Sonhos D'ouro/III
A pouca distância, Fábio tendo apressado a marcha do animal, ouviu uma voz sua conhecida que recordava à surdina um tema da Norma.
— Ainda estás por cá, Ricardo? disse ele. Parece que não te lembras do almoço?
Ricardo, que estava embrulhando os lápis e fechando o álbum para ir-se, ergueu a cabeça surpreso.
— Oh! E o piquenique?
— Ora! Não me fales! Os tais sujeitos fiaram-se uns nos outros, e afinal querendo ser muito espertos ficaram todos logrados, e me lograram a mim. Apenas percebi a cousa, mosquei-me a toda pressa para não perder o magro cafezinho da tia.
— E vieste num galope desesperado? disse Ricardo passando a mão pelos peitos do cavalo, umedecidos de suor, assim como o ventre.
— Qual? Isso é calor: o sol está muito quente e o Galgo é tão fogoso! Sua por nada.
— Eu creio que tu ainda és mais fogoso que ele, Fábio! disse Ricardo ganhando o caminho na direção em que viera.
Fábio apeou-se, e atirando as rédeas ao pescoço do Galgo, seguiu ao lado do amigo.
— Viste quem passou aqui?
— Uma moça? disse Ricardo sorrindo.
— Conheceste?
— Não.
— É a Guida!... A filha do Soares.
— Soares... Um ricaço?
— Um milionário, um bezerro de ouro, uma espécie de Midas, que tem o dom de transformar tudo em dinheiro.
— Começando pela própria consciência? observou Ricardo.
— Ah! Ele era capaz de vender-se aproveitando a alta, para comprar-se depois na baixa, ganhando alguns contos de réis na operação.
— Já vejo que é uma grande cabeça em finanças. É pena que não se aplicasse à política; seria o criador de uma situação!
— Mas vem cá, Ricardo. No fim de contas hás de confessar que isso de consciência é traste de pobre. Eu a comparo a uma mala de couro, ou uma canastra de pau. Numa casa rica seria sumamente ridículo!...
— Queres então dizer...
— Entendo que ninguém pode enriquecer, deixando-se levar pelos conselhos da tal velha rabugenta, que se agasta com a menor cousa e de tudo se aflige.
— Pois eu penso ao contrário que a consciência é indispensável à riqueza, justamente para contê-la e coibir os seus excessos. A pobreza tem para reprimir-se a própria fraqueza; mas a opulência, servida pela justiça e até cortejada pela lei, carece de um freio, a fim de não precipitar-se: esse freio é a consciência; não há outro.
— Bela teoria!... A moral prática é muito diferente!
— Não decores com este nome a tolerância do abuso e a transação cômoda que muita gente faz entre o seu interesse e o seu dever. A moral prática não pode ser outra cousa, senão a virtude nos atos da vida. Seriamente, me entristeço, Fábio, quando te vejo defender o que no fundo de tua alma reprovas, estou bem certo!
— Foi um gracejo!
— O ouro é a pedra de toque da consciência; o prumo que lhe sonda a profundidade. Creio que sou um homem honesto; mas não tenho a certeza disso, porque ainda não me vi à prova, entre os escrúpulos da probidade e os lucros certos de uma ação menos digna.
— Pois eu confio mais em ti, do que tu mesmo. Se por acaso o tal milionário, o Soares, te oferecesse vinte contos de réis para comprometeres a causa de alguns dos teus quatro clientes de meia-cara, estou convencido que o repelirias com indignação!
— Também creio, replicou Ricardo sorrindo. Entretanto tu sabes o que vale esta soma para mim, para nós, Fábio.
— É verdade! Quando eu me lembro que para sermos felizes bastava-nos o que esse Midas ganha enquanto dorme a sesta!
— Exageras também!
— Dizem que ele tem um rendimento anual de mais de duzentos contos, o que dá vinte e cinco mil-réis por hora. Ora ele costuma dormir duas horas, e três quando janta feijoada; portanto aí tens, cinquenta mil-réis, o que não ganharás, meu Ricardo, nem quando fores ministro e senador.
— Estás bem servido!
— Hás de ser! Mas vê o que é este mundo. Viste o cavalo do Cabo em que ia a Guida, um lindo isabel?
— É um bonito animal.
— Pois enquanto nós, dois cidadãos brasileiros, duas esperanças da pátria, vamos almoçar o magro café com pão, o tal fidalgo antes de sair a passeio já saboreou um pau de chocolate fino.
— Chocolate? Ora, Fábio!
