Silvestre/I
José S. P. Vargas era o péssimo dos procuradores: só procurava para os outros. Após vinte anos de incessante trabalho, por sóis e chuvas, muita canseira e muita humilhação, achava-se ele no mesmo ponto de onde partira, com a diferença que partira aos vinte anos e só, e tinha agora mulher e dois filhos. A odisséia de um desses lutadores do foro está ainda por escrever. Se alguém a fizer, há de sair-lhe menos brilhante e variada que a outra, mas pode ser que mais triste ainda que monótona, ou talvez por isso mesmo.
Mas não tratemos agora do procurador nem das suas peregrinações. Tratemos do filho dele, Silvestre, um descorado menino de quinze anos, melancólico, taciturno, metido consigo, flor nascida em lugar de pouco sol, prestes a dobrar o cálice, para a terra, de onde veio. Silvestre custara à mãe dores infinitas; talvez por isso era mais amado do que a irmã, menina de doze anos, viva, alegre, refeita, a vender saúde por todos os poros. O pai compensava a filha, amando-a mais do que ao irmão. Ao cabo, ambos os pais queriam a ambos os filhos, com uma leve nuance e nada mais.
José Vargas fez ensinar ao filho as primeiras letras, que era o mais que lhe podia dar. Silvestre aprendeu consigo um pouco de francês. Aos catorze anos, o pai quis fazê-lo seu ajudante na procuradoria; mas a organização franzina do pequeno era pouco auspiciosa para tais labutações. Pareceu-lhe melhor metê-lo em um cartório, onde ele se habilitava para escrevente juramentado, e mais tarde escrivão ou tabelião, não saindo assim dos limites do foro a dinastia dos Vargas.
Silvestre não exprimiu a menor objeção acerca de tais planos. Ouviria acaso alguma coisa do que diziam dele? Sozinho, a olhar para o ar, com a cabeça entre as mãos, parecia dominado por uma idéia fixa. Seus olhos, grandes e brilhantes, encerravam toda a vida que fugira do resto do corpo. Com os cabelos lisos, incultos e caídos sobre as têmporas, dava uns ares remotos de Bonaparte, mas um Bonaparte mais do pensamento que da ação, e muito menos másculo. Na família, a opinião aceita é que Silvestre era doente — doente de alguma coisa física — ou coração ou baço — ou vermes. Da alma não podia ser, o pequeno não tinha desgostos. A família acreditava que a alma só adoece de desgostos.
As noites eram gastadas por ele, em grande parte, a ler um tomo velho comprado a um algibebe, certo dia em que a mãe lhe deu algum dinheiro. Ninguém sabia o que era o livro, que estava escrito em francês; mas a mãe achou natural explicação daquele amor às letras desde que a filha lhe deu notícia de que a obra era lardeada de estampas. Era claro que os bonecos divertiam o menino. Infelizmente, Silvestre descuidou-se um dia e deixou-o sobre a mesa de jantar. O pai viu-o, abriu-o e confiscou-o.
— Um pirralho a folhear retratos de mulheres nuas!
Silvestre chorou lágrimas de desespero no interior da alcova. A mãe, que o livrara do castigo já planejado pelo procurador, foi consolá-lo da perda, não menos que aconselhá-lo a não perverter-se com estampas desonestas. O pequeno ouviu-a, mas continuou a chorar, até que a própria dor adormeceu, os olhos secaram e a esperança lhe animou o rosto. A primeira quantia que pôde obter foi destinada a outro exemplar da obra; andou por algibebes, catou estantes e gavetas, durante uma semana e mais, até que descobriu o exemplar suspirado. Se tivesse achado um brilhante não ficaria mais contente. Meteu o livro entre a camisa e a pele e guiou para casa, onde o escondeu a sete chaves, tendo cuidado daí em diante em o não deixar rolar por cima das mesas.
