Sonhos D'ouro/XXVIII
Depois de algumas voltas pelo jardim, as duas amigas sentaram-se em um banco de grama, próximo ao gradil da rua, onde enramava-se uma trepadeira de flores escarlates.
Houve na conversa breve pausa. D. Guilhermina espreitava disfarçadamente pelos claros do gradil; e Guida com o sobrolho levemente rugado parecia refletir observando distraída o gesto da amiga.
— Sabe, D. Guilhermina, esse moço... o Dr. Nunes..., disse Guida com indiferença.
— O amigo do Fábio?
— Está justo para se casar com uma prima em São Paulo.
— E anda por aqui divertindo-se?
— Que injustiça! Veio na esperança de ganhar alguma cousa para pagar as dívidas da mãe, e casar-se então; porque a noiva é tão pobre como ele.
— Coitadinha!
— E não é muito o dinheiro de que precisam. Vinte contos apenas!
— Não é qualquer bagatela, Guida!
— Ora! Você não gasta mais do que isso por ano?
— Sim; mas em minha posição!...
— Pois esse dinheiro que nós deitamos fora em vestidos, joias e luxo durante um ou dois anos, bastava para fazer a felicidade de tanta gente e por toda a vida.
— Que gente?
— O Ricardo tem uma irmã, D. Luisinha, que também está para casar com o amigo...
Guida sentindo a inquisição suspeitosa do olhar de D. Guilhermina, disfarçou a colher uma flor e concluiu:
— Com o Fábio!
— Ah!... Quem lhe disse? exclamou a mulher do Barros mordendo os beiços.
— O Dr. Nunes!
— Não sabia que estava tão íntimo com você, Guida!
— Eu o estimo pelas suas qualidades e sisudez.
Erguera-se D. Guilhermina, e a pretexto de olhar para a rua, afastou-se um momento para dominar a comoção produzida pelas palavras da amiga, e que no primeiro instante contida, a estava sufocando.
De seu lado favorecendo-lhe os desejos, Guida aproximara-se da casa, fingindo que a chamavam; mas realmente para deixar a outra em liberdade.
Quando de novo se encontraram, os olhos de D. Guilhermina estavam magoados, e as faces conservavam a marugem das lágrimas. Guida que se teria rido um mês antes, compreendeu aquela dor e respeitou-lhe a mudez, mostrando-se inteiramente alheia.
— Eu, se pudesse, disse Guida reatando a conversa, teria um prazer imenso fazendo-os felizes e realizando de repente os seus lindos sonhos!... Deve a gente sentir-se no céu, quando faz-se instrumento da graça e misericórdia de Deus!...
O profundo sentimento que ressumbrava nestas palavras de Guida, o fervor de seu gesto e o esplendor que iluminou seu lindo perfil, surpreenderam D. Guilhermina que fitou admirada o rosto da amiga; a cintilação dessa luz que manava do coração, filtrou-lhe n’alma; ela compreendera.
— Também eu! murmurou corando.
— Pois ajude-me!
— Como?
— É preciso conhecer as particularidades da família... O Dr. Nunes, se eu lhe perguntar, desconfiará e com certeza há de recusar, mas o Fábio...
— Ele nunca me falou na família do Ricardo.
— Porque não lhe tocou nisso.
— Hei de perguntar-lhe!
— Talvez ele apareça aqui esta tarde.
— Não deve tardar... Isto é, creio que ele vem, corrigiu a tempo a moça com vexame.
Mas Guida não fez reparo; e afastou-se na direção do gradil, olhando para a rua através dos recortes da folhagem. Momentos depois voltou pressurosa ao lugar onde ficara D. Guilhermina triste e pensativa:
— Aí está ele.
Efetivamente chegava Fábio ao portão; e avistando as senhoras ao atravessar o jardim, foi-lhes ao encontro.
Depois dos cumprimentos e banalidades usuais, Guida trocando com a amiga um olhar de inteligência, procurou um disfarce para deixá-la só com o Fábio.
— O senhor nunca me disse que seu amigo Ricardo tinha uma irmã? foram as primeiras palavras que D. Guilhermina dirigiu ao moço, interrogando-lhe a fisionomia com o olhar.