— Não é brincadeira; chocolate marquis! Ah! tu não conheces a Guidinha. Um dia o tal cavalo do Cabo, que é delicado como um rapazinho da moda, constipou-se aqui na Tijuca, numa manhã de chuva, e sobreveio-lhe uma tosse. A menina entendeu que o seu querido isabel estava sofrendo do peito, e que portanto devia tomar chocolate todas as manhãs.
— É luxo que o nosso Galgo não lhe inveja.
— Sim; mas o teu Galgo chegando à casa, se quiser enxugar o corpo, há de rolar-se no chão; não tem como o fidalgo a seu serviço um criado, melhor pago do que dois advogados do nosso conhecimento. Esse criado, depois de enxugar-lhe o corpo com uma toalha de riço, veste-lhe uma camisa de brim de linho, mais fino do que o de minha calça. Isto quando o isabel não transpira; porque nesse caso vem uma garrafa de vinho para esfregar-lhe o pelo; vinho generoso, como nós só bebemos uma vez por outra, nalgum banquete.
— Admira-me que andes ao fato de tudo isto!
— Compreendes! Moça bonita e rica!...
— É uma celebridade, como a Lagrange ou a Ristori; pertence ao público, que tem o direito de saber as particularidades de sua vida.
— Justamente; são os próprios amigos da casa que referem estas cousas como prova da graça e espírito da moça. Queres saber uma que me contaram há poucos dias?
— Dás tanta importância a esses caprichos?
— Rio-me; e acho uma fortuna quando os ricos nos divertem, e não nos afligem como tantas vezes sucede. Mas ouve, que é engraçado.
— Conta.
— Foi com o doutor... Um dos primeiros médicos da corte... Esquece-me agora o nome... o doutor...
— Não importa.
— Pois bem. Uma noite, seriam duas horas da madrugada, chovia a cântaros, quando batem-lhe à porta. Era um chamado a toda a pressa para a casa do Soares; a carta era instante; o carro estava à espera. O velho doutor consultou todas as juntas do corpo para ver se não tinha algum travo de reumatismo, que o desculpasse com o capitalista e a consciência. Achando-se perfeitamente lépido, não teve remédio senão erguer-se e partir.
— Fez sua obrigação.
— Sem dúvida. Chegando o doutor foi recebido pela Guida...
— A filha?
— Sim; a qual muito aflita comunicou-lhe que o incomodara àquela hora da noite para ver Sofia, que estava muito mal, a decidir, de uma moléstia de coração. O doutor conhecia melhor o dinheiro do que a família do capitalista; não sabia pois de quem se tratava; pensou porém que devia ser uma pessoa importante da casa. Acompanhou a moça a uma alcova frouxamente iluminada por uma lamparina, onde havia um leito envolvido em alvos cortinados de filó. O doente parecia uma criança; estendendo a mão para tomar-lhe o pulso, sentiu o médico um pelo macio; aproximou a vela e então distinguiu perfeitamente uma cachorrinha, deitada em travesseiros de cetim e coberta com uma colcha de damasco.
— Será exato isto?
— Asseguro-te que é. Faze ideia do como ficou o doutor, arrancado à sua casa à uma hora da noite, e rebaixado do seu pedestal de médico do que há de mais ilustre e elevado na corte, a médico de cão. Se a graça fosse de qualquer outra pessoa, ele decerto não a suportaria; mas era de uma moça bonita. O velho assentou que o melhor meio de sair-se do caso era levá-lo em tom de galhofa... “Ah! É sua maninha?” disse ele. Examinou com uma gravidade cômica o doente, pediu papel e receitou neste gosto: “Récipe: Uso interno: Maçada — 2 oit. Capricho de criança — 1 onça. Misture e faça infusão para tomar às colheres de hora em hora. Uso externo: Gargalhada — 3 oitavas. Paciência — 1 libra. Faça uma fomentação. Para a Sr.a D. Sofia Soares. Dr. F.” Entregou a receita à menina, e assegurou-lhe que D. Sofia se restabeleceria brevemente.
— Era pachorrento o doutor.
