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Tentação (Adolfo Caminha)/IV

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Quando, um belo dia, Evaristo chegou da rua, soube que os estrangeiros do segundo andar tinham-se mudado, sem dizer que espécie de gente eram, nem para onde iam.

— Com efeito! — exclamou, surpreendido. — Nem que se estivesse esperando a volta de D. Sebastião... Ah!... Eu já estava resolvido a alugar o palacete do Friburgo!

— Agora, sim, senhor — disse Luís, batendo no ombro do amigo e rindo para Adelaide — agora vão dormir folgadamente na sua cama de casal, vão se regalar!

— Queres dizer, então, que passávamos as noites de olho aberto, no nosso belo quartinho? Estás muito enganado. Nunca dormi tanto, e a Adelaide melhor um pouco.

— Não segue-se, porém, que deixem de almoçar e de jantar conosco...

— Em primeiro lugar, um exame nos aposentos; depois, trataremos do almoço e do jantar.

— Já andamos por lá — disse D. Branca espevitadamente. — Sabem o que encontramos?

— Algum menino pagão... — adiantou-se Furtado.

— Algum fac-símile de inscrições hebraicas para presente ao desembargador?

— Sério; vejam se podem adivinhar — insistiu a esposa do secretário.

Os dois homens puseram-se a pensar em qual teria sido o misterioso encontro das duas senhoras...

— Não sei — disse, por fim, o marido de Branca.

— Nem eu... — imitou Evaristo.

— Um irrigador de Ermarck, por sinal bem novinho.

— Que diabo quer isso dizer? — perguntou o bacharel com assombro.

Adelaide não se pôde conter e abriu numa risada sonora e gostosa, ocultando o rosto nas mãos. D. Branca, ante a ingênua pergunta de Evaristo, ria também para outro lado, enquanto o secretário justificava a ignorância do amigo dizendo que o aparelho de Ermarck ainda não era bastante conhecido no Brasil e que, por isso, o Holanda tinha toda a razão... E acrescentou com ironia:

— São muito maliciosas as mulheres!

Mas Evaristo não descruzava os braços, estatelado, vendo as duas senhoras rir.

— Então, é que já sabes o emprego do irrigador, Adelaide!

— Eu?

Novo acesso de riso sufocou a esposa do bacharel, como se lhe estivessem a fazer cócegas.

— Sabem que mais? — disse afinal Evaristo. — Os ingleses, que deixaram o irrigador é por que o irrigador não presta! Vamos ao que interessa.

Já Luís Furtado galgava o primeiro degrau da escada que ia ter no segundo andar. Evaristo, Adelaide e D. Branca o acompanharam, todos risonhos, a falar dos ingleses.

Eram trinta degraus estreitos, que subiam em curva, gemendo sob os pés, iluminados por uma grande clarabóia de vidro.

O andar superior compunha-se de uma sala de frente, alcova, corredor e dois quartos menores que a alcova, comunicando-se. Havia também um terraço com grades de ferro, onde se erguia uma espécie de quiosque para o water-closet.

O secretário começou a inspeção pela frente. As janelas estavam abertas, deixando ver a praia de Botafogo; a enseada, não muito longe, o Pão de Açúcar e os morros de Niterói dando um aspecto grandioso e selvagem à baía. À direita, erguido a prumo, o perfil negro do Corcovado atraía os olhos, em linha reta para o alto, como um dedo enorme de gigante apontando o azul sereno. A vista alcançava, depois, outras montanhas, e entre elas, o cemitério de São João Batista, salpicado de túmulos brancos, numa simetria pitoresca e lúgubre. Àquela hora, distinguia-se grupos de pessoas, grupos negros em marcha, sumindo-se e aparecendo entre os mausoléus.

À esquerda, telhados e hortas.

O secretário não gostava de olhar o cemitério: recordava-se tristemente da última vez em que lá fora enterrar a ilustre senhora, bela mulher, cujo nome o Rio de Janeiro todo conhecia... Não gostava, não gostava de olhar o cemitério...

D. Branca estava aflita por chegar aos fundos; queria surpreender o marido de Adelaide com o irrigador de Ermarck.

— Que achas? — perguntou Furtado ao amigo, relanceando os olhos no aposento.

— Bom... bom — murmurou o bacharel. — Vamos cá!

E dirigiu-se aos fundos da casa, inspecionando o teto e o papel do forro.

— Vocês aqui estão muito bem — tornou o secretário.

— Muito melhor que na Cidade Nova — acrescentou D. Branca.

— Ao menos estão em Botafogo.

O corredor ia sair na área, forrado em todo o comprimento, claro, fresco e iluminado pelos reflexos da clarabóia.

Percorreram tudo até o quiosqueziriho do terraço, que o bacharel comparou poeticamente a uma "casa da pombos".

— Agora venha ver, Sr. Evaristo, venha ver o que os ingleses deixaram — insistiu de novo D. Branca.

— Tolice de minha mulher, Evaristo!

— Não, não, tenha a bondade, Sr. Evaristo, tenha a bondade. Quero que o senhor veja...

A um canto do terraço, entre o quiosque e o gradil, estava uma espécie de cilindro cor de cobre novo, com uma das extremidades em forma de funil donde saía molemante, quebrando-se em curvas, um tubo estreito de borracha.

— Isso o que é? — perguntou, inclinando-se, o bacharel.

As duas senhoras abriram outra vez na risadaria, cabeceando, agarrando-se como duas colegiais.

— Branca! — advertiu Furtado. — Olha que o Evaristo não é menino de escola...

E segurando o amigo pelo braço o foi levando para dentro do corredor.

— Isso é uma das grandes invenções do século, meu amigo; veio com a descoberta do micróbio parasitário.

Falavam baixo, com hipocrisia de homens que se querem dar ao respeito. Mas D. Branca ouviu ainda um oh! de exclamação que o marido de Adelaide não pôde abafar.

Estava escurecendo. Já o sol mandava o seu último adeus à terça-feira com uns restos de claridade crepuscular.

Tanto o bacharel como a esposa acharam que se devia tratar logo da mudança, ou antes da instalação, porque Evaristo inda não comprara sequer a cama de casal. — Mudar o quê? Só se fosse uma rede que ele trouxera do norte, uma rede esplêndida, de labirinto, e os indiscretos baús de couro..

— Não te faças miserável! — ralhou Furtado. — Um homem não tem o direito de menosprezar-se. Um baú pode conter as minas de Salomão!

— O Evaristo vive a gracejar, Sr. Luís — disse Adelaide. — A mania dele é chamar-se pobre, lamentar-se, berrar contra quem tem dinheiro!... Isso até desanima.

— Mas, então, que querem vocês que eu diga? Que ando com os bolsos recheados? que tenho apólices no Tesouro? que deixei na província uma fazenda de gado? que trago os baús repletos de ouro e prata? Ora muito obrigado, minha mulher!

— Não estou dizendo isso...

