Saltar para o conteúdo

Silvestre/III

Wikisource, a biblioteca livre

Camila esperava-o com ansiedade; ele encontrou-a carinhosa e risonha. Luís Borges chegou pouco depois; conversaram da família de Silvestre, algum tempo, antes do chá. Quando Silvestre se despediu dos dois protetores, disse o advogado à mulher.

— Menti hoje ao pai deste pequeno; disse-lhe que o filho está absolutamente entregue aos meus trabalhos, quando a verdade é que só os faz por desempenho de obrigação. Ora, se efetivamente tivéssemos ali um talento, uma esperança, um futuro, a mentira era piedosa e o resultado viria justificá-la; mas que sabemos nós da aptidão de Silvestre? Coisa nenhuma. Estamos a embaçar o pai, sem proveito para o filho; é leviandade pelo menos.

Camila fez um gesto para falar.

Que é? perguntou o marido.

— Nada, disse Camila depois de um silêncio. Esperemos; algum tempo ainda e ele nos dará...

— Quisera contratar-lhe um mestre, mas se nada vejo do que ele faz... Já lhe propus fazê-lo entrar para a Academia; recusou, porque o pai havia de opor-se.

Camila tivera idéia de mostrar ao marido o desenho que Silvestre lhe dera e tal foi o motivo de seu primeiro movimento; mas a promessa feita ao rapaz de que não o mostraria a ninguém, fechou-lhe a boca. Agora, insistindo o advogado, ela ouvia em sua consciência uma voz remota que dizia: “Não tenhas segredo para teu marido”. Ao que outra voz mais próxima respondia: “Lembra-te da promessa que fizeste”. Insistia a primeira: “Olha, não cedas a uma puerilidade”. Acudia a segunda: “Tua palavra é um contrato”. E uma e outra falaram ainda longo tempo, enquanto Luís Borges, supondo ter um diálogo com a mulher, ficara reduzido a um simples monólogo.

No dia seguinte, que era domingo, começou enfim Silvestre o famoso painel que trazia dentro de si. Como se datasse uma era nova, o jovem artista marcou a hora e o minuto em que lançou na tela os primeiros traços. Ele tinha a força dos criadores, que é ao mesmo tempo a fraqueza dos iludidos: a convicção de um grande papel debaixo do sol. Quantos, diante da tela ainda nua ou da folha de papel imaculada, não crêem que vão trabalhar para os séculos e não chegam a trabalhar para uma semana? Silvestre tinha essa crença ingênua, poderosa e vivaz. Ele ia dar ao mundo uma Vênus nova, melhor que as outras, mas digna irmã delas.

Camila foi ter com ele na primeira ocasião azada. Ele cobriu com uma toalha o encetado painel apenas ouviu os passos da moça; mas o gesto não tinha já o terror do primeiro dia; era antes coquetice que outra coisa.

— Já trabalhando! exclamou ela.

— Já.

— Vou-me embora.

— Não, ainda não.

— É algum retrato?

— Não é retrato.

Camila aproximara-se da tela; pegou na ponta da toalha, em ação de a levantar. Silvestre não obstou o movimento; ela não insistiu. Ambos davam assim uma prova de confiança e docilidade apreciada reciprocamente.

— Só lhe peço uma coisa, disse Camila.

— Que é? Diga.

— Não falte à promessa que me fez.

Silvestre respondeu com um gesto de assentimento. Era o mais que podia fazer na ocasião, porque não tinha voz; todo ele era olhos para a beleza incomparável de Camila. Vinha a moça num desalinho intencional — um meio de o familiarizar com ela, e mais que nunca viu Silvestre que não era outra a sua Vênus, não podia ser outra. Camila baixou os olhos com um gesto de Diana.

O jovem artista abriu então as suas pastas de esboços e estudos; um por um mostrou-os todos à esposa de Luís Borges. Eram corretos? Camila não podia dizê-lo; achou-os, todavia, lindíssimos.

— Oh! se você me ensinasse a desenhar! exclamou ela.

— Eu? Sou apenas discípulo.

— Discípulo!

— Discípulo da natureza e de mim mesmo.

Camila refletiu um instante.

