Sonhos D'ouro/XVI
Próximo à crista da montanha, onde o caminho talhando-lhe o cimo, começa a descambar para a vertente, deu-se um pequeno acidente que só notaram três pessoas, além daquelas entre quem se passou.
— Pode fechar! disse D. Guilhermina para Fábio indicando-lhe com o olhar o chapéu de sol. O senhor deve estar cansado!
— Por tão pouco? Não me prive deste prazer.
— Deveras? Acha que é um prazer trazer um chapéu de sol aberto? perguntou a moça com remoque.
— Para abrigá-la do sol?... Decerto que o é!
— Neste caso deixe-me também experimentar. Faça-me o favor de passar o meu!
Fábio quis desobedecer e retorquiu; mas, insistindo a senhora, deu-lhe o chapelinho de cetim verde e contentou-se com apertar-lhe a ponta dos dedos, que não fugiram a tempo de escaparem à cilada.
D. Guilhermina tinha casualmente, por duas ou três vezes, encontrado o olhar perscrutador de Ricardo; e sentindo-se alvo da atenção do moço, também teve de seu lado curiosidade de observá-lo.
O chapéu de sol de Fábio interceptava-lhe o olhar; afastou-o pois, e adiantou o cavalo de modo a não perder os movimentos do moço, sem deixar contudo que ele o percebesse.
D. Guilhermina era bonita, e tinha consciência de sua formosura, que estava então no esplendor.
Teria vinte e oito anos; de desenvolvimento tardio, como uma dália a que faltasse por algum tempo o sol, essa idade que para outras começa a desfolha, para ela, depois de dez anos de casamento, era a mais brilhante floração.
A tez aveludada de seu colo; o fresco e delicioso encarnado das faces; olhos rasgados como duas favas de baunilha e afogados em cristal de leite; a boca, talvez grande, mas primor de graça, cheia de seduções irresistíveis; e as formas encantadoras do talhe modelado com a maior correção e harmonia; tudo nela estava respirando o viço dessa plenitude da mocidade que é o apogeu da mulher.
Como era natural, essa beleza, tão reputada nos salões, supôs-se o objeto de uma admiração ardente, e talvez mesmo já envolta em sentimento mais terno. Qualquer dúvida desapareceu no espírito da moça, apenas notou a expressão de desgosto que se derramava na fisionomia franca de Ricardo, ao surpreender um requebro ou ademane namorado de Fábio.
Desde então procurou o olhar de Ricardo e encontrando-o tentava retê-lo com um lânguido volver do seu. Uma vez demorando-se muito tempo em aspirar o perfume das violetas com os olhos fitos no mancebo, deixou depois cair a mão que segurava o ramo, e este escorregou ao chão.
O chapelinho de sol, faceiramente inclinado, ocultou esta mímica às acesas vistas de Fábio; e um relancear rápido e vivo indicou a Ricardo a queda do ramo de violetas.
O primeiro assomo do advogado foi ditado pela cortesia; as rédeas colhidas de pronto sofrearam a marcha do animal. Mas logo após retraindo, mostrou-se de todo alheio ao incidente; nem suspeitou sombra de provocação, onde só via mero acaso.
D. Guilhermina porém parara de repente procurando em si um objeto que lhe faltasse.
— O que é? perguntou Fábio solícito. Perdeu alguma cousa?
A resposta demorou-se um instante à espera que Ricardo se voltasse; mas este afastava-se.
— Meu ramo!
— Caiu sem dúvida; vou procurá-lo.
Fábio retrocedeu à cata do ramo; mas já o Benício o tinha apanhado, e para não machucá-lo, o trazia a pé, e puxando a mula.
— Faz favor! disse Fábio.
— Nada, meu senhor; quero entregá-lo à dona.
D. Guilhermina que esperava parada, o recebeu, mui contrariada.
— Pode seguir, Sr. Benício, disse Fábio que desejava aproveitar a ocasião de ficar só com a moça.
— Não se incomode! Talvez D. Guilhermina tenha outra vez necessidade de meus serviços.
A mulher do conselheiro percebendo a impaciência de Fábio e receando que ele tivesse algum desaguisado com o pachorrento Sr. Benício, pôs o cavalo a meio galope.
— Viva! disse o moço contentíssimo por livrar-se do sujeito.
Mas o homem, soltando o chouto à mula, aí estava rente com eles e os acompanhou até apanharem os outros.
A Guida não escapara a provocação de D. Guilhermina, e vendo Ricardo render-se no primeiro assomo, sorriu. Era a ocasião de subtrair-se à vigilância contínua que o dono do Galgo exercia sobre ela.
— Bravo, D. Guidinha!...
— Nem a rainha do ar.
Estas exclamações do Bastos e Guimarães festejavam as escaramuças com que a moça se divertia à beira do profundo despenhadeiro.
Voltando-se, viu Ricardo as curvetas do Galgo, e adiantou-se:
— Confesso-lhe que estou arrependido da troca! Pensei que a senhora não fosse tão...
— Tão estabanada!... Pode dizer!... acudiu a moça.
— Queria dizer imprudente, apenas.
— Muito obrigada! retorquiu com um sorriso de gentil motejo. Tenho eu culpa das estripulias de seu cavalo?