Aquele — que querem vocês que eu diga? — referia-se exclusivamente ao marido de D. Branca e a Adelaide. Esta notou o carinhoso plural e como que sentiu no fundo d'alma um prazerzinho em se achar na companhia de homem tão educado e nobre. Aquele vocês, dirigido a ela e ao Sr. Luís, trouxe-lhe um pequeno abalo ao coração, qualquer coisa de intimamente agradável.

— D. Adelaide não está dizendo isso — repetiu Furtado. — O que ela está dizendo é que tens a mania da pobreza, a mania das lamentações...

D. Branca, por seu turno, observou que o marido tratava Adelaide com muita distinção, muita gentileza; mas atribuiu à natural bonomia do secretário.

Evaristo é que não observou coisíssima alguma; dissera vocês, porque achava familiar o tratamento e porque tratava o Luís por você e Adelaide por você, isoladamente. Não havia razão para, referindo-se aos dois, proceder doutro modo.

A mulher, porém, descobre manchas no sol em pleno meio-dia e é capaz de enxergar, com os olhos fechados, uma agulha num palheiro.

No outro dia, quando Evaristo voltou do Banco, encontrou o segundo andar mobiliado; cadeiras, mesas, uma estante para livros, bela cama de casal, guarda-roupa, cabides... o inferno!

Adelaide recebeu-o no primeiro andai, como de costume, risonha e feliz, mas estranhando que lhe não perguntasse coisa alguma, rompeu o silêncio:

— Que despesão fizeste!

— Despesão?..

— Sim; quanto custariam as cadeiras, a cama, o sofá.

Evaristo, em pé, no alto da escada, julgou que a mulher houvesse enlouquecido e olhava-a, sem compreender as palavras.

— Que cama? que sofá? que cadeiras?...

— Que mandaste da rua...

— Eu?!

— Está de muito bom gosto a cama, Sr. Evaristo — saltou D. Branca. — Felicito-o!

Cada vez o bacharel compreendia menos o que lhe estava entrando pelos ouvidos.

— De bom gosto?...

— Pois não foi o senhor quem escolheu a mobília?

— Eu não escolhi nada, pelo amor de Deus! — nem sei do que se trata...

— Quer nos debicar, Adelaide, quer fazer surpresa... — disse a mulher do secretário.

— Debicar!... surpresa!... Temos aqui almas doutro mundo?

Adelaide não quis acreditar numa brincadeira do marido, tal era a sizudez que ele imprimia às palavras naquela ocasião. Evaristo brincava, mas conhecia-se logo o seu tom de pilhéria.

— Deixem-me primeiro tomar fôlego, que eu estou me acabando! — exclamou, dirigindo-se à sala de jantar.

As duas senhoras o acompanharam, entreolhando-se.

O bacharel encostou a bengala, respirou com alívio e sentou-se.

— O Furtado inda não veio?

— 'Té agora, não — respondeu D. Branca.

— Então, que história é essa de cadeiras e camas e sofás? Expliquem-se!

Adelaide explicou o caso da mobília: às duas horas, mais ou menos, tinha vindo um galego trazendo, numa carrocinha, meia dúzia de cadeiras, um sofá, uma cama de casal, uma estante e outros objetos "para a casa do Sr. Evaristo de Holanda, em Botafogo". Não podia haver engano.

— Onde estão esses objetos?

— Lá em cima, tudo arrumado. A cama é que é um pouco larga...

Pois ele não mandara coisíssima alguma nem tampouco autorizara compra de móveis ao Furtado. Às duas horas tinha estado com o secretário no Banco e ele em tal coisa não falara. Salvo se o amigo inda uma vez queria ser generoso e bom apresentando seu nome a algum armazém de móveis... Podia muito bem ser isso... Mas, então, dir-lhe-ia francamente, prevenindo-o com antecedência, tomando mesmo uma nota dos objetos indispensáveis a um casal. O Furtado, porém, não o prevenira, não o avisara sequer! Donde tinham vindo esses móveis? de que armazém? de que rua?

— Você compreende que a minha obrigação era recebê-los — fez Adelaide numa voz humilde.

— Perfeitamente, ninguém diz o contrário.

— O Luís explicará tudo, Sr. Evaristo. Havemos de saber quem foi da idéia.

— Corramos um olhar nos tais móveis — disse o bacharel, erguendo-se.

O pavimento superior da casa já não tinha o mesmo aspecto desolado e vazio da véspera, com as suas paredes escorridas, com o seu ar glacial de eremitério. Não. A sala da frente impunha-se agora aos olhos, convidando à familiaridade, ao repouso honesto, à leitura de um bom livro. Meia dúzia de cadeiras austríacas, torneadas, o sofá, cadeiras de balanço, dois consolos, outra mesinha decorativa para o centro... Na alcova o leito, e o toucador com espelho de cristal e pedra-mármore. Num dos quartos, o guarda-roupa e os baús (os célebres baús de couro) e no outro a estante. Assim é que Adelaide dispusera os móveis, em acordo com D. Branca; unicamente para surpreender Evaristo. Depois comprar-se-ia cortinas e bibelôs. O soalho inda estava úmido da lavagem.

O bacharel cruzou os braços diante daquela transformação quase milagrosa.

— Isto não pode deixar de ser obra do Luís! — disse, risonho. Sim, estava quase convencido de que o Luís queria pregar-lhe uma peça. Quem, no Rio de Janeiro, se lembraria dele senão o secretário? Ninguém, absolutamente ninguém. Ele é que o tratava com um carinho de irmão.

— Você que acha?

— Penso a mesma coisa. Só o Sr. Furtado...

— No entanto, o Furtado não arredou pé do Banco!

— As almas é que não foram... — murmurou, sorrindo, Adelaide.

E enquanto o outro não chegava, discutiu-se a procedência dos móveis.

O secretário foi recebido com exclamações e altos brados de agradecimento e jovialidade.

— Está de muito bom gosto a cama! — repisou D. Branca. — Assim é que eu queria que você comprasse uma...

— E o guarda-roupa! — exclamou Evaristo.

— E a toilette! — fez Adelaide.

Mas o homem era como se estivesse numa casa de orates; fitava um, fitava outro, com ar interrogativo e surpreso.

— As senhoras estão enganadas... Mobília?...

— Quem havia de ser? — interpelou o bacharel, crendo e não crendo na estupefação do amigo.

— Não mo perguntes a mim, que também não posso atribuir o caso ao meu bodegueiro ou às almas do outro mundo.

— Ora, falemos sério, não foste tu, mas foi o teu grande coração! — resumiu Evaristo, desapontado.

— Juro-te!

— Não acredito.

— Melhor pra ti...

Ao final das contas, a dignidade do bacharel teve um ímpeto de orgulho contra "esse misterioso fornecedor gratuito de móveis", e declarou positivamente que ia mandar tudo para o depósito, as cadeiras, a cama, o sofá... tudo! Não aceitava favores de pessoas estranhas e, de mais a mais, ocultas num criminoso silêncio. Tudo para o depósito!

Uma gargalhada do secretário acolheu as últimas palavras de Evaristo, comunicando-se a D. Branca e a Adelaide, que ia abrindo a boca para lamentar "a sua linda cama de ramagens e o seu querido toucador de mármore...".

