Silvestre/II
O Dr. Luís Borges morava na praia da Gamboa, numa casa elegante, ainda que pequena, construída à custa de muitas razões finais. Era homem de quarenta anos, casado com uma gentilíssima senhora de vinte e cinco, sem filhos nem parentes, quase sem amigos. A fortuna não era nem surda nem solícita aos rogos do advogado; era como a maré que ele via das janelas todos os dias; enchia e vazava. Ele tinha a virtude de não esmorecer com as vazantes nem alucinar-se com as enchentes. Laboremus era a sua máxima.
Quando Silvestre ali apareceu, no dia ajustado, acabava o Dr. Borges de ler as folhas e preparava-se para ir ao almoço. O pai fez entrega do filho e saiu. O pequeno ficou trêmulo e sem voz.
— Venha cá, meu rebeldezinho, disse o advogado; venha sem medo. Com que então, em vez de copiar autos, V. M. dá-se à pintura?...
Silvestre não ousava levantar os olhos do chão. Não se sentia triste somente, mas irritado e indignado. Não falava porque não podia; mas dado que pudesse, é provável que não rompesse o silêncio.
Luís Borges caminhara para ele, com a mão esquerda ergueu-lhe a cabeça, e contemplou-lhe alguns segundos as feições finas, os olhos rutilantes de juventude e esperança, a fronte amassada de talento e ambição. Ao mesmo tempo, Silvestre, que até então não olhara em cheio para o advogado, pôde ver-lhe o rosto, que ele supunha ser peludo e tétrico e achava simplesmente franco e amorável.
— Há aqui alguma coisa, murmurou o advogado.
Silvestre corou até a raiz dos cabelos.
— Que tem pintado você?
— Quase nada.
— Alguma coisa, ao menos.
— Mas tão pouco!
— Há de deixar-me ver.
— Não posso; são esboços sem valor. Quando eu fizer uma grande obra, sim.
— Olé! Já pensa nisso?
— Não penso em outra coisa.
— Mas, menino, ninguém chega a uma grande obra sem passar por obras pequenas. Engatinha-se antes de andar. Eu quisera vê-lo engatinhar.
Silvestre não disse palavra.
— Tem o pudor do incompleto! pensou o advogado. Sabe que seu pai trouxe-o para cá, continuou ele em voz alta, para que trabalhe e se deixe de pinturas. Eu, porém, permito-lhe que pinte.
Silvestre quase desmaiou. Agarrou-se às mãos do advogado, como a pedir-lhe que repetisse o que acabava de dizer. Riu-se o advogado da alegria do pequeno, e, não só lhe disse que podia pintar em suas horas vagas, mas até que, se visse algum trabalho sério, de onde pudesse concluir que havia nele talento, lhe arranjaria um professor. A alma de Silvestre respirou largamente, livre do infortúnio que a oprimia; achava um protetor, onde cuidava ir buscar um algoz. Podia enfim ser artista!
E de saber que Luís Borges, apesar dos seus quarenta anos não perdera os entusiasmos juvenis, nem algumas das ilusões da primeira idade. Cria na arte, na glória, na poesia. Quando José Vargas lhe contou desanimado a vocação do filho e a necessidade de refreá-la a fim de lhe dirigir o espírito para alguma coisa mais útil, ou menos eventual, Luís Borges alegrou-se com a idéia de haver descoberto um artista e a de concorrer para desenvolvê-lo. Tal foi o motivo da proposta que lhe fez. Também ele tivera ambições, que o tempo levou, como leva outros tantos pedaços da alma. Agora, sentado nas ruínas da juventude, contentava-se em espraiar a vista pelo mar largo da juventude alheia.
Ia pois mudar a vida de Silvestre; seu gênio achava enfim uma pátria. O advogado mandou-lhe preparar uma sala e uma alcova, que havia no sótão da casa; duas janelas davam para o mar. Ele poucas vezes vira o mar, quase toda a vida esteve confinado em sua casa do Bairro dos Cajueiros. Quando estendeu os olhos pela água adiante, a alma estremeceu, como o cavalo ao ouvir o clarim da guerra. Também ele ia pelejar, a dura e gloriosa peleja da arte, que o seduzia e arrastava, e que o mataria se ele não acudisse de pronto. Silvestre encostou-se à janela e deixou-se ir ao sabor de seus pensamentos; lembrou-lhe a mãe, a irmã e o pai, de quem ia viver separado doravante, e ficou triste; mas a idéia de que lhes pagaria as saudades com muita glória o consolou da tristeza, e lhe levantou o espírito.
