Sonetos (Antero de Quental, 1880)/Elogio da Morte
Morrer é ser iniciado.
Anthologia Grega.
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acórdo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.
Não que de larvas me povôe a mente
Esse vacuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a rasão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo...
Nem fantasmas nocturnos visionarios,
Nem desfilar de espectros mortuarios,
Nem dentro em mim terror de Deus ou Sorte...
Nada! o fundo dum poço, humido e morno,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcraes da Morte.
II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento...
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia...
Atravesso, no escuro, a nevoa fria
Dum mundo estranho, que povôa o vento
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que misticos desejos me enlouquecem?
Os abismos do Nírvana apparecem
A meus olhos, na muda immensidade!
Nesta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irman do Amor e da Verdade!
III
Eu não sei quem tu és — mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassal-o.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as fórmas da noite, com quem falo.
Atravez do silencio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abismos do Futuro
Me inclino á tua voz, para sondal-o.
Por ti me engolfo no nocturno mundo
Das visões da região innominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo...
Fixal-o, comprehendel-o, basta uma hora,
Funerea Beatriz de mão gelada...
Mas unica Beatriz consoladora!
IV
Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espirito enublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassivel companheira...
Muitas vezes, é certo, na canceira,
No tedio extremo dum viver maguado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira...
Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.
Luz intima, afinal, alumiou-me...
Filha do mesmo pae, já sei teu nome,
Morte, irman coeterna da minha alma!
V
Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tedio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada...
Mas eu confio em ti, sombra vellada,
E cuido perceber tua linguagem...
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemmas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos...
Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!
VI
Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silencio mortuario,
Noite sem fim, espaço solitario,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta...
Eu não: minh’alma humilde mas robusta
Entra crente em teu átrio funerario:
Para os mais és um vácuo cinerario,
A mim surri-me a tua face adusta.
A mim seduz-me a paz santa e inefavel,
E o silencio ideal do Inalteravel,
Que involve o eterno amor no eterno lucto.
Talvez seja peccado procurar-te,
Mas não sonhar comtigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser único absoluto.