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Sonhos D'ouro/XXIX

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Na linda várzea do Brás, onde se desdobra um dos mais pitorescos arrabaldes da capital de São Paulo, há uma chácara extensa, cujos terrenos bordam a margem esquerda da estrada de ferro.

A casa é grande, abarracada, ao gosto paulista, e já bem antiga. Cercam-na vastas hortas e largos tabuleiros de flores.

No mesmo dia em que Ricardo recusava a mão de Guida, por volta de seis horas da tarde estavam reunidas várias pessoas na varanda daquela casa, em volta da mesa de jantar, onde acabavam de colocar dois castiçais com velas de estearina.

A senhora idosa, de agradável parecer e porte refeito, que sentava-se à cabeceira da mesa, era a mãe de Ricardo, D. Benvinda. Com as mãos cruzadas ao peito, no trespasse do lenço vermelho que trazia aos ombros, escutava com religiosa atenção a leitura de uma carta.

A seu lado estava uma linda moça, tipo dessa beleza plástica e serena, que distingue as paulistas, e à qual só falta um nada da petulância que têm as fluminenses às vezes em demasia. Era Bela, essa moça; e ao vê-la no repouso de sua formosura correta e imaculada, compreendia-se o culto de Ricardo que tinha em alto grau o sentimento artístico.

A Bela seguia-se Luisinha, e depois os irmãos e irmãs. Era a fisionomia de Ricardo, reproduzida sete vezes, em traços mais indecisos; neste perfil, com a suavidade do contorno feminino; naquele, com a alacridade da travessura infantil.

Em dias de chegada de paquete, como esse, Bela que morava perto da matriz, vinha passar a tarde com a tia, para receber notícias da corte, e ouvir as longas cartas que Ricardo escrevia com recados para todos, especialmente para ela.

Acabava Juca, um dos filhos de D. Benvinda, de chegar do correio, trazendo duas cartas, uma delas bastante volumosa e portulada com um batalhão de estampilhas. Pelo sobrescrito conheceu logo a velha que a do filho era a mais pequena.

Abriu-a, e disse com um suspiro ao passá-la à Luisinha para ler:

— Tão curta!

— É mesmo! repetiu Luisinha com a doce voz arrastada. Ele que sempre escreve tanto!

A carta continha apenas estas palavras:


Minha boa e querida mãe.

De prevenção e à pressa lhe envio estas linhas. Estou ocupado com um trabalho importante, que devo concluir até amanhã; e receio me roube o tempo que eu destino para conversar com aqueles a quem amo.

Mas trabalhando, não tenho eu sempre vivas em minha alma, para dar-lhe coragem, a sua imagem, minha querida mãe, a de Bela, de Luisinha,

de todos aqueles por cuja felicidade eu rogo a Deus todos os dias?
Abençoe-me, querida mãe; e dê a Bela o santo beijo que eu de longe não posso receber.

Seu filho

Ricardo

18 de agosto 1871.


Quando Luisinha terminou a leitura da breve carta, duas lágrimas rolavam pelas faces de D. Benvinda, que parecia absorvida na imagem do filho ausente. Bela se erguera, e enxugando com o lenço de cambraia as faces da velha, dobrou os joelhos para receber na fronte o beijo de Ricardo, ungido pela bênção materna.

Entretanto Luisinha voltava de todos os lados a carta volumosa, em cujo sobrescrito reconhecera admirada a letra de Fábio, o qual raras vezes escrevia e sempre de afogadilho, por desencargo de consciência.

— E esta é de Fábio? perguntou D. Benvinda.

— Não sei, respondeu Luisinha vermelha como lacre. Creio que é.

— Basta ver a letra, disse Bela.

— Desta vez desforrou-se! observou D. Benvinda contando as laudas da carta que tinha aberto. Toma, Luisinha; vamos ver o palavreado do rapaz. Já estou-me rindo!

— Leia você, Bela, murmurou Luisinha com as faces a arderem.

Era o costume. As duas noivas trocavam a vez nessa leitura.

A carta de Fábio era uma garrulice de estroina, mas não destituída de chiste e boas lembranças.

Suprimidos os nomes próprios, e metida em meia dúzia de colunas, aquela prosa caseira e do cote, podia bem gozar das honras do folhetim, e não teria que invejar aos mais asseados e domingueiros que aí aparecem.

Ao escrever essa carta passava o noivo de Luisinha por um desses momentos de plenitude moral, em que o espírito, como o coração, transbordam, e carecem de vazar a afluência de vida. Durante seis meses fartara-se de prazeres, divertira-se a não poder mais, gozara do mundo, era amado por uma mulher bonita e do grande tom. Estava cheio.