Ficou passado o Fábio. Apesar de sua leviandade, evitava com o maior cuidado tocar no que tinha relação com sua vida de São Paulo, pelo receio de divulgar o seu ajuste de casamento com Luisinha.
Imagine-se pois do atordoado que estaria, vendo a pessoa de quem mais desejava esconder essas particularidades, tão ao corrente, e sentindo assim evaporar-se de repente o seu castelo encantado.
— Não sabia que a senhora tomava tanto interesse por meu amigo! respondeu o moço buscando uma evasiva nessa ponta de ciúme.
— Mais do que o senhor pensa, e tanto que desejo pedir-lhe certas informações a respeito dele.
— A mim!
— Sem dúvida. Não é o senhor amigo íntimo do Dr. Nunes?
— Por isso mesmo, deve compreender quanto as suas palavras me fazem sofrer.
— Não vejo motivo. Conheço uma pessoa, que, sendo infeliz no seu casamento, consola-se quando pode fazer a felicidade dos que se amam.
Vinham estas palavras envoltas em um suspiro e perfumadas de suave melancolia.
— E recusa fazer a minha, quando sabe a paixão com que a adoro!
— Essa pessoa soube, não sei como, que o Ricardo tinha um casamento ajustado em São Paulo com uma moça a quem ama; mas sua felicidade depende de uma soma necessária para o pagamento de certas dívidas...
— Sua felicidade dependia de um escrúpulo. Hoje nem isso!...
— Deixe-me acabar. O que eu desejo que o senhor me diga, pois está no segredo da família, é o modo de pagar essas dívidas, sem que seu amigo saiba, nem desconfie, senão depois de tudo acabado. Assim não haverá mais impedimento à felicidade dele...
A voz da bela senhora afogou-se na reticência de uma lágrima.
— E à sua! disse afinal com emoção. O senhor poderá casar-se com aquela a quem ama, Luísa, não é o nome?...
O primeiro assomo de Fábio foi a negativa; mas à sua alma, nobre no meio da volubilidade e extravagância da mocidade folgazã, repugnou essa apostasia de sua primeira afeição.
— Eu amo Luisinha, confesso; mas também a amo, D. Guilhermina, e com paixão!
— Essa paixão é impossível.
— Porque a senhora a despreza.
— Eu devo-lhe as únicas alegrias de minha vida, condenada a um triste desencanto. Deixe-me guardar estas recordações doces e puras dos dias passados; não devemos envenená-las com um crime que faria a infelicidade de duas pessoas e a nossa.
Fábio travara da mão da senhora e a beijava. D. Guilhermina retirando-a enternecida, chamou a amiga para romper o a sós que a estava comovendo:
— Guida!...
— Cruel!...
— Ainda não satisfez o meu pedido sobre a dívida de seu amigo.
— Oh! isso é fácil. O pai de Ricardo deixou a chácara hipotecada na casa bancária de Gavião Peixoto pela quantia de dez ou doze contos de réis; mas com os juros já monta a dívida a vinte. Desembaraçada a casa, podia D. Benvinda viver com a família modestamente, sem pesar sobre o filho.
— O senhor me há de dar por escrito uma lembrança de tudo isto, com os nomes...
— Para quê? tornou o moço com escrúpulo.
— Já lhe disse.
— Para apressar o casamento de Ricardo com Bela?... Mas é inútil.
— Deveras? perguntou D. Guilhermina lançando um olhar para Guida que se aproximava.
— Foi uma surpresa! Ontem, quando menos esperava, recebeu Ricardo uma carta de São Paulo. Abriu; era de Bela, que lhe participava seu casamento com o Lemos, outro primo.
Ouviu Guida essa notícia, ao aproximar-se; e vacilou com a emoção que abalou o seu talhe esbelto. Felizmente passava naquele momento por uma estátua de bronze representando Flora, cujo pedestal lhe serviu de apoio e também de refúgio para esconder a alteração do gesto, pois Fábio colocado do lado oposto não podia perceber-lhe o vulto.