Pois bem, disse ela; não me ensine; não desejo roubar-lhe o tempo. Mas...

— Diga!

— Era capaz de fazer o meu retrato?

— Talvez.

Camila interpretou esta palavra como uma afirmação, e agradeceu-o com tão infantil alegria que fez sorrir Silvestre, não tanto de orgulho como de curiosidade.

— Mas não fale nada ao Luís — recomendou a moça.

— Por quê?

— Eu lhe peço.

— Pois sim; será uma surpresa para ele quando vir o retrato pronto.

Logo que Silvestre se achou só, pareceu ter colhido nova soma de inspiração. Um bafejo criador guiou o pincel do jovem artista. Daquele dia em diante a ocupação exclusiva do rapaz era o painel. Luís Borges comprava-lhe tudo o que era necessário à obra.

— Quero colaborar de algum modo em seu trabalho, dizia ele.

E consigo:

— Se quando ele o tiver pronto, não me mostrar coisa que valha a pena, força é reconduzi-lo ao foro, onde deverá então ficar, porque é melhor ser um bom escrivão do que um pintor detestável.

No meio do trabalho adoeceu a irmã de Silvestre. O pai foi um dia buscá-lo para ir vê-la, porque o estado era grave, e ele não queria que os dois irmãos se separassem sem uma palavra derradeira. Silvestre foi, travou algumas frases com a enferma e regressou à Gamboa. Luís Borges dirigiu-lhe uma repreensão amigável de que o pagaram largamente os olhos de Camila. Três dias depois faleceu a irmã; ele foi a casa, demorou-se lá até o dia seguinte de manhã; pela volta do meio dia regressou à casa de Luís Borges, penalizado com a morte, mas obcecado pela idéia que vivia.

O painel seguia seu caminho. Algumas horas furtadas ao trabalho, eram passadas ao pé de Camila, em uma doce confabulação íntima; ele bebia nos olhos dela a inspiração exausta em longas horas de aplicação. Depois volvia ao trabalho. Cada dia que passava como que arrancava o rapaz às cogitações deste mundo; ele vivia de uma vida extática e inconsciente. Não se lembrava já de ir visitar seus pais. Se o advogado lhe lembrava esse dever, ele saía de casa para ir a vinte passos sentar-se na praia, com a sua Vênus diante de si. A mãe sentia a ausência, mas o pobre José Vargas cria firmemente que ele vivia preocupado e ocupado com os papéis do foro.

— Além disso, dizia ele, não sei que me parece obrigar o pequeno a vir aqui, quando o Dr. Borges nos faz o favor de lhe dar casa, comida e educação. É natural que ele trabalhe em paga disso.

— Mas, José, um minuto ao menos que ele viesse ver-nos...

— Um minuto! Só em andar gastava ele mais. Descansa; ele virá quando puder.

Não podia, não iria nunca. Silvestre já não pertencia ao mundo das coisas externas. O mundo para ele, estava limitado nas dimensões da tela. Nem já dava aos trabalhos que o advogado lhe cometia aquela atenção com que a princípio correspondera aos sentimentos dele. Luís Borges desistiu de o ocupar mais; compreendeu a causa da desatenção e dispensou-o de ir ao escritório. Assim os dias todos eram passados em casa, entre o painel e Camila.

Um dia, enfim, após algumas horas de trabalho, Silvestre desceu e foi ter com a mulher do seu protetor. Ela estremeceu ao ver-lhe as feições transtornadas. Interrogou-o e a resposta tranqüilizou-a. Nada acontecera que prejudicasse a obra.

— Tive uma vertigem, murmurou ele.

— Uma vertigem! Anda descansar um pouco.

Silvestre estava ainda pálido; sentou-se; a moça ficou diante dele alguns minutos.

— Quer saber uma coisa? perguntou Camila. Você trabalha muito. Não quero mais isso; agora há de fazer o que eu mandar.

Silvestre abanou a cabeça.