Retido em casa à espera de uma resposta que devia trazer-lhe dinheiro, o moço lembrou-se, para disfarçar a impaciência, de escrever à sua futura sogra, e começou neste belo teor:


Minha futura mãe e respeitável senhora.

Há tempos recebi uma carta sua em que me perguntava como ia na advocacia. Deixei passar alguns meses, antes de responder, para dar-lhe uma informação mais segura.

Agora posso dizer-lhe tudo que há a tal respeito e não é muito. O nosso Ricardo está com um escritório já bastante acreditado; tem clientes magníficos; e vai ganhando sofrivelmente. Eu só apareço lá, de longe em longe, para não espantar a caça; mas vou-lhe mandando as causas que posso. Sou um jornal vivo; mas jornal de sala, que é mais aristocrático, e mais barato.


Neste gosto continuava a carta, que Bela ia lendo no meio das risadas de D. Benvinda e dos muxoxos de Luisinha. Chegou, porém, um ponto, em que redobrara a atenção das três senhoras:


A Bela deve estar orgulhosa do noivo que tem. Se ela soubesse até que ponto Ricardo a ama!... Ele, estou certo que nada lhe dirá; mas eu é que

não sou caixeta de segredos; e este me está fazendo cócegas.

Aí vai, no ouvido, de cochicho, que não o ouça uma certa sonsinha, cujo pecado é a curiosidade.


— Isto é com Luisinha! disse D. Benvinda.

— É o que ele sabe me dizer.

Imagine-se a curiosidade com que foi ouvido o trecho seguinte, que leu Bela com a voz palpitante de emoção:


Há aqui na corte uma moça, que é a rainha da moda; chama-se Guida; é filha de um homem que não sabe quanto possui; tem dezenove anos e muito espírito; a respeito de beleza e elegância, não se fala; é o tipo; ninguém a excede.

Imagine quantos sujeitinhos andam-lhe arrastando a asa, apaixonados ao mesmo tempo pelos olhos pretos e os milhões amarelos dessa peregrina formosura.

Todo o alto coturno comercial, político, literário, inscreveu-se neste concurso; e cada um espera que lhe toque o anel.

Mas ela não faz caso de nenhum destes pretendentes;

e o seu fraco é por um certo advogado paulista, que nem dá fé das provocações, tão voltado anda para essas bandas da ínclita Pauliceia, onde lhe ficaram os olhos e o coração.

Bastava-lhe querer para em pouco tempo estar senhor de uma riqueza colossal e marido da mais bonita moça do Brasil, já se sabe, depois das duas que não é preciso mencionar. Mas ele sacrifica tudo à constância.


— É bem meu filho! interrompeu D. Benvinda com assomo de orgulho materno.


É verdade que não é ele o único; pois também outra pessoa tem sofrido sem pestanejar o fogo rolante dos mais feiticeiros olhos do Rio de Janeiro; mas, etc., etc., etc., etc., o resto pelo seguinte vapor.


Terminada a leitura, quando Luisinha e a mãe se inclinaram para acariciar Bela e regozijar-se com ela por mais essa prova do profundo amor de Ricardo, viram, ao retirar-lhe o papel ainda aberto diante dos olhos, que tinha o rosto banhado de lágrimas.

— Está chorando, Bela! exclamou Luisinha.

— É de felicidade, menina; também eu tenho os olhos cheios d'água, disse D. Benvinda.

Desde criança, de envolta ainda com os brincos da infância, começara Bela a amar Ricardo, com a efusão de uma alma que se entrega sem reservas de todo e para sempre. Estava em sua natureza querer com esse abandono de si mesma, sem pedir nem esperar retribuição.

Quando Ricardo formou-se, não lhe permitindo as apertadas circunstâncias da família realizar desde logo seu casamento, Bela resignou-se a esperar, com plácida confiança, e possuída da inalterável convicção de fazer a felicidade daquele que a amava.

Frequentes vezes insistiu seu pai em convencê-la da necessidade de casar-se com o Felício Lemos, outro primo seu, também formado, que desde a infância a disputava a Ricardo, mas preterido sempre. Aos reiterados pedidos, opunha a moça uma repulsa doce, magoada, quase súplica, mas inflexível. Ela julgava-se um bem de Ricardo; acreditava que Deus a reservara para fazer a ventura desse coração, que ela admirava. Não discutia pois, não se defendia; refugiava-se no seu amor.

Ao ler a carta de Fábio, no meio do espanto que produzia-lhe o tom leviano do estouvado a profanar as cousas mais santas, pela primeira vez uma dúvida cruel traspassou-lhe a alma. “Não era ela a única mulher do mundo que podia fazer a felicidade de Ricardo? Havia para esse homem outra ventura, outro futuro, outra existência, além da que lhe devia dar o seu amor?”

