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Sonhos D'ouro/IX

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Guida animava com a sua graça e gentileza os diversos grupos que se tinham formado na sala.

No sofá, onde se conversava, ia sentar-se um instante para ouvir e interromper, excitando a réplica e provocando o riso com suas travessuras. No piano aparecia de repente, tocava ou cantava alguma cousa às pressas, e aproximando-se da mesa, mostrava às pessoas, que folheavam álbuns, lindas vistas da Suíça, da Escócia, de Sintra e da Tijuca.

O Guimarães, que estava naquele dia em veia de felicidade, acompanhava a moça nessas evoluções com certo ar pretensioso que não escapava às outras pessoas. Decididamente parecia que a preferência se manifestava pelo mais jovem e mais elegante dos pretendentes; tal foi pelo menos a opinião das senhoras, que nesta matéria falam de cadeira.

O Dr. Nogueira, despeitado com o remoque da Guida, na ocasião do almoço e a propósito da flor, conservava-se arredio; estava ainda no jardim fumando o seu charuto. Entretanto, quem o observasse com atenção conhecia que através das folhas das árvores ele não perdia de vista as janelas da sala.

Bastos estava indeciso; não se animava a entrar em combate, nem se resolvia a abandonar o campo. Recostado à sacada pela parte de fora, mas completamente voltado para dentro, observava a moça, sem contudo esforçar-se por atrair-lhe a atenção. Bem desejava obter aquela ventura; mas sua imaginação ingrata não lhe suscitava um meio de realizar seu desejo.

Teria decorrido cerca de uma hora depois do almoço, quando Mrs. Trowshy mostrou a Guida a figura esguia do Daniel em pé na porta do interior. A moça aproximou-se do criado, que lhe disse:

— Dei o recado; respondeu que há de escrever ao Sr. comendador agradecendo.

— Escrever? perguntou Guida.

— Sim, senhora.

— Então não vem?

— Pode ser.

— Bem!

Guida herdara do pai certa impetuosidade do desejo, que foi a origem da riqueza do capitalista, e devia exercer na vida da filha notável influência.

Depois do último encontro com Ricardo, naquela manhã, teve desejo de conhecer o advogado; desejo que revelou com franqueza na ocasião do almoço, pedindo a Guimarães que o apresentasse. Não confiando porém na promessa do moço, ao levantar-se da mesa, tomou o braço do pai e preveniu-o de sua intenção de mandar o Daniel convidar a Ricardo da parte dele, Soares.

— Manda! respondeu o pai com indiferença, habituado a confiar todas essas minúcias domésticas à mulher, que as abandonava à filha.

O Daniel partiu imediatamente; e o resultado de sua incumbência acabava ele de comunicá-lo à moça, com a sua imperturbável gravidade.

Is he coming? (Vem?), perguntou Mrs. Trowshy.

Guida disse que não, com um ligeiro aceno de cabeça.

Why not? (Por que não?)

Novo aceno exprimiu a ignorância da moça a respeito do motivo por que Ricardo não vinha. Contudo o tato de sua alma de mulher lhe indicava, embora vagamente, a natureza daquele motivo.

— Ele é pobre, pensava ela, muito pobre; há de ser suscetível portanto.

Talvez Ricardo se ofendesse com o convite, feito por intermédio de um criado; e a sua resposta de que havia de “escrever agradecendo”, manifestava bem seu pensamento: era uma alusão. Guida se desculpava consigo mesma, dizendo que Daniel era mais do que um simples criado: era um homem da confiança de seu pai. O convite por esse intermédio parecia-lhe tão delicado, como por carta, sem a solenidade que ela justamente não lhe queria dar.

Se Guida desejava anteriormente a presença do moço em sua casa, agora mais que nunca. Duas razões atuavam em seu espírito. A contrariedade do obstáculo e a vontade de desvanecer uma ofensa involuntária. O que fora até então uma lembrança delicada apenas, mudava-se em capricho.

Capricho? Quem não sabe o que isso é? A palavra o está dizendo. É a alma da mulher que se precipita sobre uma ideia, com a mesma temerária vivacidade e petulância da cabra selvagem a arremessar-se pelas arestas do despenhadeiro.

Guida sentou-se ao piano e começou a preludiar. Não tardou que o Guimarães se aproximasse, atraído pelo ímã, e bordasse sobre o tema da música uma dessas falas que parecem um crochê de palavras de diversas cores. A moça tomou interesse na conversa, e prolongou-a por algum tempo; mas interrompeu-se de repente como se lhe ocorresse uma ideia:

— Não pretende apresentar hoje seu amigo, Sr. Guimarães?

— Como? Que amigo?