Os aposentos que lhe deram estavam alfaiados com o estritamente preciso; ainda assim não fosse, ele não repararia em nada. Sua melhor mobília eram os seus quinze anos. Tirou da caixa que trouxera os objetos necessários à arte, os pincéis, as telas, os desenhos; pôs as coisas em ordem, mas de modo que, em caso de entrar um estranho, pudesse esconder tudo. Feito isto, entrou a contemplar mentalmente a sua Vênus inédita; corrigiu um braço, avivou o colorido, dispôs melhor um acessório. A atitude não o satisfazia de todo; melhorou-a, mas reparou que a mudança prejudicava a luz, e voltou à primeira correção. O olhar não lhe parecia assaz expressivo; prometeu trabalhá-lo até alcançar a vida que lhe queria dar. Não é possível dizer com certeza que tempo gastou ele nessa contemplação e emenda, a verdade é que acordou quando o vieram chamar para jantar.
Luís Borges recebeu-o no gabinete, e os dois passaram à sala de jantar onde a mulher do advogado esperava por eles. Seguiu-se uma apresentação galhofeira, um jantar que a Silvestre pareceu de príncipe, muito carinho dos donos da casa, nada menos que a felicidade para o pobre rapaz. Silvestre, entretanto, comeu pouco; o acanhamento e as saudades não eram de desafiar o apetite. Não ousou sequer olhar para a mulher de Luís Borges, que aliás lhe falava com uma voz que devia sair da mais gentil de todas as bocas humanas.
Camila era o nome dessa moça, modelo de graça indolente e nativa elegância. Imaginem uma mulher, não alta, mas airosa, flexível como uma serpente, meiga como uma pomba; pondo-lhe no rosto cor de leite dois olhos pardos e vivos, um nariz reto como os das estátuas gregas, considerai-lhe a fronte lisa e pensativa, as curvas do colo, a perfeição do braço, e tereis a esposa de Luís Borges, e não a tereis toda, porque falta ainda a alma de toda essa figura, a alma que se derramava por toda ela e era uma coisa mais fácil de sentir que de explicar. Parece que lhe falam os próprios dedos — foi a primeira expressão de Luís Borges ao vê-la pela primeira vez, dez anos antes, isto é 1855, quando ela tinha apenas quinze anos e ele trinta. Três meses depois estavam casados. Uma vez casados, extinta a lua de mel, não se extinguiu o amor, que aliás nunca fora violento, senão pacífico, moderado e igual. Mas a conveniência deu lugar a novas descobertas. Camila, dizia um dia o marido, tem um gato no cérebro. Explicava ele deste modo as alternativas de carícia e arreganho da mulher, a indolência das idéias, a irritação fácil e a fácil docilidade.
Informada da história de Silvestre, Camila tratou-o com a mesma simpatia do marido, disposta como ele, a deixar que o gênio do jovem artista se desenvolvesse em plena liberdade. A figura de Silvestre fez ainda aumentar o interesse que sua história despertara nas duas almas sensíveis. Aquela palidez poética, o profundo e rutilante dos olhos, o véu de melancolia com que ele parecia esconder-se às vistas do mundo, mas através do qual se distinguia o traço da vontade e da perseverança, o próprio acanhamento das maneiras, faziam dele uma criatura interessante e original. Não lhe era preciso arrombar a porta dos corações; eles a abririam por si.
Era, pois, a vida de Silvestre a mais deliciosa coisa do mundo: trabalhava de manhã no escritório; de tarde e antes do almoço pertencia ao estudo; os domingos eram todos seus. Fechava-se para trabalhar à vontade. Mais de uma vez, Luís Borges pediu-lhe para ver os trabalhos; ele recusava-o sempre. Quando cansava, encostava-se à janela e esquecia-se a contemplar o mar e o céu. O ideal fundia-se no infinito; o artista ficava só com a sua criação.
Um dia, voltando do escritório, achou aberta a porta de seu aposento. Junto da janela viu Camila de pé, a contemplar um desenho, uma cabeça de Harpia, copiado de um modelo acadêmico. Antes de saber o que era, Silvestre correu agitado para a moça.
— Não tenha medo, disse esta; eu sou pessoa de segredo. Estava aqui admirando a sua inspiração. É magnífica!
Silvestre estendeu a mão para pegar no desenho.
— Não vale a pena disse ele; são esboços...
— Ciumento!
Camila proferiu esta palavra com tanta graça, que era impossível resistir-lhe; Silvestre esperou que ela acabasse o exame.
— Dá-me este! disse ela.
— Não posso; dar-lhe-ei outro melhor.
— Deixe ver.
— Mais tarde.
— Mentiroso!
Silvestre obteve o desenho e apressou-se a guardá-lo; só então reparou que deixara uma pasta sobre a mesa. Na pasta havia outros estudos; Camila, porém, só chegara a ver aquele. Enquanto ele guardava cioso os frutos de suas horas vagas, a mulher de Luís Borges admirava a fronte rafaelesca de Silvestre; a timidez graciosa de seus movimentos, os olhos plenos de vida espiritual.