Com o soçobro causado por essa primeira percussão d'alma, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas sem que ela mesma soubesse por que chorava. Assim, quando ouviu a explicação que D. Benvinda deu a seu pranto, disse com um sorriso contrafeito:

— Há de ser de alegria mesmo!

Momentos depois recolhia-se Bela à sua casa, e achou na sala o pai, o Dr. Lopes, em companhia do Felício Lemos.

— Estávamos falando em você, Bela, disse o pai que dobrava um papel.

— Meu tio! Vm. prometeu-me que não contaria a Bela, disse o Lemos com exprobração.

— Mas é necessário que ela saiba, para perder a ilusão em que vive; portanto dispense-me da palavra que lhe dei.

— Perdão, meu tio, eu o respeito muito, mas neste ponto não devo condescender. Bela pode suspeitar que são meios empregados para demovê-la de sua resolução.

— Todos sabem que você é incapaz disso.

— Embora; não quero ser portador de más novas.

— Mas o que é, meu pai? perguntou Bela. Alguma notícia triste?

— Eu lhe digo. Ao passo que você espera com uma constância nunca desmentida ao homem a quem prefere sem razão, o ingrato lá na corte está tratando de arranjar um casamento rico.

— Ricardo? disse Bela com sublime confiança. É impossível, meu pai.

O Dr. Lopes desdobrou a carta que tinha em mão e apresentou-a à filha.

— Ainda duvida? Pois leia, Bela!

— O senhor me compromete, disse Felício com reproche, afastando-o do lado da janela.

Surpresa, e cerrado o coração de pressentimentos, correu Bela os olhos pelo papel.

A carta escrita ao Felício por um colega da corte, repetia os boatos da Rua do Ouvidor que davam Ricardo como pretendente assíduo da filha do banqueiro Soares, e o preferido entre todos pela moça.

— Então? perguntou o Dr. Lopes à filha quando esta acabou de ler.

— Ricardo não falta à sua palavra, meu pai.

E deitando a carta sobre a mesa, recolheu-se à alcova.

— Breve se há de desenganar! exclamou o pai irritado com aquela cega confiança.

Decorreu uma semana, durante a qual a alma de Bela, como um vaso de jaspe onde a custo filtra a essência, levou a embeber-se dos acontecimentos, que vieram perturbar o sereno remanso da sua vida de amor e saudades.

Outra vez chegou o correio; mas nesse dia a moça não foi como de costume para a casa da tia esperar cartas; e desculpou-se com uma enxaqueca, esse grande recurso diplomático das mulheres. Por volta de ave-maria trouxeram-lhe da parte de D. Benvinda uma carta.

De longe, apenas a viu na mão do portador, Bela adivinhou que era de Ricardo.

À frouxa luz do crepúsculo, recostada à ombreira da janela, com os olhos úmidos e a alma tomada de um indefinível sobressalto, leu a moça as palavras afetuosas que lhe dirigia o noivo.


Minha querida Bela.

Deus ouviu suas preces, as preces de um anjo, e abençoou os meus esforços.

Breve estaremos reunidos e para sempre. Viveremos na pobreza, a que a sorte nos condena; mas não é só a opulência que tem o direito de ser feliz neste mundo; ao contrário, muitas vezes ela não acha no meio de seu luxo um instante da alegria que enche a casinha do pobre.

Teremos de passar ainda por grandes provanças, minha querida Bela; não devo iludi-la. A vida

é difícil para aqueles que trilham a áspera vereda, e não se deixam arrastar pelas brilhantes equipagens, que passam cobrindo-os de pó!

Não me assusta a luta; conto, para dar-me coragem, com o nosso amor, que tem sido e há de ser o conforto de minha vida.

Às vezes perdido neste turbilhão da corte, minha querida Bela, têm-me vindo também a mim sonhos d'ouro, castelos encantados como fazem todos que têm imaginação. A riqueza que para certos indivíduos não passa de uma indigestão de dinheiro, é na mão de quem a compreende um dom sublime, quase celeste, porque transmite ao homem um influxo da Providência: enxuga as lágrimas da miséria, fortalece a virtude vacilante, e anima os nobres cometimentos.

Mas eu os espanco, a esses silfos tentadores, que agitam sussurrando suas asas de ouro, e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas, meu anjo da guarda, estou com Deus; e posso desafiar o mundo. Seu para sempre. Ricardo.

Soavam trindades na torre fronteira da matriz.

Ajoelhou-se Bela para rezar a ave-maria. As andorinhas esvoaçavam pela fachada da igreja, retalhando os ares com voos intermitentes. Já caía a noite quando duas se encontraram diante da janela, beijando-se com alegres chilidos, que assustaram a moça.

Ainda Bela não tinha rezado, tão absorvida estava em seus pensamentos.