— Já se esqueceu? Com efeito!

— Ah! lembro-me. O Nunes. Mas hoje?

— Então quando há de ser?

— Qualquer outro dia.

— Se não for hoje, que ele está na Tijuca, nunca mais o senhor achará uma ocasião para apresentá-lo. Amanhã estou certa que já nem se lembrará disso!

— Sou esquecido, é verdade; mas da senhora, D. Guida, lembro-me até demais.

— Pois lembre-se menos de mim, para se lembrar mais do que prometeu a meu pai. Vá buscar o seu amigo!

— Agora?

— Neste momento, disse Guida levantando-se.

— Mas se não sei onde ele está!

— Daniel há de saber. Vou dizer-lhe que sele o seu cavalo e o acompanhe.

Chegando à porta, a moça deu as ordens necessárias.

— Mas, D. Guida, confesso-lhe que poucas relações tenho com o Nunes; depois que nos formamos há seis anos, é a primeira vez que nos encontramos. Mesmo em São Paulo, nunca fomos amigos; apenas conhecidos. Chegou à corte, não o visitei. Não me julgo pois com direito a procurá-lo assim de repente...

— Tudo isto o senhor devia ter pensado antes de se comprometer: agora tenha paciência. Seu pai costuma dizer que dívidas não se perdoam.

— Ainda há uma razão. Eu sei que o Nunes pôs aqui um escritório de advocacia, porque vi o anúncio; mas se procede bem, se é homem fino, capaz de entrar na primeira sociedade, ignoro. Não posso portanto tomar sobre mim a responsabilidade de trazer à casa do comendador um moço que pode praticar algum ato...

Guida sorriu.

— Esse receio não tenha: eu o absolvo da responsabilidade.

— Mas o comendador?

— Fica por minha conta.

— Não! não devo abusar.

Guida olhou o moço com certo ar resoluto:

— O senhor não vai?

— A senhora fica zangada comigo?

— Oh! não; muito agradecida ao contrário!

Soltando essa frase cheia de ironia, a moça deixou o Guimarães atordoado; e voltou-se para sua mestra, que lia nesse momento um número da Illustrated London News.

— Mrs. Trowshy, a senhora hoje há de jantar perto do Sr. Guimarães.

Se ainda restava alguma hesitação no espírito do filho do procurador, desvaneceu-se de súbito e completamente diante daquela terrível ameaça. Jantar perto da inglesa significava o mesmo que ficar-lhe hipotecado pelo resto da tarde e por toda a noite. Para evitar essa calamidade, Guimarães entendeu que não lhe restava outra saída senão obedecer ao capricho da menina partindo em busca do colega.

— Já vou, D. Guida!

— Ah! Esquecia-me dizer-lhe que seu colega tem um amigo, um companheiro; é preciso convidar a ambos.

— Sim, senhora; cumprirei a sua ordem. Mas não me condene a jantar perto da mestra.

— Se trouxer quem o substitua! disse Guida rindo.

— Fica a meu cuidado!

Guimarães montou a cavalo e partiu com o Daniel. Todo este episódio não escapou, nem ao Bastos recostado à janela, nem ao Nogueira que passeava no jardim. O último não vira o diálogo trocado entre a Guida e o Guimarães; mas bastou a partida deste, acompanhado pelo criado da casa, para excitar-lhe apreensões.

Animado pela ausência dos dois competidores, só em campo, o Bastos, mais desassombrado de espírito, descobriu afinal o meio de solicitar a atenção da filha do milionário:

— D. Guida! disse ele com a voz um pouco trêmula.

— Chamou-me? perguntou-lhe a moça voltando-se.

— Como há de querer então os brincos?

— Que brincos, Sr. Bastos?

— Pois não me pediu no almoço para mandar fazer-lhe uns brincos do feitio dessa flor? replicou o corretor rubro como um tenor sem voz quando dá um de nariz.

— É verdade. Desculpe-me; não me lembrava assim de repente. Depois lhe darei uma flor para servir de modelo.

— Esta que a senhora tem?

— Esta ou outra, é indiferente, observou a moça com intenção.

Bastos perturbou-se, e nesse intervalo a atenção de Guida se desviou para outro lado, de modo que achou-se o corretor outra vez na mesma posição cruel em que estava anteriormente, recostado àquela janela e atado ao seu acanhamento, que era para ele um rochedo de Tântalo.

No meio das paixões que se agitavam em torno dela, Guida conservava, devido a seu recato e altivez natural, uma grande serenidade. Quando alguma vez uma palavra mais significativa ou uma alusão mais direta a vinha provocar, ela a afastava com a sua ironia, ou com essa expressão de indiferença que perturbara o Bastos.

