Sonhos D'ouro/XVII

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Devorou Ricardo em completa disparada o lanço do caminho, até a garganta onde sumira-se o Galgo levando a moça, talvez já de rasto.

Ao entrar no estreito passo, ainda pôde ele ver de relance o vulto de Guida que passava como uma sombra, por defronte do bambuzal. Ferrando de novo as esporas em Edgard admirado daquela aspereza, o mancebo, sem perder a calma de que tanto precisava, fez um último esforço para alcançar o Galgo, cortar-lhe a dianteira, e evitar a desgraça iminente.

Mas nenhuma esperança tinha de o conseguir; bem conhecia seu cavalo, e avaliando do isabel pela amostra, via que não era ele para bater o corredor paulista, em condições iguais, quanto mais com tal partido.

O espaço desaparecia; e Ricardo via aproximar-se com espantosa rapidez a rampa da montanha, donde o Galgo ia precipitar-se arrastando a infeliz moça.

Já não restava mais que dois trancos do galope, quando arrebatado pela mão destra da amazona, que o suspendeu no ar, o Galgo, rodando sobre os pés, com as mãos no ar e quase vertical, retrocedeu a disparada em que ia, e sofreado veio esbarrar-se contra Edgard, que seguia a vinte braças de distância.

Com tamanha rapidez fora executada esta evolução, que antes de Ricardo voltar a si da surpresa, assomou-lhe em frente o rosto mimoso de Guida, animada pelo ardor da corrida, como pela galhardia da sua proeza equestre.

— Não sou tão má cavaleira, como pensava! disse-lhe a moça desfolhando um riso fresco e argentino.

— Não acho a menor graça nisto! retorquiu o moço com um modo sério e displicente.

— Assustou-se?... Por uma pessoa indiferente!... Se fosse uma irmã ou alguém que lhe interessasse!

— Não é nada agradável sair-se a passeio, e ter-se de assistir a uma catástrofe. Se me houvesse convidado para uma representação equestre à borda de um precipício, eu por certo não me acharia aqui; e sobretudo não concorreria de alguma forma para estas brilhaturas.

— Quer dizer que não me emprestava o seu cavalo? Então pensa que eu precisava dele para atirar-me da ladeira abaixo, se me viesse à fantasia experimentar essa emoção? Está enganado. Para isso preferia Edgard, pois com sua fleuma britânica, só obrigado por mim ele se precipitaria, mas friamente, como um cavalo que se respeita; e não desastradamente, e às cegas, como o seu Galgo, que não tem maneiras.

— Em todo o caso, a senhora há de permitir que tire de mim a responsabilidade que tomei, sem a avaliar, disse Ricardo em tom firme, embora envolto em um modo cortês e polido.

— Pois não! Aí o tem, o seu mimoso! exclamou Guida saltando da sela, com extrema agilidade.

— Desculpe-me...

— Por quê? Por exigir o que lhe pertence? Estava em seu direito. No que não estava, e eu não lhe desculpo, é na ideia que fez de mim.

Dos lábios da moça desprendeu-se um riso sarcástico, prelúdio de sua palavra irônica:

— Pensa o senhor que tendo-o convidado para um passeio, era eu capaz de dar-me ao desfrute de correr um perigo qualquer, como por exemplo, o de atirar-me da montanha abaixo, para que o senhor, como um herói de romance, chegasse a tempo de salvar-me? Pois saiba que nada me aborrece tanto como esses romantismos, já tão vistos e corriqueiros. Além de que seria incômodo para nós ambos: o senhor teria de suportar todo o peso da minha gratidão; e eu de combater a cada instante os escrúpulos de sua modéstia e delicadeza. Imagine o agradável divertimento que teria cada um de nós, o senhor, esmagado pela minha riqueza e generosidade, eu, crivada pelos espinhos de sua dignidade. Ao cabo de um mês não nos poderíamos ver; e faríamos um do outro a mais triste ideia.

Ricardo ocupado em trocar os selins dos cavalos, ouvia impassível essa loquela. Reprimida a primeira contrariedade, conseguira dominar-se e estava resolvido a não interromper a moça; que melhor meio de apagar o fogo àquele despeito feminino?