Assentado que Silvestre entraria para um cartório de escrivão, foi esta ordem transmitida ao pequeno, que enfiou, mas não resistiu. Pelo contrário, alegrou-se muito, quando o pai lhe disse que era preciso ganhar a vida por si, e que, se tivesse juízo, brevemente podia ver o fruto do seu trabalho. Silvestre dispôs-se a seguir pontualmente os conselhos de seu pai e foi para o cartório. Ali deram-lhe papéis a copiar, autos a coser, serviço em que ele, posto lhe repugnasse, empregava o melhor da atenção que Deus lhe dera. Mas, como tinha muita vez os olhos no ar e o pensamento alhures, errava laudas e laudas, copiava-as de novo, com dispêndio do papel e da paciência do escrivão. O fiel do cartório tomou-lhe ojeriza; ele caricaturou o fiel, e este pequeno incidente ia cortando a fortuna forense de Silvestre. Passou, e com ele iam passando os dias, com grande enfado do pobre menino, que perdia a esperança das vantagens prometidas pelo pai.
Um dia, passando Silvestre pela Academia das Belas-Artes, viu-a aberta; entrou, pediu para ver alguns quadros. A simplicidade do pedido desviou a idéia de qualquer objeção. Demais, a comoção do pequeno era visível; era por força comoção de artista. Quando ele de lá saiu, duas horas depois, tinha o olhar alucinado, o pulso febril, o passo trêmulo. A vista das salas e dos alunos fascinava-o, revolvia-o todo. Vira com os olhos os quadros da Academia; com o espírito viu-o uma infinidade de obras-primas, e sobre todas elas uma que ele trazia em si, inédita, virgem, à espera de ver o sol, de a saudarem os séculos. Essa obra-prima não era a caricatura do fiel do cartório, menos ainda os traslados do escrivão. Silvestre vagou longo tempo pelas ruas da cidade. Quando cansou, refletiu no que lhe cumpria fazer para substituir a pena pelo pincel; e concluiu que era pedi-lo ao pai. Assim disposto, dirigiu-se para casa onde entrou alegre como nunca o vira a família. Entrou; foi ter com o livro misterioso, abriu-o e contemplou com a alma toda. Era uma história da pintura, entremeada de gravuras representando painéis célebres. As mulheres nuas que tanto irritaram o procurador eram umas Vênus e Bacantes, ali inseridas entre as Virgens de Correggio e Rafael. Silvestre fartou-se de contemplar as obras e releu a história de alguns pintores. A ambição não lhe falava na alma; ele não perguntava se o futuro lhe daria as palmas do Dominiquino e Rembrandt. Não; o que lhe pulava dentro era um painel que ele devia fazer, uma idéia, um sentimento, alguma coisa sublime que tinha necessidade de traduzir na tela e legar à imortalidade.
Nesse mesmo dia, Silvestre pediu à mãe que o tirassem do cartório e o mandassem para a Academia. A mãe sorriu tristemente do pedido do filho; mas descarregou a consciência de mãe transmitindo-o a seu marido. O procurador vivera até ali na ignorância do que podia valer a pintura, salvo para fazer alguns retratos, e isto mesmo nem era já aplicação sensata depois do daguerreótipo, então em plena posse de ambos os mundos. Quando a mulher lhe falou no desejo do pequeno, limitou-se a erguer os ombros; mas indo ele fazer-lhe pessoalmente o pedido, José Vargas irritou-se deveras.
— Tu estás doido? disse ele agitando as narinas. Pois hás de ganhar a vida a borrar pano!
Silvestre tentou fazer entender ao pai que não era precisamente o que ele queria, mas a potência intelectual do procurador não ia até compreender a transfiguração. O pai cortou a palavra ao filho e devolveu-o ao cartório.
Não havia mais que obedecer, Silvestre obedeceu.
