Sombras
Que tienes? que estás pensando
Gloria de mi pensamiento?
Cervantes.
Quando, assentada á noite, a tua fronte inclinas,
E cerras descuidada as palpebras divinas,
E deixas no regaço as tuas mãos cahir,
E escutas sem fallar, e sonhas sem dormir,
Acaso uma lembrança, um écho do passado,
Em teu seio revive?
O tumulo fechado
Da ventura que foi, do tempo que fugio,
Por que razão, mimosa, a tua mão o abrio?
Com que flôr, com que espinho, a importuna memoria
Do teu passado escreve a mysteriosa historia?
Que espectro ou que visão resurge aos olhos teus?
Vem das trevas do mal ou cahe das mãos de Deos?
É saudade ou remorso? é desejo ou martyrio?
Quando em obscuro templo a fraca luz de um cirio
Apenas alumia a nave e o grande altar
E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar
Cuida ver resurgindo, ao longe, d'entre as portas,
As sombras immortaes das creaturas mortas,
Palpita o coração de assombro e de terror;
O medo augmenta o mal. Mas a cruz do Senhor,
Que a luz do cirio innunda, os nossos olhos chama;
O animo esclarece aquella eterna chamma;
Ajoelha-se contrito, e murmura-se então
A palavra de Deos, a divina oração.
Pejão sombras, bem vês, a escuridão do templo;
Volve os olhos á luz, imita aquelle exemplo;
Corre sobre o passado impenetravel véo;
Olha para o futuro e vem lançar-te ao céo.