— Então, vais mandar tudo para o depósito!...

E Furtado novamente ria, batendo com as mãos na mesa, inclinando a cabeça, sapateando.

— Impagável o nosso Evaristo! Simplesmente impagável esse homem com a sua filosofia de algibeira e com os seus ímpetos!

— Não te rias, que estou falando sério!

— Por isso mesmo...

E Furtado confessou generosamente, aprumando-se na cadeira, que os móveis tinham sido comprados por ele. Não fizera mais do que um dever de amigo.. . Restava saber se o Evaristo opunha-se à qualidade sofrível do guarda-roupa...

— Qual opor-me! — disse o bacharel todo humilhado com a fineza do secretário. — Escolheste a dedo!

— Mas não para ser entregue ao depósito.

— Para o depósito vou eu mandar os baús de couro e umas velharias do meu tempo de província.

E não se tornou a falar nos móveis e a estima do bacharel pelo secretário aumentou. Evaristo não perdia ocasião de gabar o Furtado, exaltando-lhe o coração generoso, a grandeza d'alma e outras virtudes que ele pouco a pouco ia descobrindo no seu velho colega de Liceu... Um homem como se não encontravam muitos na terra do egoísmo e da hipocrisia, nesse Rio de Janeiro fundamentalmente pervertido, onde as traições contavam-se pelas amizades e ninguém dava crédito senão ao ouro e à maledicência... Um homem que o recebera no seio da própria família e que, depois de o hospedar em casa, inda lhe emprestava dinheiro e fazia surpresas como a da mobília! Era o que se podia chamar um filantropo, um amigo excepcional!

— Que achas?

Adelaide confirmou os elogios, mostrando-se reconhecida às boas intenções do secretário, qualificando-o de generoso, de nobre, de fidalgo, emprestando-lhe todos os caracteres de homem de bem que não alardeia as ações meritórias que pratica. O Sr. Furtado era um exemplo de delicadeza e cavalheirismo. — Evaristo não via como ele a tratava? Interessava-se por ela como por uma irmã; nas refeições, nos passeios, à noite, quando jogavam. E a mulher também, a D. Branca. Ambos muito amáveis!

— São simpatias... são simpatias... — explicava o bacharel, acendendo o cigarro, com uma ponta de vaidade. — Tudo neste mundo é a gente se insinuar... O orgulho mata a aspiração, enfraquece o estímulo.

De manhã, vinham os dois, ele e a esposa, almoçar em companhia dos Furtado, como pensionistas dum botei, e Adelaide passava quase todo o dia embaixo, na sala de jantar, com D. Branca, até à hora da segunda refeição, lendo romances, relendo jornais, discutindo modas, costurando. Uma vida sem preocupações, nem intrigas. D. Sinhá, do desembargador, é que às vezes ia interrompê-las com histórias de namoro e bilhetinhos e novidades de Botafogo, sempre muito misteriosa e muito coberta de pó de arroz. Furtado não gostava dela, não lhe achava encanto e profetizava-lhe horrores!

Que mais podia querer Adelaide? Que outras ambições podia desejar Evaristo? Perguntasse-lho, e eles não saberiam responder. Tinham casa, cômodos independentes. boa mesa, boas amizades, tudo por pouco dinheiro, graças à generosidade do secretário, cuja dedicação parecia aumentar.

— E o piquenique no Jardim Botânico? — lembrou Furtado uma bela manhã.

— É verdade, o piquenique? — repetiu D. Branca.

— Por mim, é quando quiserem — disse o bacharel. — Ninguém mais do que eu aprecia o campo, as árvores, o ar fresco, e o perene correr de um fio d'água.

— Você por que não determina? — perguntou Branca ao marido.

— Tantas manhãs boas para a gente se divertir!

Furtado marcou o primeiro domingo de sol. Convidava-se unicamente o visconde de Santa Quitéria. Nada do desembargador, nem de pessoas estranhas. Havia de ser um piquenique familiar, uma coisa toda íntima sobre a relva macia, bem longe da entrada do jardim. debaixo de uma árvore.

— Ao champanha? — perguntou D. Branca com os olhos faiscantes, numa alegria súbita.

— Ao champanha, sim, ao champanha. Um piquenique delicado e de bom gosto, como se usa em Petrópolis e na Europa... Toilettes claras, roupas leves, menu à francesa, encomendado ao Pascoal!... e que ninguém se lembre de morrer enquanto houver sol e árvores na natureza!

— Não convidas a Tourinho?

Mas Furtado declarou inda uma vez que só convidava o visconde, isso mesmo porque devia muitos favores ao Santa Quitéria.

— Nem ao Dr. Condicional? — gracejou Evaristo.

Furtado esboçou um risinho, compreendendo a ironia, e não respondeu.

Eram de uso, então, os piqueniques no Jardim Botânico. Em se aproximando o calor, o grande parque enchia-se, aos domingos, de uma população ruidosa e promíscua, de milhares de pessoas de ambos os sexos, largamente espalhadas, indo e vindo, nos seus trajos fofos, ao som de uma banda de música oculta pitorescamente sob as árvores; e os tons claros das toilettes, o colorido gárrulo dos vestuários matizavam a frescura sombria dos caramanchões, de mistura com o vermelho sangüíneo dos flamboyants. Risadas estalavam num cascatear argentino que se ia perder nos longes da mata, ecoando em ondas sonoras de uma cristalinidade musical. No centro da comprida aléia de palmeiras que vai desde a entrada até o fundo da quinta, um repuxo esguichava perenemente, caindo em leque numa grande bacia de pedra, rodeada de mirtos silvestres. Crianças apostavam corridas e juntavam ao som da música a alegria de suas vozes. Em toda a parte a mesma liberdade comunicativa, a mesma expansão domingueira. Desde as cinco horas da manhã até as sete da noite, o Jardim Botânico era como uma grande sala de hotel. Almoçava-se, lanchava-se, jantava-se ao ar livre, sob os castanheiros, na relva fresca e cheirosa, à beira dos lagos.

Ao primeiro domingo de abril realizou-se o sonhado piquenique. A manhã estava radiosa, de uma inefável limpidez, o contorno das montanhas muito vivo, sem borrões de nuvens, recortando em ziguezague o azul infinito e puro do céu — manhã deliciosa como uma recordação do passado ou como uma tela impressionista em que vibrasse a alma das coisas numa estranha sinfonia bucólica de poema virgiliano... manhã como essas de que falava a esposa do secretário — boa para a gente se divertir, para a gente esquecer um pouco as misérias da vida, longe da Rua do Ouvidor e das mexeriqueiras do bairro... Valia a pena, decerto, aproveitar uma manhã como aquela, indo entre as árvores, no seio bom da natureza, bebendo a água das fontes, a ouvir o misterioso segredar dos pássaros e o trilar dos insetos invisíveis — na Tijuca, no Jardim Botânico, em Petrópolis, em Friburgo, em Santa Teresa..., onde quer que houvesse frescura e um pouco d'água límpida.

