Sonhos D'ouro/VIII

Wikisource, a biblioteca livre
(Redirecionado de Sonhos D'oro/VIII)

Deixando a mesa do almoço, as pessoas reunidas em casa do Soares espalharam-se pela sala, varanda e jardim, formando grupos.

As senhoras ficaram na sala, vendo álbuns e figurinos, conversando sobre modas, ou tocando e cantando. Alguns cavalheiros resistiam ao perfume do havana para gozarem por mais tempo da amável companhia das moças. Outros, para voltarem mais cedo, saboreavam já o seu charuto, passeando no jardim, defronte das janelas, por onde às vezes intervinham na conversação.

Na varanda os capitalistas e negociantes discutiam sobre o estado da praça; apreciavam as transações mais importantes da semana finda; faziam conjeturas sobre a alta e baixa do câmbio, caindo por fim no assunto inesgotável de todas as conversas daquele tempo, por ser a preocupação constante de todos os espíritos: a conclusão da Guerra do Paraguai, que o intrépido Câmara acaba de selar com a última vitória.

Além, desdobravam-se as mesas de jogo à espera dos apaixonados do solo e voltarete; mais longe, se ajustavam passeios a pé e a cavalo, ou visitas aos hóspedes do amável Sr. Bennett.

Em toda essa reunião de pessoas havia dois pontos para os quais convergia a atenção: eram o Soares e a filha.

Os espíritos positivos, os homens de negócio, os soldados da cruzada fanática do ouro, que é a grande preocupação do século atual, esses infatigáveis obreiros do dinheiro contemplavam o capitalista como um herói ou como um gênio, como o César ou o Napoleão da praça. O comendador representava a seus olhos o símbolo ou mito da riqueza, como Hércules o era da força.

A rapidez com que Soares, de simples dono de um armarinho, se elevara a milionário por uma série de operações lícitas, mas combinadas com tino superior e executadas com incrível arrojo; o milagre dessa riqueza colossal honestamente acumulada em cerca de vinte anos, enchia de admiração não só os neófitos no culto do bezerro de ouro, como os mesmos negociantes já possuidores de algumas centenas de contos.

As vistas fitavam-se com afinco no rosto franco e prazenteiro do capitalista, que se lhes afigurava o dinheiro encarnado, o milhão feito homem. Estudavam sua fisionomia, aprendiam seus menores gestos, decoravam suas palavras ainda banais. O Soares tinha em si o grande segredo de ganhar dinheiro; talvez o precioso condão da riqueza estivesse em alguma particularidade de sua pessoa e fosse possível a um homem hábil surpreendê-lo.

Esforçavam-se pois em imitar aquele tipo de milionário improvisado. Um tinha notado que ele trazia sapatões de bico espalmado, feitos em uma tenda da Travessa do Carmo. Pensando que o segredo podia estar nisso, recorreu ao freguês antigo do capitalista para lhe fazer calçado em tudo igual. Outro observara que o Soares trazia uma pequena caixa oval cheia de rapé, não para tomar, mas simplesmente para cheirar.

Havia gente que não só copiava o milionário no vestuário e nos hábitos, como até na comida. Um chegou a convencer-se que o feijão preto e o lombinho de porco tinham virtude aurífera; e apontava a província de Minas como a prova do fenômeno.

De seu lado, Guida era naquele céu o astro da beleza, de que as outras moças não passavam de satélites. Em torno dela giravam os cavalheiros elegantes, todos aqueles que não tinham resumido a sua existência no balcão, e ainda se ocupavam de música, de arte e de sentimento. Para esses o dinheiro não é um fim, como para os primeiros, os cruzados do século; é meio apenas de obter o gozo; é um engaste para o prazer. Assim uma mulher bonita na pobreza parece uma crisólita embutida em estanho; na riqueza, torna-se uma pérola cercada de diamantes.

Os olhares desta parte da sociedade acompanhavam os movimentos de Guida com admiração e insistência igual à dos adoradores do dinheiro encarnado na pessoa de Soares. Ela também representava o mito do século, o milhão. Se o pai figurava o milhão feito homem, ela era o milhão feito anjo; o ouro convertido em luz, a libra esterlina transformada em estrela, o bilhete do banco adquirindo de repente a graça diáfana da asa de borboleta.