Passados os primeiros dias, o pequeno levantou o espírito do abatimento em que o lançou a recusa paterna. Achava meio de sair a certas horas, em certos dias, e voltava ao edifício das Belas-Artes. Ali travou conhecimento com um dos alunos, tornou-se íntimo; alcançou confidências; fez-lhe algumas, e quando a amizade se achou cimentada — o que custa pouco entre rapazes —, obteve em casa do aluno as primeiras lições de desenho. Mostrou-lhe então alguns ensaios que fizera a ocultas; o aluno admirou-se da espontaneidade do talento e não acreditou que ele não tivesse tido mestre.
— Não tive nenhum, respondeu Silvestre com simplicidade; copiei algumas gravuras que tenho num livro.
Alcançou algumas lições: mas o mestre, vendo um dia que o discípulo lhe era superior, sentiu-se humilhado e suspendeu o obséquio. Silvestre colheu desde logo os primeiros espinhos. Não desanimou, nem era caso disso. O que aprendera era bastante para desenvolver-lhe o talento; atirou-se à arte com o melhor de seu coração. Imberbe como Rafael, não se acreditava menos votado à glória ainda que para ele a glória não eram os aplausos dos homens, mas só o fato de produzir alguma coisa. Quando lhe pareceu que ia bem no desenho, experimentou o emprego das tintas; arranjou uma tela, armou um cavalete, e trabalhou consigo. Ao cabo de muita tentativa, convenceu-se de que lhe faltava ainda muita coisa. Voltou à Academia, a pretexto de visitar o antigo mestre, mas com o único fim de observar como ele e os outros trabalhavam. Um professor do estabelecimento reparando na atenção com que ele assistia às lições e descobrindo-lhe no olhar alguma coisa superior, travou amizade com ele e deu-lhe na sua oficina lições particulares e práticas, que o rapaz aprendia com rapidez incrível. O desinteresse e o desvelo do professor falaram na alma de Silvestre, e deram-lhe, com as noções da arte que ele adorava, uma alta idéia de generosidade dos homens. O aluno era escravo do mestre; o mestre era pai do aluno.
A ambição de Silvestre — não digo bem — a necessidade de Silvestre era trazer à luz do sol e à contemplação dos homens uma Vênus que ele tinha na cabeça. No prefácio da obra sobre belas-artes que ele comprara ao algibebe lera o rapaz que o cristianismo expulsara os deuses pagãos do céu; Silvestre ignorava o que fossem deuses pagãos, mas alguns retalhos de frases do mencionado livro lhe deram idéias mais ou menos exatas do paganismo. Imaginava ele pintar uma Vênus expulsa do céu, com uma expressão e uma atitude inteiramente novas. O professor, homem de seu tempo, forcejava por arredá-lo de assuntos puramente clássicos; infundia-lhe o espírito do século. A natureza americana, a história moderna, a mesma história pátria, os costumes e as lendas nacionais podiam dar-lhe assunto a um painel superior; Silvestre não abria mão de Vênus. O livro dominava-o; a primeira leitura enfreava-lhe o espírito.
— Percebo, disse-lhe um dia o professor, você tem na cabeça um ideal de beleza, é-lhe preciso transcrever na tela; escolhe Vênus que era a deusa das graças. Vá lá; faça esse quadro; voltará depois aos meus conselhos.
Não é preciso dizer que a Vênus e o escrivão eram inconciliáveis, e que, uma vez metido com tintas não podia Silvestre seguir com a mesma atenção os traslados e as certidões. Assim que o trabalho diminuía, as certidões saíam erradas, e o que mais era, o escrevente gazeava com freqüência o cartório. As coisas chegaram a tal ponto que o escrivão preferia vê-lo ausente. Um dia, porém, demorado um traslado por culpa de Silvestre, não teve o escrivão outro remédio mais que contar tudo ao procurador. Este notara algumas vezes a ausência do filho; mas no dia em que o escrivão lhe contou que as ausências eram multiplicadas e a desatenção do rapaz sem remédio, ficou mais consternado do que se lhe tirassem todas as procurações.
— Maroto! exclamou o pobre pai. Vou dar-lhe uma lição mestra. É a mania dos bonecos! Não cuida em outra coisa.