Todos acordaram cedo, a começar por D. Branca e a acabar por Evaristo, que, à última hora, não se sentia em condições muito favoráveis a uma jornada no campo; mas, enfim, sempre se resolveu, depois de tomar uma dose de conhaque com açúcar.

A mulher de Furtado, sobretudo, não ocultava o bom humor que lhe ia na natureza. Era doida por piqueniques, ninguém lhe falasse em piqueniques! Ergueu-se às quatro horas, mesmo porque não dormira bem com o calor, e foi à janela da frente ver como amanhecera o dia, "se o Corcovado tinha nuvens"... Qual nuvens! O perfil da montanha estava limpo na meia sombra do alvorecer. Qual nuvens! Daí a pouco o solzinho estava fora e ela em caminho para o Jardim Botânico, mais o Furtado e a Adelaide e o Evaristo e o visconde, o simpático visconde, o homem que ela tanto admirava e que em toda a parte era o mesmo — elegante, correto, generoso como um nababo, fidalgo até no abotoar a luva a uma dama... Oh, o visconde de Santa Quitéria! Como ela se ia divertir, naquele passeio ao ar livre, como ela ia gozar! A última cartinha dele...

— Que horas são?

Era a voz do secretário, inda na cama, na frescura matinal dos lençóis. D. Branca teve um pequeno susto, um ligeiro sobressalto.

"Que horas eram? Quatro e meia..."

Ele, então, bocejou, espreguiçou-se molemente, coçando-se e tornou a perguntar:

— Quatro e meia?

— Deu agora... Não faças barulho para não acordar a Julinha.

— Vamos tratando de nos vestir.

— Vamos. Não tarda clarear.

E começaram as abluções, os preparativos.

No segundo andar o som abafado de um despertador elétrico fez sinal retinindo embaixo, nos aposentos do secretário. Ele e a mulher trocaram algumas palavras. Tinham combinado com o visconde para as seis horas e o visconde prometera pão faltar. — Às seis em ponto estaria na casa do amigo Furtado.

Foi pontual o Santa Quitéria — questão de mais um minuto, menos um minuto. Vinha chique e alegre, sorrindo ao aproximar-se da casa do secretário, no seu veston de brim, chapéu de palha, binóculo a tiracolo e uma pequena valise cor de chocolate.

As duas senhoras correram à janela e o marido de D. Branca foi recebê-lo à porta da rua.

O visconde apeou nobremente, murmurou qualquer coisa ao boleeiro, e, risonho, apertando a mão a Furtado:

— Creio que estou na hora...

O secretário respondeu com uma exclamação venturosa, estirando o braço para o Corcovado:

— Veja que dia lindo!

— Efetivamente! Está convidativo, está próprio!

E respeitoso, solene, o amável banqueiro perguntou pela "excelentíssima senhora" e pelas crianças.

— Todos bons, muito obrigado. O senhor visconde é que tem mocidade para um século!

— Oh, meu amigo... As aparências iludem... já me vou sentindo cansadinho, graças a Deus.

— Ora, o senhor visconde!

Branca e Adelaide gentilmente o acolheram no alto da escada.

Evaristo completava a toilette no segundo andar

— Que dia lindo, senhor visconde! — fez a esposa do secretário. recuando para deixar passar o Santa Quitéria.

— Lindo, minha senhora, lindíssimo!

Tinham todos um ar alegre e trataram-se com uma familiaridade burguesa, na mais bela disposição de ânimo.

Adelaide, curiosa, quis ver se o visconde trazia o anelão de brilhante, e os seus olhos procuravam a mão do banqueiro. Trazia, sim. Era uma das coisas que ela admirava naquele homem — o anel, uma jóia primorosa, inestimável.

— O senhor seu marido vai bem, minha senhora?

— Bem, obrigada — respondeu Adelaide, menos cerimoniosa.

Porque o visconde de Santa Quitéria em roupa de passeio não tinha ares de fidalgo, como quando se apresentava de casaca ou mesmo no seu fraque justo e elegante. A roupa branca — larga e mole no corpo dava-lhe uma feição distinta, mas democrata, uma feição popular de rapazola que sacrifica o luxo pela comodidade, a moda pelo bem-estar. Vendo-o assim, a esposa de Evaristo animara-se a lhe responder em tom quase íntimo de conhecidos velhos.

O criado trouxe uma bandeja com chocolate e pão-de-ló. Todos se serviram, inclusive o bacharel, que já estava presente.

Afinal, depois de meia hora de palestra matutina, e aos primeiros clarões do sol triunfante, a comitiva, em dois carros, tomou a direção do Jardim.

O visconde fora se reunir à família do secretário não tanto por delicadeza, quanto por "chiquismo", para ir na companhia das senhoras, gozando a amável presença de D. Branca e da jovem Adelaide. Não queria perder ocasião de se mostrar na altura dos seus sentimentos e da intimidade com que o tratavam as dignas senhoras. O título de nobreza, que ele carregava solenemente há dois anos, graças à benevolência do Sr. D. Pedro II, não o impedia dessas e outras manifestações democráticas. Os reis também apertam a mão ao povo e também lá um dia esquecem as púrpuras e a coroa, trocando-as pelo redingote burguês... O próprio imperador já uma vez desembarcara na Europa, no cais Sodré, de sobrecasaca e guarda-pó, como qualquer mortal.

Estimava muito o amigo Furtado e a Sra. D. Branca para não ter orgulhos de nobreza, nem de fidalguia. O seu paletó branco e a sua calça branca naquele momento significavam intimidade e também um pouco de elegância. A toilette em harmonia com a estação e com o gênero de passeio.

Num dos carros ia ele, D. Branca e o secretário, no outro Adelaide, Evaristo e o Raul. A Julinha fora passar o domingo à casa do desembargador; D. Sinhá prometeu desvelar-se por ela.

Na frase entusiástica do visconde "o dia estava lindíssimo!" o céu, muito azul, parecia o fundo largo de uma tela desdobrando-se infinitamente por sobre o universo. A Corte espreguiçava-se aos primeiros ruídos da manhã luminosa. Na plataforma dos bondes flutuavam bandeirinhas verde-amarelas com a coroa nacional. Os quiosques de Botafogo tinham o aspecto risonho de pavilhões infantis, embandeirados também, com os seus galhardetes em arco, sob as árvores, olhando para o mar. Um cheiro vivo de jasmins inundava a atmosfera, como que aveludando-a cariciosamente. Principiava a agitação nos cafés e nas hospedarias. O Raul julgou mesmo ouvir sons de música ao longe e apurou o ouvido: — "Se não estava enganado..."

Ia para mais de seis horas.

O visconde foi o primeiro a apear. Todos apearam, numa grande alegria, diante do portão do "nosso Bois de Boulogne" como dizia o Santa Quitéria.

Furtado indagou logo se o homem da rotisserie já teria vindo, e lançou um olhar curioso pelas proximidades do portão.

— Qual! Ainda não veio... Pois olhem que eu tratei para as sete horas!