— Não é esse trabalho o que me faz mal, disse ele; é outro; é este. Dizendo isto o moço bateu com o dedo na testa. Camila, com as mãos arredou-lhe os cabelos, olhou para a testa silenciosamente, e pousou-lhe um beijo leve e úmido. Silvestre não corou, sentia a mesma impressão de conforto que lhe davam os beijos de sua mãe. Ergueu-se e subiram os dois. Na ocasião de descer, Silvestre, apesar de incomodado, cobrira instintivamente o painel.

— Não vá trabalhar agora, disse Camila.

— Por que não?

— Porque eu não quero.

Silvestre insistiu; ela repetiu-lhe a proibição, não já com a voz doce, mas com alguma coisa da irritação felina. Silvestre cedeu de má vontade; encostou-se à janela e estendeu os olhos ao mar. No fim de algum tempo, ouviu um pequeno grito. Voltou-se. Camila erguera a ponta da toalha que cobria o painel, levantara a pouco e pouco até descobri-lo todo. Silvestre não correu para ela; deixou-se ficar de costas para a janela, a olhar para as duas Vênus.

Era o sentimento da arte que lhe arrancara o grito, que lhe abria extraordinariamente os olhos? Não; era a simples vaidade de moça bonita. As feições da Vênus eram as suas. Camila correu enfim para o pintor, pegou-lhe nas mãos e beijou-as.

— Magnífico! magnífico! exclamava ela.

Silvestre contemplava o quadro com igual admiração. A Vênus, expulsa do céu, descia pelo ar abaixo, com os olhos voltados para cima, uns olhos travados de cólera, mas de cólera triste e impotente, que são as quedas definitivas. Os cabelos, soltos no éter, pareciam a derradeira auréola da divindade. As mãos comprimiam o peito, os joelhos dobravam-se molemente; a figura despenhava-se levada pelo vento da morte. O painel não estava pronto; e, ainda pronto, faltar-lhe-ia muita coisa que a mão inexperiente do artista lhe não dera. Contudo, era a aurora de um magnífico dia.

Camila não cabia em si de contente. Ele explicou-lhe o pensamento da composição, que a moça ouviu com a mão dele presa entre as suas.

— A senhora há de perdoar, se tive o atrevimento...

Camila respondeu com um muxoxo de faceirice que bem exprimia a vaidade satisfeita. O painel era a sua própria apoteose. Que importava que a Vênus ali pintada fosse apenas uma Vênus, em vez de uma Santa Cecília e fugisse do céu em vez de caminhar para ele? Era o seu retrato, tanto bastava. A vaidade, porém, não falava no ânimo do artista; ele via a moça radiante, como um aplauso e não se deixava levar do aplauso. Contemplava a obra, ainda longe do ideal que desejava dar ao mundo; via só o que estava feito e o que havia por fazer.

Dali em diante, Camila foi admitida a vê-lo trabalhar no painel; ele retificava uma linha contemplando-lhe o rosto, avivava a expressão dos olhos fitando os dela. Camila orgulhava-se da obra; e nunca o famoso gato que o marido dizia haver no cérebro da moça se agitou mais freqüentemente, nem mais súbito passou do mole afago à áspera irritação. A mulher de Luís Borges parecia subir ao céu à medida que Vênus descia; as ocupações caseiras eram-lhe já agora insuportáveis; ríspida com todos, quase só era afável com o rapaz.

Enfim o painel foi concluído, certo dia em que o advogado e a mulher saíram a jantar fora. De noite, Silvestre deu a notícia ao advogado.

— Sim? clamou este. Não lhe quero dar um abraço antes de ver a obra; mas prometo-lhe que se for qual a esperamos, fica com duas costelas partidas.

Silvestre sorriu.

— Verá amanhã de tarde, disse ele.

De manhã acabado o almoço, Camila subiu ao aposento do jovem pintor. O painel estava descoberto; Silvestre sentado na borda da janela que era baixa, contemplava a namorada. Não a viu entrar, não lhe ouviu os passos sequer. Camila parou a olhar para ele. Ao cabo de alguns minutos, aproximou-se lentamente; de pé, ao lado do artista, também ela ficou largos minutos a namorar a obra. Quanto tempo ali estiveram? Nenhum deles poderia dizê-lo. Silvestre acordou enfim; a sua mão, entre as de Camila, tremia de comoção.

