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Sonhos D'ouro/XVIII

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Quando supôs que o farrancho devia ir longe, Ricardo montou no Galgo e seguiu a passo.

— Decididamente esta sociedade não me convém, e eu estou fazendo aqui uma triste figura: a figura de um estafermo num baile de máscaras, ou de um enfermo em dieta à mesa do banquete. Há certas loucuras e vícios da sociedade, em que o homem deve tornar-se cúmplice, sob pena de passar por grosseiro ou imbecil. A mim nem ao menos resta a consolação do dilema; na opinião desta gente já tenho direito incontestável à dupla qualificação. Imbecil, porque me falta o jeito para explorar as boas relações com um milionário; grosseiro, porque não aplaudo à esperteza de uns, ao descaro de outros, e finalmente aos caprichos de uma menina presunçosa e mal-educada.

Desatando indiferente estes pensamentos à brisa, com os frocos da fumaça de seu charuto, feriu-lhe o espírito uma recordação amarga:

— Pobre Luísa!... Não me quiseste crer, quando te mostrei o caráter de Fábio, como ele é, homem do dia ou antes do momento, sem elos no passado, nem cuidados no futuro. Esses homens são na sociedade a imagem das plantas aquáticas, vivendo à flor d'água, sem raízes na terra, nem ramas no ar, ervas sempre, como são meninos sempre aqueles homens. Cobrem-nas lindas flores, uma folhagem sempre viçosa; mas não há aí tronco, nem âmago. Bem me compreendeste, e tua alma te disse que eu tinha razão! Mas tu já o amavas.

Afundou-se ainda mais em suas reflexões:

— E agora? Agora que se atira à sociedade, faminto dos prazeres e divertimentos que tanto cobiçou, quererá ele, ou poderá, nunca mais voltar ao amor obscuro, suave e calmo da família?...

No meio de suas cogitações foi Ricardo surpreendido pelo galope de um cavalo que lhe vinha no encalço, e não tivera o tempo de voltar-se quando Edgard flanqueou o Galgo.

— Não me esperava, aposto! disse Guida com um gesto garrido.

Perturbado com o gracejo da moça depois do que entre eles houvera, e sobretudo com aquele a sós em um caminho deserto, não soube Ricardo que responder.

— Errou o caminho? perguntou ao cabo de alguns instantes.

— Não! Quis ficar atrás; e escondi-me.

Era a verdade. Reparando na demora de Ricardo, suspeitou da intenção do paulista, que ela sabia quanto era desconfiado. Sentindo-se culpada, e ré de seus assomos altivos, assentou de apagar aquele ressentimento.

Pronta em suas resoluções, lançou o cavalo a todo o galope, e desaparecendo à vista dos companheiros, ganhou sobre eles uma grande distância. Chegando ao ponto onde cruzava uma picada que vai ter ao Moke, apeou-se e escondeu-se no mato com Edgard.

Daí viu passar o rancho, e notando a ausência de Ricardo, esperou que este passasse, para alcançá-lo.

Os dois moços seguiam ao lado um do outro, mudos, e enleados daquele encontro. Afinal Guida, revestindo-se da sua gentil petulância, rompeu o silêncio:

— Eu sou uma estouvada! disse ela voltando-se para Ricardo com expressão adorável.

E como ele não respondia:

— Confesse! Não é esse o juízo que forma de mim?

— Nem tanto, replicou Ricardo no mesmo tom. Se dissesse caprichosa e travessa, eu não reclamaria.

— Entretanto minha avó me chama de “Santinha”.

— Talvez as santas sejam assim quando meninas.

— Que quer? Estou habituada a me fazerem todas as vontades!

— O que é bem perigoso.

— Como assim?

— A vontade?... É a fera mais indomável que eu conheço, bem entendido, para aqueles que a têm, porque não dou esse nome ao influxo que dirige certos indivíduos, como o vento impele o navio. A vontade é a soberania d’alma, a acentuação de sua superioridade moral; é o rei que temos em nós, e que pode tornar-se de repente um déspota, contra o qual não há nem o recurso da república. Nas senhoras, este autocrata chama-se capricho, como outrora em Roma lhe deram o nome de imperador, moda que pegou. O capricho é um tirano do gênero de Augusto. Ama o despotismo brilhante de luxo e galas, representado no tom da alta comédia, por bons atores, e com rica decoração! Ah! perdão que estou falando política!... exclamou o advogado interrompendo-se e a rir.

Ricardo aproveitara o primeiro tema, para quebrar com uma conversa banal, mais ou menos salpicada do sal e humor do espírito, o acanhamento da singular situação em que se achava, só com essa moça, em sítio ermo.

— Que tem? Eu gosto da política... para rir, bem entendido.

— É para o que ela serve.

— Mas quanto ao capricho, não concordo com sua opinião.

— É natural; as posições são tão diversas!