O visconde tranqüilizou-o puxando o relógio, e dizendo que ainda faltavam quinze minutos para as sete.

— Aí vem ele! — descobriu o Raul com um gesto alvissareiro, apontando para um homem que trazia na cabeça uma grande caixa de folha em que se liam as inscrições: Confeitaria Pascoal — Rua do Ouvidor.

— Ora muito bom dia! — Saudou o empregado aproximando-se.

— Bom dia — corresponderam todos a uma voz.

Um clarão iluminou os olhos vivos do filho do secretário.

— Já há bocado que estou à espera de vossas senhorias — tornou o homem da caixa.

— Vá entrando e acompanhe-nos — ordenou Furtado.

O visconde ofereceu o braço gentilmente à D. Branca e, com as demais pessoas — ele à frente — seguiu em linha reta para o interior do jardim.

Lá estava, entre as palmeiras, o repuxo cantando, em fios d'água, a monótona balada das fontes; ouvia-se, de longe, o ruidozinho da água a esguichar, caindo em arcos para um e outro lado e confundindo-se quase com o nostálgico farfalho das árvores. O sol, brando e macio, erguia-se lento, sobredoirando as eminências, pouco a pouco iluminando a espessura do arvoredo e a larga extensão verde que enchia bruscamente os olhos encantados de Adelaide como um sonho de glória e bem-aventurança. Respirava-se a frescura das plantas e o aroma fino das trombetas e das rosas, a essência matinal das grandes árvores e dos pequenos vegetais que acordavam à vida num banho morno de luz. Pompeavam estranhas florações no recesso da mata e um hino misterioso parecia levantar-se da natureza ao astro fecundante que ressurgia com o seu esplendor incomparável de rei absoluto.

Vinham chegando outras famílias, outros casais, outros grupos, que logo se perdiam no emaranhado das aléias laterais, e em todas as fisionomias brilhava uma satisfação íntima, um como prazer novo e especial, um reflexo de imortalidade astral.

O visconde parou no chafariz. Todos pararam no chafariz.

— É realmente belo! — exclamou o bacharel com os olhos erguidos em êxtase para a copa das palmeiras.

— A Tijuca é mais solene... — observou circunspecto o visconde.

— O barulho da cascata é como se a gente estivesse num ermo religioso... no meio de um deserto... muito longe... . muitíssimo longe...

— Oh, então deve ser triste demais... — argumentou o marido de Adelaide.

— Como triste? É encantador! é poético!

— Falta aqui o Dr. Condicional para dizer que lembra o Evangelho na selva... — insinuou o amigo de Furtado.

O visconde achou graça, e, desdenhoso, carregando a esposa do secretário:

— Um petit-maitre, o tal Manhães!

Todos riram, inclusive o Raul que perguntou à mamãe o que era petit-maitre.

Escolhido o local para o piquenique, sob um caramanchão agreste de parasitas imitando a entrada de um túnel e onde havia uma grosseira mesa de pedra, nos fundos do jardim, o bacharel propôs uma volta, uma grande volta "para abrir o apetite".

Ninguém discordou da idéia. O Antônio ficava botando sentido à comida. (Antônio era o criado do secretário.)

— Um vermutezinho não é mau antes do almoço, oh, visconde... — lembrou Furtado.

— Vá lá um vermute.

— Já tão cedo! — exclamou Adelaide.

— Pois então!... — fez D. Branca.

— Cedo para preparar o estômago — replicou o banqueiro.

— Ah!...

O próprio Furtado tirou da cesta cálices, uma garrafa intacta que o Antônio abriu com estampido, e bebericaram.

— Agora, toca!

E marcharam, ora a dois e dois, ora a três e três, por entre os tufos verdejantes, papagueando e rindo, num começo de liberdade familiar. Aves ariscas voavam pressentindo-os; pipilavam ninhos na frondosa espessura das ramagens; estridulavam cigarras em desafio, numa orquestração aguda e uníssona.

Evaristo, no meio de toda aquela paisagem tropical, de uma riqueza encantadora, lembrou-se da província, e, num tom solene e misterioso, recitou descobrindo a cabeça e estacando:

— Solidão, eu te saúdo! Silêncio do bosque, salve!

Lera isso há muito num clássico português e nunca um pensamento alheio fora tão bem empregado!

— Olhe, D. Adelaide, como se deita a perder um homem — gracejou o secretário.

Adelaide sorriu.

— Vocês é porque não sabem glorificar a natureza, vocês é porque não lêem os clássicos! — replicou o bacharel.

— Mas não te lembras do resto.

— Como não me lembro, se é uma das páginas que eu nunca hei de esquecer?

E o bacharel, sem receio de escandalizar o aprumo do Santa Quitéria, berrou para o alto, como se falasse às nuvens:

— Solidão, eu te saúdo! Silêncio do bosque, salve! A ti venho, oh natureza; abre-me o teu seio. Venho depor nele o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida!. .. Os homens não me deixam; amparai-me vós, solidões amenas, abrigai-me, oh solidões deleitosas.

— Onde queres tu chegar com essa desfruteira, oh Evaristo? — interrompeu o outro.

— Quero chegar ao fim da página...

— Olha que isso é um desrespeito ao visconde! — segredou Adelaide.

O banqueiro, porém, havia-se destacado um pouco e marchava com D. Branca, sem se incomodar, no seu passo lento de garça real. Atrás vinham as outras pessoas. O secretário tinha absoluta confiança no visconde; até aborrecia-o dalgum modo a sisudez, a gravidade patriarcal do celibatário. A Branca ia muito bem na companhia dele, do Santa Quitéria.

Este, enquanto o bacharel discursava e vendo-se longe de ouvidos perigosos, abriu válvulas ao coração, baixinho e disfarçadamente.

— Creio que não a posso esquecer; acordo e deito-me pensando no nosso grande amor... Imagine se estivéssemos sós aqui.

— Oh!...

Mas deixe estar que ainda havemos de ser muito felizes... muito felizes.

— Eu bem sei que me ama, bem sei, mas vi-o outro dia interessar-se tanto pela minha amiga Adelaide...

O capitalista sorriu benevolamente, como quem perdoa.

— Sua amiga Adelaide é uma criança... uma menina de ontem... e eu seria incapaz... Oh!... faça-me justiça...

— Eu não estou afirmando...

— Creia que não me preocupo com outra pessoa.

— E que tal a idéia do piquenique? Supus que não viesse...

O banqueiro guardava a atitude respeitosa e fidalga de quando se exibia nos salões. Ia responder, mas ouviu passos na areia. Voltou-se: eram as outras pessoas, o Raul, Evaristo, Adelaide e o secretário, que se aproximavam silenciosamente.