Os etimologistas, gente que profetiza o passado e inventa o esquecido, dizem que ouro, palavra de origem egípcia, significou primitivamente a luz, o sol, passando a designar o metal precioso por analogia. Se assim foi, como me parece racional, Guida personificava o ouro segundo a delicada comparação da poesia oriental: era o sol esplêndido da fortuna; era a réstia de luz coalhada em barra, o prisma bancário, o raio amoedado.

Entre todos os cavalheiros que se prostravam humildes ante o ídolo, distinguiam-se três, ou pela assiduidade na adoração, ou pela esperança que afagavam. Eram o Guimarães, o Bastos e o Dr. Nogueira: pessoas que sem dúvida merecem alguma notícia, pois um deles, segundo se dizia geralmente, teria de ser o feliz, o querido da fortuna, o marido da mais rica herança e da mais bonita moça do Rio de Janeiro.

Guimarães era um moço de vinte e sete anos, filho de um antigo procurador muito ginja, que devia deixar-lhe uma legítima de uns seiscentos contos de réis. O pai à custa de empenhos conseguira formá-lo em Direito; mas só por luxo, para dar-lhe o título que tanto invejara. Sucedeu porém que ninguém tomou ao sério a cousa, nem mesmo o rapaz. Todos continuaram a tratá-lo pura e simplesmente pelo nome, sem o competente doutor. Era tão profundo o esquecimento da formatura do filho do procurador que seus amigos e camaradas acreditariam mais facilmente que ele fosse um príncipe incógnito do que um bacharel.

Guimarães tinha um exterior agradável: bem feito, de talhe vantajoso, vestia-se no rigor da moda, mas ao gosto do alfaiate, e portanto com todas as extravagâncias do figurino. Montava bem a cavalo; fumava com garbo o seu havana; sustentava sofrivelmente uma dessas conversas de ninharias, essenciais nos intervalos da quadrilha e em ocasiões de apresentação.

Bastos era um corretor, que aos trinta e quatro anos já havia feito uma bela fortuna.

Soares o tinha no melhor conceito, e num círculo de íntimos lhe profetizara o milhão aos quarenta anos. Ora, o milhão, segundo o comendador, é o pólipo, que se reproduz com espantosa rapidez.

O corretor era o que se chama um bonito homem; isto é, uma estampa soberba para granadeiro ou tambor-mor. Alto de estatura, porte robusto, mas bem talhado, tinha um rosto de feições regulares, moldurado por uma bela suíça negra. Vestia-se com a simplicidade do negociante inglês; falava com acerto em assuntos comerciais; animava-se a discutir política até com os mais notáveis estadistas; porém numa roda de senhoras faltava-lhe a fluência, a menos que não se tratasse de compras e encomendas, ponto em que mais ou menos entrava o gênio mercantil.

O Dr. Nogueira advogava. Como todos os homens de talento, tinha-se envolvido na política, esse terrível maelstrom que arrasta em nosso malfadado país todas as grandes inteligências, como todas as ambições ardentes. Sua posição não passava de uma espera na grande caçada nacional. Apresentava-se candidato por sua província, e cheio de entusiasmo acreditava que ia abrir-se a seu talento uma carreira brilhante.

Ele tinha os dotes necessários: bela inteligência, palavra fácil e elegante, que amenizava as mais áridas questões e elevava os assuntos triviais; caráter dúctil, suscetível de amoldar-se a todas as situações como de ligar-se a qualquer indivíduo; caráter que se pode bem comparar ao estanho, de que se faz a solda. Soares tributava ao advogado a maior consideração e tinha plena confiança em seu futuro.

Apesar de magro e descarnado, o rosto do advogado tinha expressão muito distinta, sobretudo quando falava com interesse; então a fisionomia e o gesto desenhavam-lhe a ideia, antes que a palavra elegante viesse dar-lhe o colorido. Quem o escutava recebia ao mesmo tempo pelos olhos e pelo ouvido o seu pensamento, sempre elevado.

Cada um dos três candidatos a sol da bela estrela de ouro tinha mais ou menos consciência das suas, como das vantagens dos competidores. O Guimarães confiava na herança e na proteção de D. Paulina, em virtude da amizade antiga que existia entre a mãe da menina e a sua. Bastos descansava no conceito em que o comendador tinha a sua habilidade comercial, e nos trezentos contos bem líquidos, fechados na carteira em bilhetes do tesouro. O Dr. Nogueira contava com a consideração que lhe tributava o comendador, mas sobretudo com as altas e brilhantes posições, cujo prestígio sem dúvida fascinaria mais do que o dinheiro, a um homem habituado como Soares, a nadar em ouro.