Passeando de um para outro lado, Guida falava, abatendo com a chibata os largos rofos da saia de montar; na ida e vinda lançava a Ricardo um olhar impaciente por causa do silêncio com que ele a escutava.

— Não sabe o conceito que havíamos de fazer um do outro?

— Não, senhora.

— Eu lhe digo; mas permita que nos substitua por outros quaisquer para haver mais franqueza. O herói do romance teria a heroína na conta de uma criatura sem alma, nem coração; espécie de mulher de ouro, para quem o sentimento é cálculo, e que só conhece uma linguagem, a moeda. A heroína consideraria o salvador como um presunçoso, que aproveitara-se de um mero acaso para se guindar ao pedestal de herói, e humilhar os outros com o seu desdém. Pensa que exagero?

— Ao contrário, acudiu Ricardo firme no seu propósito de não chocar o melindre da moça.

— Já se vê que fez uma ideia muito errada a meu respeito. Não tenho queda para romântica, nem jeito para representar de musa suplementar, e como Safo atirar-me do rochedo abaixo, a pé ou a cavalo. Sou filha de banqueiro, e deram-me educação inglesa. Devo ter pois o espírito positivo, e saber o valor do tempo, o que quer dizer, da vida. Para mim não há homem neste mundo que valha um suspiro, quanto mais um suicídio!

Nesse momento chegava o rancho dos cavaleiros, cujo primeiro susto se desvanecera com esta observação, que, se tivesse acontecido alguma desgraça, Ricardo houvera gritado por socorro.

O Benício correu direito ao paulista, ocupado em mudar os arreios, e atirou-se ao chão como uma bala:

— Sucedeu alguma cousa?... Tenho aqui meu estojo! Se precisa furar... Olhe, aqui está! Quem sabe se a excelentíssima não se machucou. Eu tenho aqui arnica! É uma cousa que trago sempre comigo! Então!...

Vendo aproximarem-se os companheiros de passeio, Guida afastou-se deixando Ricardo às voltas com o Benício, e foi contemplar o esplêndido cenário que se desdobrava em face dela.

Além, na extrema, campindo os horizontes do soberbo painel, o oceano calmo e sereno que se vinha desdobrar até babujar com branca orla de espuma as praias de Copacabana e de Marambaia. Era a tela onde se estampava com vivo colorido, sobre o campo azul, a magnífica paisagem.

Um jardim encantado, como se desenha à imaginação, quando lemos aos vinte anos os contos das Mil e uma Noites; um sonho oriental debuxado em porcelana ou madrepérola; tal era o quadro deslumbrante que debuxavam aquelas encostas.

Lá, no mar, as ilhas que fingem ninhos de gaivotas, a se balouçarem ao reflexo das ondas. Na praia junto à Lagoa, as alamedas do Jardim Botânico, recortando em losangos os maciços da folhagem; e as palmeiras-imperiais meneando às brisas da manhã os seus verdes cocares.

Não vês junto ao sítio aprazível um enorme caramelo, servido sobre uma taça da mais pura safira, como a promessa dos regalos que a natureza americana oferece aos que visitam suas plagas?

É o Pão de Açúcar, no esforço a que o reduzem a distância e a eminência, donde o avistamos.

A nossos pés, o gigante de pedra, o prócero Corcovado, que ao nauta em demanda da barra antolha-se como o guarda desse jardim das Hespérides e daqui parece agachado, como um anão, à base da grande montanha que nos serve de pedestal.

O que porém dava a essa perspectiva um aspecto fascinador, era sobretudo a diáfana limpidez do ar, e uma plenitude da luz que estofava os objetos, cobrindo-os com uma espécie de áurea expansão. Não se podia chamar resplendor, porque não reverberava nem deslumbrava os olhos; era antes uma pubescência, doce e aveludada, onde se engolfavam os olhos com delícia.

Derramaram-se os passeantes pela borda da esplanada para melhor apreciar os vários pontos de perspectiva, e cruzaram-se as observações de toda a casta, e as réplicas ou risos que elas provocavam.

— É o reino das fadas, disse Fábio a D. Guilhermina, mostrando-lhe o admirável panorama. Está a senhora nos seus domínios.