Foi longo o passeio através das árvores, em romaria bucólica e matinal pelas avenidas do jardim. O visconde colhia flores dedicadamente para as senhoras. D. Branca, mesmo na presença do marido, colocou uma na sua botoeira, sempre risonha, sempre afável, multiplicando-se em gentilezas ao Santa Quitéria. Adelaide, entre Evaristo e Furtado não perdia o ar ingênuo e melancólico que tanto preocupava ao Manhães na noite do batizado e que encantava o secretário. Este volvia constantemente os olhos para ela e de vez em quando arriscava um segredinho inofensivo, uma pilheriazinha, elogiando-a, gabando-lhe os olhos, a boca, fazendo alusões amorosas às flores, glorificando o amor livre dos pássaros, lembrando cenas de romances, episódios do campo... Furtado aproveitava os momentos em que o bacharel ia, com o Raul, fazer provisão de flores para enfeitar a mesa do lanche".

Os dois já não sabiam onde colocar flores; levavam grandes buquês feitos à pressa. O secretário achava muita graça naquela amizade do Raul ao Evaristo.

— Se meu marido é uma criança! — ralhava Adelaide.

— Uma criança de vinte e oito anos!... — dizia o secretário.

— Criança, porque não tem juízo, porque não se importa...

— Deixe-o lá, deixe-o lá... É gênio.

— Mas não fica bonito, não é sério.

De novo entravam todos na grande além de palmeiras e de novo chegaram ao caramanchão escolhido para o piquenique.

Ia para as onze horas. O sol inundava a floresta e nenhuma nuvem toldava a maciez límpida do céu. Todos respiraram ao entrar no improvisado restaurante coberto de folhas, rodeado de árvores e onde se gozava uma frescura deleitosa e aromada de selva.

— Uf! — respirou Evaristo sentando-se. — Já é andar. Olhem que demos a volta ao jardim!

— Outra dose de vermute — propôs o secretário.

— Apoiado, apoiado! — murmurou o visconde fazendo-se alegre.

As duas senhoras conversavam endireitando as toilettes, revistando-se uma à outra com risadinhas.

O Antônio pusera "a mesa"; uma toalha muito branca alvejava no pequeno recinto que a luz mal penetrava. Sobre a toalha brilhavam os talheres de metal branco e os copos de cristal muito finos, e as flores que o Raul colhera. Ao aspecto risonho da mesa as fisionomias tomaram uma expressão viva de conforto. — "Era tempo de se ir comendo qualquer coisinha..." — balbuciou Evaristo ao secretário. Este dispunha tudo na melhor ordem, falando ao Antônio, sorrindo ao banqueiro, uma atividade pasmosa de garçon d'hótel.

De dentro da caixa da confeitaria surgiu primeiro um prato com "vol-au-vents e logo seguiu-se o estampido de uma garrafa que se abre.

— Vamos, vamos — comandou Furtado. — Senhor visconde. D. Adelaide... Branca... Evaristo... Vão se sentando...

Riram-se todos à falta de cadeiras. Mas havia no caramanchão, longe da mesa, um banco de pedra, onde se sentaram as duas senhoras. Os homens comiam em pé.

— Aqui há ainda um lugar, senhor visconde — ousou amavelmente a esposa de Furtado conchegando-se à amiga.

— Não, não, minha senhora, obrigadíssimo; eu faço companhia aos do meu sexo...

— Isso, visconde, isso! — aprovou o bacharel. — Um homem é um homem!

Vieram outros pratos, outras iguarias delicadamente feitas no Pascoal, sob encomenda do secretário: uma esplêndida torta de camarões — regada a Sauterne — ostras e uma bela garoupa fria e apetitosa, não falando no hors-d'oeuvre no fiambre, nas azeitonas muito fresquinhas e muito negras que o visconde colhera com a ponta dos dedos, e as frutas ao dessert — pêssegos, uvas e abacaxi frappé.

O almoço correu alegre, muitíssimo alegre, cheio de risos, fermentado pelo Bourgogne e pelo champanha — um almoço leve, delicadíssimo e substancial, "aristocraticamente fino", como ideara o esposo de D. Branca. Evaristo, ao abrir-se o champanha, pediu que não se fizessem brindes.

— O brinde é a maior tolice do século dezenove — explicou ele, tragando uma roda de abacaxi. — O brinde parece até uma invenção do Valdevino Manhães ou de Mr. de La Palisse; eu sou contra o brinde como sou contra a mon...

Ia dizendo monarquia, mas arrependeu-se logo, sem olhar para o visconde:

— ... Como sou contra o voto feminino!

— Eu só compreendo o brinde quando é de honra, à Sua Majestade o Imperador, à princesa... ou mesmo a um homem ilustre que se não confunda com o resto da gente.

— Qual, senhor visconde! exclamou o bacharel depondo o talher.

— O brinde, seja ele a quem for, é uma das muitas ridicularias da civilização... Não sei como qualificar o indivíduo que interrompe a boa digestão de uma mesa, de uma sociedade, para, de taça em punho, levantar um brinde às virtudes de outro, não sei.

Evaristo esquecia-se do batizado da Julinha em que o diretor do Banco Luso-Brasileiro fizera diversos brindes entre os quais um a seu amigo Furtado, que por sua vez brindara à sereníssima herdeira do trono.

Adelaide fez-lhe sinal piscando o olho, mas o bacharel não percebeu e concluiu dizendo catedraticamente que o brinde "era uma prova de ignorância e de tacanhez intelectual",

Todos estranharam aquela franqueza perante o visconde de Santa Quitéria, na presença do respeitável amigo de Suas Majestades que ninguém ousava contrariar nas menores coisas.

Furtado disfarçou o mau efeito das palavras de Evaristo, dizendo alegremente que, para provar ignorância e tacanhez intelectual, ia brindar à Inspetoria do Jardim Botânico e mais à Flora brasileira.

— Muito bem, muito bem, meu amigo — fez o visconde erguendo o copo. — O esposo da Sra. D. Adelaide estava bem para niilista, ao que vejo. Atira-lhe com um brinde à Flora.

As palavras do visconde mereceram aplauso das duas senhoras. Adelaide e Branca saudaram-no entusiasticamente.

— Bravo, senhor visconde, bravo — exclamaram as duas a um tempo.

E Evaristo, esmagado pela maioria, bebeu também à saúde do Jardim Botânico, "uma vez que o amigo Furtado e o ilustre senhor visconde faziam questão".

Beberam, e o champanha, caindo no estômago farto dos homens e das senhoras, trouxe-lhes ainda mais alegria e expansão.

A própria Adelaide tinha agora um brilho comprometedor nos olhos, uma viveza fora do natural, e falava também, muito risonha, inclinando a cabeça no ombro de Branca. A mulher do secretário lamentou a ausência da viúva Tourinho; faltava uma senhora para completar três casais, e a viúva sabia se divertir como gente, era uma bela companhia.

— E o desembargador? por que não convidaram o desembargador Lousada? — disse o marido de Adelaide, devorando um cacho de uvas.

— Oh, Evaristo, você ainda come? — acudiu a jovem esposa do bacharel, cujas faces, ordinariamente pálidas, tinham agora um ruborzinho quente.