— Escondeu tudo? perguntou ela.
— Tudo; tenho vergonha de deixar ver coisas tão grosseiras. Quando eu fizer alguma obra melhor, não terei dúvida em mostrá-la.
— Você pensa que me contento com tão pouco? disse Camila depois de curto silêncio.
Silvestre não sabia que dizer.
— Não, continuou ela; há de mostrar-me o que tem feito; quero apreciar os progressos de seu talento; numa palavra, não quero ser público. Deixe ver!
Silvestre tinha todos os seus estudos e preparos dentro de um grande baú, encostado a uma das paredes da sala. A moça caminhara para ele; ele correu a sentar-se no baú.
— Perdoe-me, disse o rapaz, eu lhe mostrarei depois; procurarei alguma coisa que seja digna de seus olhos.
A lisonja tem uma virtude rara; Camila, ouvindo o cumprimento de Silvestre, sorriu e parou. Foi a primeira vez que Silvestre atreveu-se a olhá-la de rosto, mais de um minuto. A atitude da moça, sua beleza característica, a expressão do olhar, tudo parecia próprio a impressionar um artista. Silvestre ficou literalmente fascinado; e Camila sentiu a impressão que lhe produzia.
— Pois bem, disse ela; consinto em esperar, procure alguma coisa digna de meus olhos... Meus olhos são bonitos?
— Oh! muito!
— Criança!
E dando uma volta ao corpo, Camila saiu da sala, desceu a escada, deixando o pobre rapaz ainda enlevado daqueles poucos minutos de conversa. Ergueu-se o filho do procurador e foi contemplar o mar, da janela aberta, com a cabeça cheia de todos os seus sonhos. Uma voz lhe dizia dentro:
— É esta a Vênus; este é o modelo da tua obra imortal. Tua visão incorporou-se, fez-se mulher, falou-te e ouviu-te. Tens a deusa; podes expulsá-la de teu espírito, que é o céu pagão. Eia! ao trabalho! transmite enfim aos homens o pensamento que te faz viver.
Quinze anos tinha, mas sentiu-se homem naquela suprema ocasião. Nessa mesma tarde cuidou de lançar ao papel os primeiros lineamentos do esboço. Não pôde; não se dominava ainda bastante. Mas não desanimou; trabalhou parte da noite a reproduzir a atitude e a expressão da figura, tais quais as tinha na mente. No dia seguinte estava pronto o trabalho preliminar. Pronto? Ele o desfez e inutilizou, como indigno do seu modelo. Não era ainda aquilo; quase desanimado, volveu à obra, até que ela lhe saiu perfeita.
Silvestre sentiu as primeiras alegrias da maternidade. O esboço era apenas esboço; não tinha ainda as proporções, a cor, a vida, o movimento; mas era o ovo prestes a soltar a ave misteriosa da sua inspiração. Guardou-o cuidadosamente e cuidou de preparar a tela.
Entretanto, Camila não esquecera a promessa do rapaz; não lha lembrava nunca em presença do marido; essa reserva pareceu a Silvestre uma prova de discrição, própria a captar-lhe a confiança. A insistência devia ao mesmo tempo falar à vaidade de Silvestre; não falou, porque ele ainda a não tinha; era cedo para conhecer esse verme do talento.
Durante uma semana, sofismou Silvestre o cumprimento da promessa; a resistência não pôde ir além, e ele cedeu. De seus primeiros trabalhos, todos cópias mais ou menos incorretas, escolheu o que lhe pareceu melhor, era justamente a Harpia que ela lhe surpreendera naquela tarde. Camila recebeu-a com expressões de exagerado entusiasmo, contemplou-a, beijou-a, escondeu-a.
— Promete que não mostrará a ninguém? disse ele timidamente.
— Prometo.
Desse minuto em diante, Camila tornara-se a confidente natural e zelosa do jovem artista; ele lhe dizia suas esperanças, seus planos de futuro; falava-lhe ingenuamente da obra-prima com que queria dotar o mundo.
— Mas o que é? perguntava a mulher de Luís Borges.
— Depois verá. Tenho lá em cima a tela em que hei de reproduzir o painel que trago na cabeça; logo que comece a trabalhar fecharei a sala de modo que ninguém lá vá quando eu estiver fora.
— E se eu tiver outra chave?
Silvestre pôs as mãos em ar de súplica. A simplicidade do movimento desarmou a moça. Ela prometeu que não iria surpreendê-lo nunca; mas impôs uma condição.
— Desejo ser a primeira que veja o quadro.
Silvestre respondeu que sim. Nessa ocasião, Luís Borges entrou na sala em que eles estavam; Camila continuou uma história que não havia começado, com tal arte e prontidão, que assombrou o rapaz e lhe tirou os últimos receios. A moça fazia-se cúmplice da glória.