— Ou os gênios.

— E o que é o gênio senão o molde que a sociedade imprime n'alma desde o berço, pela educação primeiro, e depois pela opulência ou pobreza, pela grandeza ou humildade de condição?

— Então acredita que não é a natureza, porém o mundo, que nos faz o que somos? Creio que se engana. Há pessoas que vivem deslocadas na posição em que a fortuna as colocou, e a quem essa posição não pode transformar a alma que receberam de Deus.

— Exceções raras. As almas que resistem ao ambiente que as cerca, e não tomam a conformação do mundo onde se desenvolvem, mas conservam sempre sua feição original; essas almas são privilegiadas. Sua missão é reformar, rompendo as cadeias, que manietam as vocações. Quantas vezes porém não sucumbem? E o mundo nem se apercebe das vítimas desse eterno martirológio social.

— É verdade! disse Guida gravemente, curvando a fronte pensativa.

Com essa inflexão e o formoso semblante tocado de uma doce tinta de melancolia, continuou o caminho em silêncio, e como esquecida do companheiro.

A posição tornou-se de novo incômoda para Ricardo, que em vão excogitava um meio polido de romper esse encontro comprometedor para a moça.

Felizmente que veio tirá-lo daquele embaraço o gênio obsequiador de uma pessoa, a quem não prestamos ainda a devida consideração.

Surdindo de um desabe do talude onde se metera com o machinho para abrigar-se da soalheira, o Sr. Benício saiu ao encontro de Guida, com um respeitável chapéu de sol, empunhado à guisa de pendão de irmandade.

— Aqui está o guarda-sol, excelentíssima!

— Obrigada, Sr. Benício, respondeu Guida arrancada a suas reflexões com um ligeiro sobressalto.

— Mas o sol está tão quente!

— Basta-me o véu, respondeu a moça desdobrando o filó verde do chapéu.

— Faça favor, D. Guida?

— Não posso com o peso da sua barraca, Sr. Benício, disse Guida com um remoque.

— Por isso não, eu carrego, respondeu imperturbável o homem.

— Dispenso! acudiu a moça.

— Com licença! tornou o Benício metendo os calcanhares no machinho a fim de guardar a moça do sol.

— Ora deixe-me!

— A excelentíssima pode ficar doente.

— Não tenha susto!

— Então neste tempo em que há tanta febre por aí!...

Guida começou a solfejar o buona sera do Barbeiro de Sevilha.

— A Sr.a D. Paulina não há de gostar, quando souber o sol que a excelentíssima apanhou. A senhora já está tão afogueada!

— Decerto! replicou a moça.

— É o calor!...

— É o seu guarda-sol que me está irritando os nervos.

— A excelentíssima há de ver, se amanhã não está com sardas na pele. E será uma pena!

Colhendo as rédeas a Edgard, com gesto de impaciência, fez Guida uma evolução rápida, e fustigando a valer a anca do machinho em que montava o Sr. Benício, despachou-o a trote largo pela estrada fora.

Sacudido pelo chouto cadente, o homem agarrado ao arção da sela, voltou-se ainda para reiterar o oferecimento, que era escandido em uma espécie de soluço causado pelo vascolejo.

— A excel (uf)... lentíssima (uf)... faz mal (uf)... Aposto que (uf)... chegan' a (uf)... cas'a'stá com... (uf) dor de cab'ça...

E mais diria, se não desaparecesse na sinuosidade da estrada.

Era o Sr. Benício a encarnação de um tipo muito usual de nossa sociedade, o do “homem serviçal”, uma das encarnações do aresko de Teofrasto.

A maior satisfação desse homem era obsequiar; não pensava em outra cousa, não tinha outra ocupação. Tanta arte e perícia punha nesse mister, que o elevara à importância de uma profissão, embora ninguém a tenha exercido com o mesmo zelo e amor.

É certo que tinha um empreguito no tesouro, se não era nalguma secretaria de estado. Mas esse não passava de um pretexto para receber os magros vencimentos, e de um meio de exercer com maior proveito a sua vocação irresistível de obsequiar.

Aparecia às vezes na repartição para tratar do negocinho do seu amigo o Conselheiro A. ou de seu amigo Barão B.; e aproveitava o ensejo para assinar o ponto e pôr-se em dia com os atrasados. Esta regalia, o chefe não a permitiria a qualquer; e se o fizesse, havia de coçar-se com a mofina que sem falta os empregados teriam o cuidado de atiçar-lhe nos jornais.

Mas a um homem tão serviçal como o Sr. Benício, quem podia recusar essas liberdades; e quem teria ânimo de censurá-las?

Achava-se o amanuense em toda a parte, mas sobretudo onde havia pessoas a obsequiar; só em dois lugares era ele incerto, e até mesmo vasqueiro: na repartição e na casa de morada. Afora estas exceções, ficava-se tentado a crer que o homem tinha o dom da ubiquidade.