Estes eram os títulos que exibiam os campeões em relação à escolha paterna; mas eles, que bem conheciam a Guida, sabiam quanto era importante e necessária a escolha da filha. Por isso empregavam todos os esforços para granjear o amor ou pelo menos a simpatia da linda moça.

Quando se tratava de um passeio, de uma conversa fútil para fazer rir as senhoras, de um brinquedo de sala, ou qualquer outra ninharia, Bastos e Nogueira se arredavam, deixando o campo ao Guimarães. Nenhum deles seria capaz de disputar ao moço a palma da garrulice banal e fofa, que imita as farfalhas da seda, ou os floreios do leque. Quando se ouve discorrer uma dessas nugas encasacadas, parece com efeito que não é um homem que fala, mas um alfinete, um grampo, um colchete, qualquer dos objetos indispensáveis ao vestuário feminino, que de repente adquirisse o dom da palavra.

O Bastos ficava mudo e pasmo diante da volubilidade do Guimarães; ele não compreendia que um homem tivesse essa propriedade de fazer-se realejo, e repetir durante horas e horas o que dissera na véspera ou ouvira dos outros. Quanto ao Nogueira, compreendia; mas, se alguma vez lembrou-se de competir com o Guimarães, arrependeu-se e corou de si mesmo, porque reconheceu o ridículo. Sua palavra era uma águia, pensava ele: a águia da inteligência, habituada a plainar entre as nuvens. Como podia fazer dessa ave corpulenta uma abelha que borboleteasse entre as florinhas de um jardim?

Para a asa altaneira só a flor gigante, a grande ninfeia escarlate, a rainha dos lagos, que os ingleses chamaram “vitória”, em honra de sua soberana, mas eu chamarei “imperatriz”, em razão de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico, e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de loto, que os indígenas chamavam “milho-d'água”. Não é decerto minha intenção invadir os domínios da ciência. Podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema; mas as flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia.

Onde me ia levando o pensamento? Voltemos à Tijuca.

O Bastos desforrava-se do Guimarães e do Nogueira, quando se tratava de alguma encomenda, de qualquer dos pequenos serviços que uma senhora, privada em nosso país da plena liberdade de sair só, tem necessidade de exigir e aceitar. O Rio de Janeiro é sem dúvida uma cidade de muito luxo, abundantemente sortida pela indústria estrangeira de todos os artigos de moda e fantasia; mas, como as especialidades não estão ainda bem distintas, em virtude da desigualdade e incerteza do consumo, muitas vezes é difícil saber onde encontrar-se aquilo que se deseja.

O corretor tinha um perfeito conhecimento dessa topografia especial do comércio a retalho. Quando se tratava de comprar uma fita de cor muito rara e perfeitamente igual à fazenda; de procurar um objeto que não se encontrava na Rua do Ouvidor ou da Quitanda; de escolher um presente de gosto, novo, ainda não visto; de descobrir uns botões ou enfeites de forma original e esquisita, fantasiados pela imaginação de Guida, o Bastos triunfava. Realmente fazia cousas admiráveis: ninguém arranjava uma encomenda melhor, nem mais depressa e mais barato.

Nogueira e Guimarães não ousavam disputar-lhe essa superioridade. O candidato, porque nem para si próprio sabia comprar; além de que sua posição não lhe permitia descer ao papel de comissário, nem mesmo de uma moça bonita. O Guimarães não tinha jeito, nem dinheiro: a mesada que recebia do pai, e os presentes que a mãe lhe fazia, não chegavam para operar os milagres de barateza, inventados pelo corretor.

Batido pelo Guimarães nos divertimentos, e pelo Bastos nas encomendas, o Dr. Nogueira tinha também seus momentos de triunfo: não eram mui frequentes, mas acreditava ele que deixavam profunda e longa impressão. Quando a reunião se tornava mais solene, o que sucedia em ocasião de alguma visita de consideração ou de algum jantar de cerimônia, o advogado aproveitava algum assunto favorável para soltar as asas à sua palavra fascinadora. Divagava com graça; e sobre o mais pequeno fato tinha a arte de bordar anedotas curiosas, ditos chistosos, reminiscências interessantes, que lhe fornecia uma sofrível lição histórica. Havia em tudo isto muita afetação, e mais liga que ouro; porém entusiasmava o seu auditório habitual.