— Que havia ele de fazer; dar o cavaco? Mas escuta o resto. É um romance. A Guida mandou a receita à botica da casa. Podes bem avaliar do como ficaria embaraçado o boticário para aviá-la: nunca na sua vida tinha manipulado semelhantes drogas. Mas a menina fez-lhe saber muito positivamente, que se não mandasse os remédios receitados pelo médico perderia a freguesia. Nestes apertos passou-lhe o doutor pela porta; contou-lhe o que sucedia; o velho desatou a rir. “Olhe; maçada, é qualquer amargo. Capricho de menina, umas cócegas, como as que produz o súlfur. Gargalhada, um pouco de muriato no pelo da cachorrinha, e verá que boas risadas ela dá. Paciência, isso é um emoliente, farinha de linhaça.” O boticário aproveitou a lembrança e aviou a receita. Se a Sofia tomou o remédio não sei; mas ficou boa.
— Então é mais provável que não tomasse.
— Estou por isso. Tempos depois aparecendo o doutor em sua casa, a Guida exigiu a conta da visita feita à Sofia. O velho, julgando-se autorizado pelos sessenta anos e pelo gracejo da menina, disse-lhe que o preço era um beijo. Nesse momento chegava à porta a mestra, uma inglesa gorducha e míope.
— Naturalmente uma que vi passar...
— É a tal. A Guida corre a ela; inventa de repente uma história da chegada imprevista do marido, uma alegre surpresa; e acaba mostrando-lhe o vulto do doutor, que não entendia a conversa por ser em inglês. A mestra precipita-se como uma bala de canhão, agarra-se ao pescoço do velho, e cobre-o de uma chuva de beijos sonoros e cheios, verdadeiros beijos de lei, pesando 24 quilates cada um.
— E o doutor?
— Quando se pôde desvencilhar dos braços e da boca da gorducha, viu a Guida que ria de sua triste figura: “Está vendo, doutor, como eu pago generosamente as minhas dívidas. O senhor pedia um beijo, e leva algumas dúzias deles.” O velho limpava a cara, enquanto a inglesa esfregava os beiços como se lhes quisesse tirar a pele. Não achas engraçada a anedota, Ricardo?
— Acho que essa moça tem pouco juízo.
— Juízo tem ela: mas é juízo de moça rica, muito diferente do juízo de moça pobre. O velho Soares é uma máquina de fazer dinheiro; vive no escritório. A mulher, esta suporta a sua opulência como um cativeiro. Os outros filhos ainda estão no colégio. Quem há de usar daquela riqueza e da posição que ela dá senão a Guida?
— Podia usar de uma maneira mais séria e mais útil.
— Não seria então uma criança de dezesseis anos?
— Mas é justamente por não ser uma criança que eu a censuro. A travessura aos dezesseis anos é inocente; não tem a malícia das comédias de mau gosto representadas por essa moça.
Fábio voltara-se cuidando ouvir um rumor. Os dois amigos conversando ao lado um do outro tinham deixado a estrada e tomado um atalho que descia pela encosta da montanha.
— No fim de contas, assim deve ser, acrescentou Ricardo. Ela é muito bonita e muito rica; deve ter algum defeito; são os espinhos da rosa, como diria um poeta, ou o azinhavre do ouro, como dirá naturalmente o marido que lhe desfrutar o dote.
Conversavam os dois amigos de coração aberto, em voz clara, como quem não se receia de ouvir o eco de seu pensamento; não se lembrando que as folhas das árvores têm olhos, e as brisas ouvidos sutis.
Expiravam as últimas palavras quando soaram distintamente no chão batido do caminho, que lhes ficava sobranceiro, passos de animal. Erguendo os olhos viram a linda amazona que passava lentamente de volta de seu passeio.
Não abaixou a cabeça nem voltou o rosto; mas um olhar cintilou sob o véu espesso, como a luz de um relâmpago, e caiu sobre os dois moços, apagando-se logo.
— Terá ouvido? perguntou Fábio rindo.
— É provável! disse Ricardo com indiferença.
— Nesse caso estamos comprometidos.
— Por que razão?
— Tinha uma ideia. O Soares está passando o verão aqui na Tijuca. Sabes, assim no campo, tomam-se relações com muita facilidade. Queria ver se nos apresentavam na casa.
— Que lembrança! Havíamos de fazer uma bonita figura no meio dessa gente que arrota ouro, nós dois pobretões!
— Talvez a riqueza pegue como a lepra!
— Pega; quando se tem mau sangue.
— Mas, fora de graça: é preciso fazermos relações, adquirir amigos, do contrário nada alcançaremos.
— Não digo o contrário.
Continuando a conversa, chegaram os dois moços a um pequeno vale escondido entre duas pontas da montanha. Um escasso ribeiro descia em cascata rumorejando por entre as pedras, e serpejava à sombra das bananeiras.
No meio do vale havia uma pequena casa cercada por algumas fruteiras.