Furtado perguntou, então, se ainda queriam tomar alguma coisa, e como todos recusassem, propôs novo passeio através das árvores. Ninguém discordou da idéia. Evaristo, porém, falou ao ouvido do secretário, que lhe respondeu baixinho, acrescentando alto, para as senhoras e o visconde:

— Podemos ir, podemos ir; o Evaristo irá depois...

— Como, irá depois? — perguntou Adelaide com um arzinho de riso.

— Vão andando, que eu já os encontro — disse o bacharel misteriosamente. — É questão de minutos...

— Espera por ele, oh Raul — ordenou Furtado.

E, oferecendo o braço a Adelaide, à imitação do visconde, que já se apoderara de D. Branca, saiu do caramanchão.

O número de passeantes aumentava com o correr da tarde. O jardim ia-se enchendo de famílias e rapazes que percorriam as avenidas de chapéu-de-sol aberto à luz das duas horas. Os sons da música chegavam aos ouvidos distintamente na aragem acariciadora que soprava. Como que esmoreciam os tons vivos da paisagem, num desmaio lento; o sol esfriava um pouco e o azul tinha agora uma cor poeirada de cinza, como um espelho que de repente se ofuscasse a um bafejo úmido. Todas as coisas iam mudando de aspecto à proporção que se aproximava o fim da tarde. Os tons vivos iam-se traduzindo em tons melancólicos; a natureza, cansada de luz, queimada pelos ardores do sol, numa indolência outonal, volvia-se para o crepúsculo, adivinhava a noite. O repuxo central do Jardim entoava a sua ladainha num ritmo blandicioso de cascata longínqua.

Furtado queria se abrir com Adelaide agora que estavam sós, dizer-lhe tudo quanto sentia por ela desde que a vira pela primeira vez, contar-lhe as suas insônias, o muito que a estimava, a extraordinária simpatia que ela lhe inspirava; mas uma timidez amordaçava-o, uma timidez de colegial, e, no fundo, um vago sentimento de compaixão pelo amigo, pelo Evaristo, seu velho contemporâneo do Liceu, cujas qualidades, ontem como hoje, eram dignas do respeito que se deve a um chefe de família honesto e exemplar. Além disso, temia qualquer movimento de indignação por parte de Adelaide; ela talvez o repelisse, dando escândalo num lugar público, desabafando ali mesmo em face do visconde e de sua mulher, inutilizando-o. Mas logo esses temores desapareciam e voltava-lhe o ânimo, a coragem de homem useiro e vezeiro nas pugnas do amor fácil.

E já não pensava no Evaristo nem nas conseqüências de uma deslealdade infame, trancando o coração ao sentimentalismo e aos influxos nobres, abstraindo de tudo que não fosse o desejo criminoso e lúbrico de aumentar o número das suas conquistas. Porque, em verdade, a presença daquela mulher tirava-lhe o sossego íntimo, arrebatava-o como a presença de outras igualmente respeitáveis e a quem ele seduzira com os seus brilhantes e com as suas lábias, triunfando como um general invencível. Apontava-as a dedo; via-as passar na Rua do Ouvidor e saudava-as feliz e glorioso. Adelaide sorria-lhe e tanto bastava para que dentro dele se ateasse a chama rubra do desejo, lambendo-o vorazmente, como uma língua de fogo, queimando-lhe o coração, escaldando-lhe o cérebro.

Ele então apertava-a contra si, mordendo o beiço, ameigando o olhar, com ímpetos de explodir numa declaração formal, absoluta e suprema, como se estivesse de joelhos num confessionário, e pedir-lhe, pelo amor de Deus, por vida de seus olhos, por tudo! que soubesse corresponder àquela estima, àquele amor, àquela loucura.

Adelaide ia rindo, muito satisfeita, não completamente fora do círculo de idéias que preocupavam a Furtado; de algum modo ela não estava muito longe de preferir o secretário a Evaristo; iniciada nos segredinhos de alcova por D. Branca, que lhe abrira os olhos à vida fluminense, tumultuosa e desregrada, na rua como nos salões, vendo o exemplo de outras mulheres e da própria Branca, Adelaide insensivelmente ia-se deixando absorver pelo meio que a cercava, embora a educação que recebera na província, os hábitos ingênuos, a natural timidez, que ainda conservava, não cedessem logo a um primeiro impulso do coração. Ela notava as delicadezas de Furtado, via-o quase sempre de olhos cravados no seu rosto como se quisesse adivinhar o que lhe ia n'alma, guardava o caso da mobília e dos duzentos-mil-réis e muitas outras provas de generosidade e fineza do secretário; mas atribuía tudo a um sentimento de amizade para com Evaristo, a um impulso natural de velho companheiro de escola.

Iam por uma aléia sombria de bambus, cuja copa unia-se formando um túnel verde extenso, que se prolongava em ziguezague. Às vezes o banqueiro desaparecia numa curva com a mulher de Furtado, e o secretário conchegava o braço de Adelaide, numa pressão meiga e voluptuosa, como se a quisesse envolver de carinhos, o olhar medindo toda a singeleza do seu perfil, resvalando-lhe na cútis do rosto e caindo apaixonadamente no pescoço que as rendas do plissê guarneciam de branco.

As palavras dele, ungidas de ternura, ritmadas pela emoção, Adelaide ouvia-as inquieta, e, instintivamente, apressava o passo, medrosa, de estar ali sozinha "com um homem!".

— Como é escura esta avenida! — exclamou, de repente, erguendo os olhos para a copa dos bambus.

Furtado estremeceu.

— Escura, mas muito agradável, não acha? — murmurou quase ao ouvido dela.

— Pelo contrário...

— Não diga pelo contrário... Leia os poetas. .. A solidão convida ao amor...

Adelaide estranhou aquelas palavras e calou-se.

O trajo branco do visconde assomou longe e tornou a desaparecer entre as árvores.

A esposa do bacharel queixou-se de uma dorzinha de cabeça; o champanha lhe fizera mal.

Ele tranqüilizou-a, dizendo que o champanha não fazia mal a ninguém; que era uma bebida inofensiva como água... O vinho do Porto, sim, o vinho do Porto estragava o estômago. Mas não tinham tomado vinho do Porto...

— Então é do sol.

— E do muito sol que apanhamos. Eu mesmo sinto um fogo na cabeça, uma quentura no cérebro.

De repente o secretário estacou; descobrira um pequeno inseto cor de ouro no ombro de Adelaide. Colheu-o na ponta dos dedos e mostrou-lho.

— Veja que bonito!

— É verdade: lindo!

— Naturalmente confundiu-a com alguma rosa..

— Que graça, senhor Furtado...

— E então? Admira-se de que eu a compare a uma rosa?

— Muito lindo! — repetiu Adelaide observando o insetozinho na palma da mão.

Estavam agora frente a frente ocupados com a descoberta do coleóptero, ele sem tirar os olhos dela, todo embebido na contemplação do seu rosto ideal.

— O Evaristo gosta muito de insetos, vou guardar para ele.

E depositou cautelosamente o besouro na bolsa de couro da Rússia que sempre trazia, dizendo:

— Que demora de meu marido!