A lição foi comutada em repreensão graças à intervenção da mãe de Silvestre.
— Hás de ser homem do foro, quer queiras quer não! Perorou José Vargas. O foro é que te há de dar o pão; não hão de ser os panos pintados! Ou trabalharás como eu quero, ou vou meter-te no Arsenal de Guerra. Pelintra! Abusar da confiança de um homem honrado, estragar-lhe os papéis, comprometê-lo quase! Isto suporta-se? Sai! Vai-te embora!
A última palavra era um grito do coração do procurador, em quem o olhar doce e lastimado do filho começava a influir. Silvestre recolheu-se à alcova com a alma dilacerada. Tinha então quinze anos; via já claramente que devia renunciar a uma das duas coisas: a arte ou a família. O amor e a vocação lutaram nele com armas de igual têmpera; áspera e pertinaz refrega que acabou afinal, não pela vitória, mas pela esperança — a esperança de conciliar o cartório e a oficina. A solução consolou-o, como sabem consolar todas as quimeras. O pai mandou-o chamar.
— Resolvi tirar-te do cartório, disse ele, saboreando a alegria vã do filho; vais ser escrevente do Dr. Luís Borges. Não só serás seu escrevente, mas até irás morar com ele. Virás ver-nos aos domingos, ou de mês em mês, conforme te portares.
Silvestre lançou-se-lhe aos pés.
— Adeus! exclamou o pai; não percas tempo, que é aborrecer-me. Resolvi e não recuo.
Nem os rogos da mãe nem os da irmã puderam demover o procurador da resolução assentada. Força era obedecer. A mãe de Silvestre tratou de o aconselhar a proceder bem, com o fim de ver se afrouxava o ânimo do pai; a irmã desfazia-se em lágrimas; o procurador afogava a comoção em rapé.
O Dr. Luís Borges que José Vargas tirava assim da algibeira, como um chicote para castigar o filho, estivera com o procurador duas horas depois da repreensão que este fizera ao rapaz. O procurador contou-lhe as suas mágoas, a repugnância do filho ao trabalho forense, a inclinação de desenhar retratos.
— A maior parte do tempo consome-a naquilo, disse ele. Se não fosse franzino eu já o tinha metido no Arsenal ou em alguma outra parte, em que o obrigasse tal ou qual disciplina. Não sei realmente o que espera ele da...
— Mas já viu alguma pintura dele?
— Eu sei lá! uns rabiscos e pinceladas, que não entendo. Mas, ainda que entendesse aquilo é lá ofício que deixe lucro?
O advogado torceu a pêra, consertou a gravata e disse:
— Vou propor-lhe uma coisa.
— Diga!
— Seu filho precisa de um freio, não é? Pois eu me encarrego de o pôr a bom caminho. Faço-o meu escrevente, trabalhará debaixo da minha inspeção. Mas, não sendo isso bastante, convém que ele venha viver comigo; sairá do escritório para casa, e de casa para o escritório. Fá-lo-ei trabalhar, de modo que esqueça as tais pinturas. Serve-lhe?
A proposta era tão inesperada que o procurador não pôde responder logo; tudo entrava em seus cálculos, menos separar-se do filho. Contudo, a oferta era tão generosa, a proteção do advogado tão útil, que fora erro e descortesia não aceitar. O procurador aceitou, com muito agradecimento. Assentou-se que Silvestre iria na segunda-feira próxima para casa de Luís Borges.
Silvestre empacotou os seus pincéis, telas e cavalete, o seu livro de artes, alguns desenhos, vários esboços, enrolou tudo em folhas verdes de esperança, engolindo muita lágrima, e declarou-se pronto a seguir seu destino. O pai comoveu-se na ocasião de o abençoar, mas disfarçou o abalo dizendo ao filho:
— Vai com Deus! Se trabalhares com afinco e zelo, há em ti um bom tabelião.
— Não, murmurava o coração do adolescente, há em mim uma obra-prima.