— Se assim fosse, eu encantava-o já, respondeu a moça a sorrir.

— Em quê?

— Nesta flor! tornou mostrando-lhe uma violeta que prendeu ao seio.

A esse tempo dizia o Guimarães:

— Não sei o que acham demais neste lugar! Abalar-se a gente para ver morros trepados por cima doutros!

— Pretexto para o almoço, homem, disse o Bastos, a quem o passeio afiara o apetite; contanto que não se demore o farnel.

Era o nosso corretor desses homens cujo estômago professa a maior independência em relação ao coração e à cabeça: imagem de uma república bem organizada, com perfeito equilíbrio dos poderes.

Fairy!... Fairy! exclamava entretanto Mrs. Trowshy, estatelada diante daquela magnificência.

— Oh! Guimarães! gritou um dos elegantes da comitiva.

— Que é lá?

— Eras capaz de virar uma cambalhota daqui no Jardim?

— Abraçado contigo.

No seu entusiasmo travou a inglesa do braço do Benício, que estava engomando com a mão a calça amarrotada pelo burro.

Look, Sir, how beautiful!

— É Botafogo, sim, senhora! respondeu o homem sem desconcertar-se.

À parte, o visconde parecia enlevado ante a cena maravilhosa; tal concentração de espírito mostrava sua atitude contemplativa.

— Está admirando, sr. visconde? perguntou-lhe Guida.

— Estava parafusando uma cousa.

— Não se pode saber? insistiu a moça com malícia.

— O terreno que Deus esperdiçou para fazer mar!

Guida voltou-se com um sorriso para Ricardo que escutara o diálogo:

— É dos meus!

Chegaram à Mesa os copeiros com os petrechos do almoço, que formavam a carga de um burro. O Bastos e o Benício foram dos primeiros a avistar o farnel e deram as alvíssaras aos mais.

Dirigiram-se então os convidados ao bambuzal, onde os esperava um lauto almoço.

O Visconde da Aljuba não perdeu seu tempo. Enquanto devorava o improvisado almoço, ia resmoendo os seus cálculos. Anexara-se à passeata, com surpresa de todos, unicamente para julgar por si da posição do Ricardo em relação a Guida.

Os rapazes, que não podiam nem remotamente perscrutar a intenção do refinado usurário, cuidaram que estava apaixonado por Mrs. Trowshy, e pretendia disputá-la ao Sr. Benício, o cavaleiro servente da inglesa.

O velho deixava-os rir à sua vontade, e ia lançando na memória, como em um borrador, as observações que depois contava tirar a limpo.

Assim não lhe escapou o afastamento que de repente, depois da disparada, havia entre Ricardo e a moça.

— Arrufos! dizia consigo o visconde polvilhando de pimenta-do-reino os camarões. Isto arde, mas abre o apetite!

E ria-se por dentro da pachouchada.

Depois do almoço, cada um quis deixar nos bambus uma lembrança do passeio. Escreveram uns o nome e a data; outros a simples inicial; D. Guilhermina foi desse número, e Fábio cercou o dístico de um traço fingindo um coração espetado em um F.

Durante esse tempo o Sr. Benício, depois de ter fornecido à direita e à esquerda canivetes e tesouras para os dísticos, à sorrelfa tirava os arreios da baia e passava-os para o machinho da carga, sem que os copeiros, ocupados a devastar as ruínas do almoço, dessem pela barganha.

Ricardo gravou o nome de Luísa, sua irmã, talvez na esperança de pungir com aquela recordação a alma de Fábio; mas este nem se apercebia de sua presença ali, tão enlevado o tinham os olhos da mulher do Barros.

O visconde, armando-se de um garfo, marcou um bambu com um enorme cifrão; o que inspirou a Guida um enigma pitoresco. Com um grampo desenhou a moça na casca verde da taquara um cifrão dando braço a um xis rechonchudo, o que todos aplaudiram com risadas descobrindo a alusão aos requebros da inglesa com o usurário.

Às onze horas montaram a cavalo para a volta. Ricardo, a pretexto de arranjar os arreios do Galgo, deixou-se ficar, resolvido a separar-se da companhia, tomando pelo caminho de baixo.