Nestas ocasiões, Bastos e Guimarães afundavam-se em sua mediocridade. Os elogios, que obtinha a cada instante o talento do Nogueira, os incomodavam como um enxame de vespas; mas nada os esmagava como a atenção com que Guida ouvia.

O candidato, vendo a moça presa de seus lábios, com os olhos fitos nele, acreditava que essa alma gentil se abria docemente ao calor de sua palavra, como a flor ao raio da aurora; e que ele penetrava-lhe no seio, e a pouco e pouco tomava posse dela. Contudo não se desvanecia; acreditava que não era ainda o coração da menina quem o ouvia, mas apenas sua curiosidade.

Estas pretensões à mão da filha do milionário eram conhecidas não só pela família e pessoas que frequentavam a casa, como pelos estranhos. Nenhum dos três pretendentes recatava seus projetos; ao contrário, não perdiam ensejo de fazer ostentação deles, nem se embaraçavam com o reparo dos indiferentes, quando podiam colher uma vantagem sobre os rivais.

A sociedade habitual do comendador assistia a esse jogo matrimonial com o interesse e curiosidade com que os romanos apreciavam uma luta de gladiadores, e os ingleses acompanham um steeple-chase. Dividiam-se as opiniões, e também os votos e simpatias. Havia intermináveis questões a respeito da preferência de Guida por algum de seus três adoradores.

Talvez excite reparo a tolerância do Comendador Soares neste assunto, que tão de perto lhe devia interessar como pai. Esse modo de proceder não provinha de negligência, mas de uma resolução bem calculada. Entendia ele que o casamento de uma moça é questão vital tanto para os pais, como para ela; e portanto depende do consentimento de ambas as partes. Em outros termos, assim exprimira chistosamente o seu pensamento ao Nogueira, um dia em que este o sondou a respeito de suas intenções:

— Nesta matéria de casamento, meu caro doutor, eu sou a coroa, a Guida é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me à sanção ou ao veto. Assim o pretendente, quero dizer, o ministro, se quiser orçamento, deve usar de toda a sua eloquência no parlamento para derrotar a oposição.

O comendador era pois um pai constitucional representativo. Assistia com imparcialidade à luta dos partidos, reservando-se contudo o direito de ensaiar habilmente o governo pessoal, quando fosse indispensável ao bem público.

Além das três pretensões confessadas, havia no círculo do Soares um grande número de esperanças em botão, que não ousavam desabrochar; mas também não se resolviam a murchar. Ah! a esperança é uma das plantas mais vivazes que eu conheço; quando uma vez brotou no coração, não há meio de extirpá-la: é como a urtiga. Embora o ferro a corte, rebenta de novo. Só morre quando lhe esmigalham as raízes.

Assim, apesar de reconhecerem a impossibilidade de sua realização, essas esperanças pululavam em torno da moça, como um bando de besouros verdes nas pétalas de uma rosa. Quando à noite, depois de algumas horas passadas na casa de Soares, se recolhiam, ao deitar-se balbuciava cada uma em seu aposento, por este gosto mais ou menos:

— Este bigodinho!... pensava um, alisando diante do espelho o fino buço. Tem-se visto cousas!

— O caso é que ela gosta bem de cantar comigo! sonhava outro, recordando um dueto do Hernani.

— No fim de contas a elegância é o fraco das moças, murmurava terceiro, requebrando o talhe bem torneado.

— Um homem que valsa como eu, chama atenção num baile. E o que é um baile senão a batalha campal, onde se conquista a beleza? exclamava um jovem oficial que fez a campanha do Paraguai nas tertúlias de Montevidéu.

— Que ela me acha engraçado, não há dúvida; ora, o riso é o caminho do coração, dizia um repetidor de pilhérias, espécie de bobo de sala, esfregando as mãos.

Estas e outras esperanças viviam de ar, como os camaleões, e como eles, mudavam constantemente de cor: ora tinham o verde risonho da folha que nasce, ora o amarelo bronzeado da folha mirrada pelo sol, que o vento leva de envolta com o pó.