Notando o soçobro da amiga, a arfagem violenta do seio, que se expandira com o ímpeto d'alma, e a contração do rosto ao esforço da vontade a reprimir o grito que rompia do seio, D. Guilhermina voltou-se para o outro lado, o que obrigava o moço a imitá-la, desviando assim os olhos da estátua.
— O que dizia a carta? perguntou a mulher do Barros.
— Não devia ter dado a notícia, disse Fábio arrependido; mas como sempre se havia de saber...
— Decerto. Que mal faz?
— Quanto à carta, não posso. Ricardo não me perdoaria.
— Essa é a confiança que lhe mereço? disse D. Guilhermina queixosa.
— Se fosse meu, não hesitaria. Mas este segredo não me pertence.
— E pertencia-me a mim a afeição que lhe dei?
— Direi, com uma condição.
— Por negócio, dispenso.
E a moça deu ao talhe uma lânguida inflexão que era o irresistível condão de sua beleza.
— Pois bem, à senhora eu conto, disse o moço correndo o olhar em torno.
Guida, já sobre si, tivera o cuidado de colher a cauda do vestido e ocultar-se por detrás do pedestal de bronze, de modo que Fábio não se apercebeu de sua presença.
— Pode falar, disse D. Guilhermina. Ninguém nos ouve.
— A carta era muito curta. Bela dizia a Ricardo que, não podendo fazer sua felicidade, cedia aos desejos do pai aceitando o esposo que ele tinha escolhido.
— E o Ricardo, como recebeu a notícia?
— Tem sentido muito. Ele amava sinceramente a prima; era uma afeição de infância.
— Mas há de consolar-se.
— Que remédio!
— Os homens esquecem depressa!
— As injustiças que lhes fazem aquelas a quem adoram.
— Há de ver que daqui a um mês o Ricardo amará outra.
— Duvido, disse Fábio. Eu o conheço; é dessas almas concentradas, onde tudo, afeição, ideia, lembrança, cria raiz funda. É preciso tempo!
— Veremos!
Deixara D. Guilhermina cair essa palavra do lado da estátua, afastando-se para deixar a Guida retirar-se sem que a percebesse Fábio. Aproveitou a moça o momento, e deu uma volta para encontrar-se mais longe com os dois.
Ao tomar pela alameda que prolonga-se com o gradil, viu uma pessoa que entrava o portão e que dirigindo-se à escada de mármore, parou de repente em meio caminho.
Reconheceu Ricardo, e notou sua perturbação; no gesto e olhar traía-se a perplexidade do espírito. Após breve luta, voltou ele sobre os passos; e saindo novamente o portão, afastou-se apressado para o lado de São Clemente.
Teve Guida ímpetos de chamá-lo; mas faltou-lhe o ânimo. Já não possuía a sua antiga isenção.
Chegaram D. Guilhermina com Fábio:
— Sabe quem passou por aqui? disse Guida com uma voz que apesar do esforço tremia: seu amigo.
— Ricardo?
Acenou Guida que sim, fitando um olhar fagueiro em D. Guilhermina.
— Por que não vai chamá-lo? disse a mulher do conselheiro a Fábio. Se ele soubesse que o senhor estava aqui, com certeza entrava.
— Maçado como anda?
— É bom que se distraia, disse a senhora, e voltou-se para Guida:
— O Dr. Nunes teve um desgosto.
— Ah!
— Mas não quer que se saiba, acudiu Fábio.
— Esteja descansado, que ninguém vai tocar-lhe nisso. Não se demore.
— De que lado tomou?
— Seguiu para São Clemente, respondeu Guida.
Fábio saiu naquela direção. A pequena distância encontrou o amigo, que naturalmente já vinha de volta, pois não tardou que as duas moças, através da folhagem, os avistassem a ambos, passando em frente ao gradil.
Em um irresistível assomo de júbilo, Guida abraçou a D. Guilhermina, que retribuiu-lhe afetuosamente a carícia, murmurando:
— Você pode ser feliz!
Sentiu Guida o egoísmo de sua alegria, e apagou com um beijo o sorriso triste que abrira nos lábios da amiga.