— Mas eu preveni-a do quanto é ele árdego! Não suporta certas birrazinhas que a senhora costuma fazer a Edgard! É um caipira, como eu.
— Está o senhor também querendo fazer o Galgo pior do que é! Não o acho tão feroz como o pinta o dono!
— Em todo o caso eu lhe peço, não o irrite!... disse Ricardo alisando a anca do animal para acalmá-lo.
— Eu estou bem quietinha, vê! disse a moça com as mãos cruzadas sobre o gancho do selim. Ainda quer mais? acrescentou atirando a Ricardo um sorriso cheio de malícia.
— Por que não chega mais para o meio? Vai muito na beira do barranco!
— Ah! também faz mal? Pode cair a ribanceira? Não é? Mas lá; se a montanha vier abaixo?
Ricardo não respondeu.
— Que diz?
— Zombe a seu gosto!... Divirta-se à minha custa, contanto que deixe o Galgo sossegado, tornou Ricardo gracejando.
— Está bom, não quero que tenha queixa de mim.
E inclinando as rédeas, fez o Galgo, já apaziguado, tomar o meio da estrada.
— Está satisfeito?
— Se continuar assim...
— O senhor está prevenido contra mim. Quem sabe se não me fizeram alguma intriga? Pois engana-se, tenho um gênio de água morna.
— Não supunha, acudiu Ricardo; mas depois do que tenho visto esta manhã, posso jurar!
— Não é verdade?... Estamos quase no fim do passeio e ainda não dei um galope!
— O galope não é das piores cousas.
— Ah!... Então o galope não faz mal?
— Conforme; num cavalo manso, o galope é agradável e não tem o menor risco; mas em um animal arisco, como o Galgo, não convém a uma senhora.
— É perigoso? perguntou Guida com um modo cândido.
— Pode tornar-se.
— Deveras!
— Se não acredita...
— Ao contrário, acudiu Guida.
— Uma tarde destas e neste mesmo caminho esteve a atirar-se com Fábio pela montanha abaixo.
— E como escapou?
— Esbarrando contra os bois de um carro que por felicidade estava atravessado na estrada.
— Hã!... O tal senhor Galgo faz dessas estripulias!... repetia Guida afagando o pescoço do animal com a mãozinha enluvada.
De repente um sibilo cortou os ares; e o Galgo se arremessou no espaço como um turbilhão, no meio do qual mal se distinguia o torvelim da saia de Guida, agitada pela corrida impetuosa.
Fora o chicotinho que, vibrado pela mão nervosa, fustigara cruelmente o brioso corcel; ao passo que a menina inclinando a cabeça desdenhosamente sobre a espádua, soltara estas palavras no momento de abandonar-se ao ímpeto do animal:
— Quero ver!...
Surpreso, Ricardo olhou um instante o vulto da moça que voava, soltando aos ecos da montanha o seu mote hípico:
— Hep!... hep!... hep!...
Cobrando-se logo do enleio causado pelo imprevisto arrojo, Ricardo largou rédeas a Edgard, que partiu à desfilada no encalço do Galgo, e sem dúvida o alcançaria, pois, contido pelo freio, já o curitibano moderava o primeiro ímpeto.
Mas Guida ouviu o estrupido; e voltando-se, conheceu que Ricardo a seguia e talvez a alcançasse. O chicotinho sibilou nos ares, semelhante a uma víbora que se enrosca; e o Galgo, alongando-se como uma flecha, devorou o espaço.
No meio daquele turbilhão, pareceu ao moço que o talhe esbelto da menina oscilava na sela, e buscou afirmar a vista, quando um grito de terror, que se escapara fremente dos lábios de Guida, cortou os ares.
Fincar esporas no isabel e dispará-lo como um tiro de canhão, foi para Ricardo um movimento maquinal, que ele executou antes de pensar.
Estendia-se por diante o lanço do caminho, que fazendo volta na extremidade corta o cabeço da montanha, e corre alguma distância entre dois taludes profundos para surdir já na outra encosta da serra, no ponto chamado Mesa.
Havia nesse lugar uma longa mesa, feita de paus toscos e ensombrada por espesso bambuzal. Talvez já o tempo a tenha consumido; há três anos ainda a vi, reparada dos primeiros estragos e já outra vez carcomida.
Quantos piqueniques não tem visto o nemoroso bosque dos bambus? Que segredos não guardam em hieróglifos e datas os verdes troncos das taquaras, que a fouce do trabalhador da estrada não cortou ainda para empalhar o rancho? Que banquetes dados sobre aquela rude estiva de varas, sem toalha nem serviços de prata, mas tão opíparos de contentamento e prazer?
Passando à direita do bambuzal, alonga-se o caminho pelo lançante da montanha, e ao cabo de algumas braças derrama-se por uma pequena esplanada, que serve como de rampa ao magnífico cenário.
Aí, à esquerda, no socalco do caminho, está a palhoça onde pousavam os colonos, que abriram o caminho do Jardim e deram nome ao sítio. Conhecido a princípio o lugar pela simples indicação de Rancho dos Chins, a imaginação popular enlevada pela brilhante perspectiva, de lembrança fantasiava alguma das pinturas diáfanas e aveludadas que vira debuxadas em papel de arroz: e daí o nome de Vista Chinesa.