Assim permanecia estranha à luta de que era objeto. Sua alma pura plainava como um astro sobre as vagas que a ambição ou o amor sublevavam naqueles corações. As bonanças, como as tempestades, desse oceano, se eram produzidas por sua influência celeste, não a atingiam: ela brilhava sempre com o mesmo esplendor e a mesma limpidez.

Em princípio, suas palavras, seus olhares, seus menores gestos, eram estudados por adoradores, como por indiferentes, e interpretados ao sabor de cada um. A moça incomodava-se muito com isso; retraía-se; tornava-se cada vez mais reservada, constrangendo sua jovialidade e franqueza. Não obstante o círculo em que vivia, obstinava-se em dar a quanto ela dizia ou fazia, uma significação oculta e misteriosa.

Uma noite sucedeu dançar duas quadrilhas com o mesmo par; tão indiferente lhe era o sujeito que não se lembrou de já ter dançado com ele no princípio da partida. O fato foi muito comentado, até por algumas amigas, que viram nele uma preferência manifesta. Guida aproveitou a ocasião para de uma vez pôr termo a essa insistência que a afligia.

— Tenho muito tempo para ser moça. Agora ainda sou criança, e quero sê-lo até dezoito anos. Não cuido nessas cousas de que os outros tanto se ocupam; só penso em divertir-me. Para mim é indiferente o par com quem danço, desde que for um homem delicado, de boa sociedade. E assim quanto ao mais.

Estavam presentes Nogueira, Bastos, Guimarães, e muitos outros apaixonados ocultos. Momentos depois as palavras da moça, repetidas em vários grupos, eram conhecidas por todos.

Guida dizia a verdade. Se era já moça na flor da beleza e na graça, tinha contudo a ingênua isenção da menina. Seu coração ainda estava em botão; seus pensamentos, embora alguma vez se embalassem nos sonhos azuis de um futuro risonho, eram em geral absorvidos pelo estudo, ou pelo prazer dos passeios e divertimentos inocentes.

Não brincava mais com bonecas, é verdade; suas bonecas eram Edgard e Sofia, ou as flores de seu jardim. Mas também ninguém a via tomar ares melancólicos e atitudes pensativas, suspirar a cada instante, ou recitar poesias de amor, acentuando as frases apaixonadas do poeta. Em uma palavra, não era romântica. Tinha a suas amigas afeição sincera; mas não lhes emprestava a linguagem ardente, que afetam certas moças, e que faz supor, sob o pretexto de amizade, a expansão de algum amor oculto, ou pelo menos de um amor ideal criado pela imaginação.

Por isso dificilmente podiam os adoradores de Guida iludir-se a respeito de sua indiferença. As palavras da menina não tinham sentido ambíguo, nem misteriosa alusão; o olhar, o sorriso, o gesto eram transparentes e não conheciam o jogo cruel de semear esperanças e excitar desejos, para depois machucá-los, como as flores ou as fitas que se trouxe no cabelo.

Assim o espírito sério de Nogueira não se deixava embair por seu amor-próprio; ele acreditava que Guida não dava a menor preferência a qualquer de seus adoradores; mas pensava que de repente podia seu coração desabrochar, e nesse momento se despertariam as impressões gravadas n'alma da menina. Toda sua tática se limitava a imprimir no espírito de Guida, como em uma cera branda, a admiração por seu talento e a confiança em seu futuro brilhante.

Mas, apesar de hábil, o futuro deputado estava apaixonado pela moça, e tanto bastava para tirar-lhe a calma necessária à realização de seu plano. Assim, na ocasião do almoço, ouvindo referir o incidente do serviço prestado por Nunes, tivera uma suspeita; e para esclarecê-la fizera a propósito da flor uma alusão que lhe valera a réplica irônica da moça. Arrependera-se e esperava a primeira ocasião para desvanecer a desagradável impressão.

Eram estas as cismas que ainda o preocupavam no jardim, enquanto fumava o segundo charuto:

— Quem será esse moço?... dizia ele consigo, arrancando distraidamente as pétalas de uma rosa. Foi hoje a primeira vez? Guida passeia a cavalo todos os dias; não o terá encontrado anteriormente?... Algum romance começado... quem sabe! O Guimarães saiu com o criado. Aposto que foi em busca do sujeito para apresentá-lo hoje mesmo. Não há dúvida! Por que motivo ela daria tamanha atenção àquele boneco, se não fosse o desejo de obter dele um serviço? E o tolo prestou-se!...

Nogueira meditou alguns instantes, e por fim murmurou:

— A cousa desta vez é séria!

Atirando fora a ponta do charuto, entrou na sala.