o como horrível inimigo que se não pode jamais destruir, mas apenas odiar em vão.

Um amargor, um fel, uma ansiedade, ansiedade de tudo, ansiedade mortal a crucificava, e ela então começava a percorrer novamente ao longo das praias, mas tão febril, tão inquieta, tão vertiginada a nobre e doce cabeça branca, que se temeria que ela fosse enlouquecer ou morrer ali de desespero.

Fazia mesmo lembrar um louco, igualmente cego e mudo, encarcerado e tateando na sua desgraça, debatendo-se para espedaçar as perpétuas grades do cárcere tenebroso da loucura, da cegueira e da mudez, ensangüentando inutilmente as mãos nos grilhões imaginários, com o delírio supremo, a aflição tremenda de uma alma que não sabe, que não pode dizer quanto sofre e sofre ainda mais por isso e sufoca e soluça e convulsiona e rebenta de sofrimento.

Era uma dor que tinha a sensibilidade curiosa de um violino miraculoso, vibrando freneticamente, com requintada nevrose, através de nevoeiros frios, nalgum país polar, e cujo som, partindo em arestas finíssimas e inflamáveis, em vez de deliciar de harmonia, ferisse, cortasse e queimasse as carnes.

A princípio aquela Dor subia como leve, melodiosa balada fria e triste, por turvo luar, sobre lagos calados, entre paisagens de lenda.

Subia suspirantemente, na mágoa dilacerante dos adeuses derradeiros, aflitiva lancinância das preces... Depois, transfigurada por invisível vendaval sinistro, era unia Dor que avassalava todo o seu organismo corno um espasmo de alucinação, rugindo em bramidos de mar alto nos bravios tostões desertos, nas abruptas penedias, nas brenhas brancas, sob as trevas soturnas e avérnicas das tempestades, cruzadas pelos Signos diabólicos e fosforescentes dos relâmpagos...

Ah! como eu a amava, como eu me apiedava dela assim, como me identificava com o seu sentir, como penetrava nos crepúsculos estrelados da minh'alma, assim dolente, assim fatalizada, essa extraordinária Criação dos dolorimentos, das incoercíveis angústias imponderáveis!

Vencida pela saudade e sugestão evocativa das ondas, ela vagava sempre, sem que ninguém soubesse qual era o seu objetivo secreto... E essa maravilhosa dor como que se ampliava, se derramava, enchia as vastidões do Mar imaginativo, cortado de lubricidade e tédio, enevoado de spleen, embriagado de um vinho sombrio e glauco, fascinador, inebriante, atordoativo, de sonambulismos esparsos, sedento da monstruosa, da satânica paixão dos naufrágios, soturnamente cantando, com triunfos d'inquisidor, as elegias das noivas — mais formidável que a Morte!

E enchia, enchia, enchia profundamente o Mar a grande Dor, filtrava-se pelos raios fluidos da luz, diluía-se no cheiro azotado e virginal das marés, eterificava-se, era essência, era eflúvio de emoção, era gérmen de sonho, perdido no ambiente picante, acre e ácido, das largas, amargas águas marinhas; era sensibilidade humana depurada, cristalizada, vivida na sensibilidade voluptuosa das ondas, partindo, vagando, errando corno aroma e brilho flavo de sol nos turbilhões fugitivos das velas nômades, também infladas, palpitantes também de flutuante, balouçante volúpia e da mais alanceada e nostálgica sensibilidade do Infinito...