— Não é tudo o que eu sonho, disse ele; mas respiro enfim, porque eu precisava tirar isto de mim.

Camila não lhe disse nada, seu rosto, sereno e expansivo alguns minutos antes, tornara-se sombrio e o olhar aterrado.

— Que é? perguntou Silvestre.

— Não me havia lembrado nunca... este quadro... Se outros o virem, se for exposto ao público... ver-se-á o meu retrato...

— E então?

— Luís não há de querer.

— Mas por quê?

— Ora, você bem sabe... são escrúpulos. Oh! Luís não há de consentir nunca! Mas que loucura foi a nossa?... Eu devia tê-lo impedido desde que você começou.

A comoção crescia; a moça andava de um para outro lado, ora falando a Silvestre, ora consigo, Silvestre fê-la parar, segurando-lhe em uma das mãos.

— Descanse, disse ele.

— Como?

— Não aparecerá o quadro em público.

Os olhos de Camila responderam primeiro que os lábios.

— Sim? disse ela.

— Afianço-lhe.

— Mas...

Descanse; será um quadro de família; ficará no lugar mais escondido da casa, ou no mais público, à vontade do Dr. Borges.

Camila voltou os olhos para o quadro.

— Mas então, disse ela tristemente — perderá você a reputação; seu trabalho não será visto de ninguém.

— Que importa? Eu tinha necessidade de o fazer, não de o expor. É bonito?

— Delicioso!

— Isso me basta!

Silvestre voltou a sentar-se na borda da janela. Aproximando-se a moça, referiu ele minuciosamente toda a sua curta vida, curta para os fatos, longa para os sentimentos. Estes, sobretudo, ninguém os conhecia ainda; só ele podia repetir as comoções sentidas, as lutas anteriores, os sonhos desfeitos e renascentes, labutar da vocação, que acha obstáculos em cada pedra do caminho e os doma e vence. A moça ouviu-o com a mais terna e submissa das atenções. Era uma alma que se despia diante dela, que lhe confiava os mais íntimos segredos.

— Mas, disse ela quando ele acabou — se não me tivesse conhecido teria feito a sua Vênus tão bonita?

Silvestre pôde refletir e não responder. A resposta afirmativa ou não, seria a expressão da verdade? Mas a mulher de Luís Borges insistiu; força era dizer alguma coisa.

— Não faria, murmurou ele.

— Jura?

— Não são coisas que se jurem; mas creio que não podia fazer tão bonita, se a não conhecesse.

Oh! eterna vaidade! A resposta de Silvestre encheu de luz e alegria o rosto da moça; ela agarrou-lhe as mãos e beijou-as. Casto era o movimento; mas a viveza foi tal que o pobre rapaz empalideceu e entrou a olhar assustado para a Camila. Os olhos da moça, pregados nele pareciam devorá-lo. Nunca a fatuidade olhou mais complacentemente, nem com tanto fogo, mas também nunca a alma de um rapaz foi mais iludida. Silvestre, com as mãos para trás, fincadas no telhado, parecia querer fugir à moça.

Vaidoso! pensou Camila. Depois proferiu risonha este gracejo insulso: — Se Luís morresse, você casava comigo?

— Não! não! murmurou Silvestre.

Camila recuou dois passos da janela; a palidez de Silvestre assustava-a. Ia a falar, mas já ele não a podia ouvir, atirando o corpo para trás rolara pelo telhado abaixo até a rua; Camila soltou um grito...

Agora, o melhor era ir buscar o jovem pintor vivo e são, fazer com que os dois se explicassem; restituí-lo à família e pendurar o quadro. Mas se as coisas não se passaram assim! O rapaz morreu; Camila enlouqueceu quase; os pais não tiveram nenhuma consolação na terra — nenhuma, além da memória do filho.

A morte teve uma explicação: o delírio do talento satisfeito. Foi a explicação de Luís Borges e dos pais do artista. Mas há outra explicação muito mais exata; Silvestre iludiu-se; viu um gesto de amor onde havia uma alteração de vaidade ingênua. E tendo obtido tudo o que queria, que era a beleza de Camila, fugia-lhe desde que lhe supôs a oferta do coração.