Trazia habitualmente uma grande sobrecasaca de pano azul-ferrete, que era menos uma peça de vestuário, do que um agregado de bolsos. Tinha quatro: dois nas abas e dois no peito, mas de tais dimensões que se tocavam, acolchoando todo o forro, com o chumaço de papéis, lenços, carteiras, fósforos e mil outros objetos de que andava sempre munido, para ter o sumo prazer de obsequiar.

Usava chapéu de copa baixa e abas largas. Esse traste característico tinha pregado por dentro uma folhinha-cartão, um horário da estrada de ferro, o mapa da partida dos correios, e os sinais do incêndio; tudo isto por baixo do forro volante de tafetá.

Ninguém o via, de dia ou à noite, a pé ou de carro, sem o enorme chapéu de sol verde-gaio a que dera Guida o próprio nome de barraca. A esse traste precioso, devia ele o inefável prazer de preservar dos ardores da canícula, ou da chuva repentina, o seu velho amigo Senador C. quando atravessava o campo, e o outro seu velho amigo o Desembargador D. ao sair da Relação.

Se ao sair ameaçava chuva, ou os calos lha tinham anunciado à noite, munia-se por precaução de um par de galochas de borracha, que sumia na profundeza de um dos quatro bolsos insondáveis. Achava sempre modos de aparecer a propósito para resguardar da lama os pés de alguns personagens desprecatados.

A essa previsão deveu ele a preciosa amizade do Monsenhor E.. Vendo-o um dia entrar no bonde com sapato fino e meia carmesim, acompanhou-o até Botafogo, e aí teve a satisfação de encaixar-lhe o par de galochas, com que a excelência patinhou no mingau do macadame, sem mácula das insígnias prelatícias.

Outros objetos constituíam o indispensável do Sr. Benício e sem os quais não saía de casa: eram os jornais do dia, uma provisão de lenços brancos e de rapé, um papel de palitos, caixas de fósforos, e um estojo de viagem no qual havia tesoura, canivete, alfinetes, preparos de costura, e até dois frasquinhos, um com arnica e outro com éter.

Perdemos de vista nestes últimos tempos ao digno Sr. Benício; mas apostamos que ele introduziu no seu necessário mais um frasquinho para a “hesperidina”.

Assim armado de ponto em branco, lançava-se o nosso homem na labutação do costume; por onde ele passava, não perdia ocasião de obsequiar: era médico, modista, agente, recadista, alfaiate, folhinha, gazeta, almanaque, guarda-roupa, estojo, paliteiro e tudo enfim que fosse preciso, contanto que desse largas a seu gênio serviçal.

Entre duas e três horas, Benício era infalível na Rua do Ouvidor. Se a família de seu íntimo amigo o General F. queria avisar a este do lugar onde o estava esperando; se o seu ilustre amigo o Conde G. ao chegar ao Largo de São Francisco de Paula não encontrava o carro e precisava que o fossem chamar; se a sua respeitabilíssima amiga a Baronesa H., que andava às voltas com encomendas, procurava alguma casa de pechincha; se finalmente o seu bom amigo o Camarista I., ou o Almirante K. ou o Marquês L. queriam perder-se em certas ruas abstrusas e enganar-se de porta: aí estava rente o incomparável Benício; era ele o homem da situação.

Em um ápice dava ele com o general em certa barraca de campanha, que este gostava de contemplar, lá para as bandas do Mercado, efeitos da nostalgia guerreira; farejava o lacaio do conde na barraca do Largo da Sé onde o brejeiro jogava o pacau por conta do senhor; conduzia a matrona a uma casa misteriosa, onde ia todo o mundo grande, mas ninguém confessava; e por último tais voltas dava com o camarista, o almirante e o marquês, que eles perdiam-se por detrás de umas rótulas...

O Benício tinha não só um, como diversos abecedários de amigos; mas entre esses escolhia uma dúzia, que eram os do peito. Havia neste último número suas disponibilidades necessárias, como outrora no conselho de estado. Assim era de rigor que aí estivesse o presidente do conselho certo e o provável, para o que ninguém tinha melhor faro do que o nosso amanuense; e isso provinha da sua privança com um particular de São Cristóvão, o filho, senão o mesmo, que tivera certa contestação com o D. França, o velho. Destas anedotas, já não se fazem hoje em dia.

Para estes amigos do peito era o Sr. Benício o Petrus in cunctis, o pau para toda a obra. Por isso lhe pagava o estado um conto e seiscentos como amanuense.

Tal era pelo menos a convicção em que estava o nosso homem.

Incorporando-se ao passeio, não tivera o Sr. Benício outro fim senão dar pasto ao gênio serviçal. A princípio a fogosa mula baia o impedira de aproveitar as ocasiões; mas para a volta tivera o cuidado de passar os arreios para o machinho cargueiro.