— Anda às voltas, com o Raul.

E no momento em que ela fechava a bolsa para continuar o passeio, Furtado abaixou a cabeça, num movimento nobre, e beijou-lhe audaciosamente a mão, oferecendo-lhe, ato contínuo, o braço.

— Senhor!...

Ia exclamando: — Senhor Furtado!... — num tom de admiração e de queixa; mas, o insólito procedimento do secretário gelou-a.

Um beijo!... Faltava-lhe toda a coragem, toda a presença de espírito, para reagir no mesmo instante, lembrando ao marido de D. Branca o respeito que todo o homem deve a uma senhora casada. Penderam-lhe os braços, curvou a cabeça, e em vez de uma explosão de palavras que demonstrassem a Furtado a sua indignação e o seu assombro, ela deixou que as lágrimas corressem como pérolas de rosário desfiado. Nunca homem algum se atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora tão cruelmente magoado como naquela ocasião e por um homem que devia ser o primeiro a respeitá-la.

— Adelaide... — murmurou Furtado numa voz suplicante. — Zangou-se?

A jovem senhora não respondeu. Ia calada, muda, abafando o seu ódio, enxugando as lágrimas. Compreendia agora os zelos do secretário para com ela, a sua fingida dedicação ao Evaristo; compreendia tudo...

Mas, ao mesmo tempo, compreendia a necessidade de ocultar aquele episódio revoltante "para não dar escândalo", para evitar a cólera de Evaristo e uma grande desordem, talvez, entre o secretário e a mulher. Oh, infelizmente era preciso mostrar cara alegre, ainda que o coração estivesse sangrando... Nunca lhe passara pela idéia que o Sr. Furtado, um homem que se dizia tão fino, tão bem-educado, abusasse da sua posição e de um momento como aquele para... para beijá-la, como se estivesse tratando com uma criadinha de família, sem pejo nem nada! Era muita coragem e muita desfaçatez!

— D. Adelaide... — repetiu Furtado aproximando-se dela. — Queira desculpar-me se a ofendi...

A esposa de Evaristo continuou no mesmo silêncio obstinado, como uma pessoa que de repente perdesse a fala, indo maquinalmente pela avenida, sem ver as coisas, olhando para o chão fofo que seus pés iam pisando insensivelmente. De alegre que estava quando saiu do caramanchão, tornou-se melancólica e indiferente às belezas do jardim e às fulgurações da luz. Doía-lhe a cabeça com uma intensidade atroz.

Furtado emudeceu também, penalizado, um pouco arrependido já, receoso de que Adelaide não fosse cometer alguma imprudência desabafando-se. Mordia o castão da bengala com um ar sério de quem cogita numa grave questão.

Aventurou nova pergunta:

— Quer que me ajoelhe e peça perdão? Creia que foi uma loucura de que me confesso arrependido...

Adelaide suspirou levemente, como alívio, ainda sem responder. Neste instante a música do outro lado do parque tocava uma habanera saudosa cujo eco ia morrer longe nas montanhas, penetrado de evocações. O coração terno da esposa de Evaristo encheu-se de bondade e acordou subitamente da melancolia em que o deixara Furtado. Ela, porém, não tinha coragem de abrir a boca e dizer uma simples palavra, como se estivesse na presença de um estranho, de um desconhecido. Queria esquecer a ofensa que recebera do amigo do Evaristo, acabar com aquilo e continuar a viver como dantes; o homem às vezes não é senhor de si... Lembrava-se dos favores que o bacharel devia ao secretário, da extremosa amizade de D. Branca e um sentimento de gratidão penetrava-a desanuviando-lhe a alma, restituindo-lhe o bom humor e a visão otimista da paisagem e das coisas... Não valia a pena zangar-se, amofinar-se por uma tolice, de uma loucura... Ninguém vira o secretário beijar-lhe a mão, ninguém...; a aléia estava deserta como o interior de uma gruta longínqua. Para que então, provocar escândalo? Também não se deve ser muito escrupulosa... deve-se desculpar, fechar os olhos a estas coisas.

Furtado ouviu um rumor na areia. O Raul aproximava-se correndo; atrás dele vinha o bacharel em passo ordinário.

— Eh, lá! — gritou Evaristo. — Esperem ao menos pela gente!

O secretário voltou-se com Adelaide e riram ambos da filosofia ingênua daquele marido excepcional.

— Já te fazíamos desertor!

— A mim?... Ufa, que já me não tenho nas pernas!... Desertor?

— Onde andaste há quase uma hora?

— Vendo as cascatas e os reservatórios... Pergunta ao Raul!

— Oh, que bonito, hem, senhor Evaristo? Que bonito, papai! A cachoeira vem de lá de cima da montanha rolando, rolando como uma chuva...

— Esplêndido! — tornou o bacharel. — Já não nos lembrávamos de vocês... Que é do visconde?

— Vai lá adiante com a Branca.

— Papai, oh papai! — interrompeu o menino.

— Que é, meu filho?

— Um homem estava tirando o retrato da cachoeira, com uma máquina...

— Já sei.

E para Evaristo:

— D. Adelaide é que está com uma dorzinha de cabeça.

— Melhorei um bocado, já não dói tanto — disse Adelaide.

— E agora para onde nos atiramos? — perguntou o bacharel.

— Ao encontro do visconde e da Branca.

Foram andando os três, mais o Raul. Saíram na grande aléia das palmeiras, onde se achava o Santa Quitéria de braço com D. Branca cm torno do repuxo, vendo cair a água em fios dentro do reservatório.

— Olá, como estão embebidos! — exclamou o Furtado.

O bacharel, por trás do secretário, piscou maliciosamente o olho à esposa.

— É verdade, como estão embebidos! — repetiu Evaristo.

E aproximaram-se justamente na ocasião em que o Santa Quitéria falava em voz muito baixa no seu escritório na Rua da Alfândega, onde havia uma alcova, toilette, jarro com flores, et coetera...

O instinto de D. Branca advertiu-a da aproximação de Furtado; ela fez sinal com os olhos ao banqueiro e entraram todos a confabular alegremente.

Estava reunida a troupe sem faltar uma só pessoa. O visconde consultou o relógio: eram três e meia.

— Cedo — murmurou.

— Querem tomar alguma coisa? — ofereceu o secretário. — Um vermute, um conhaque, um copo de água gelada.

Ninguém queria; em todo caso foram repousar à sombra do caramanchão, enquanto o sol ainda estava quente.

Adelaide aparentava a mesma fisionomia naturalmente ingênua do costume. Evaristo sempre despreocupado, não adivinhou, através do seu rosto, a mais leve contrariedade. Já se habituara àqueles longes de melancolia, que eram a verdadeira expressão do olhar da esposa. D. Branca notou porém um tom cerimonioso na voz do Furtado, quando este se dirigia a Adelaide. Desconfiança, talvez, mas notara... e ela que conhecia bem o gênio do esposo, imaginou logo o fio de uma secreta história de amor...

As cinco horas, nova refeição desafiava o apetite do bacharel e do Raul, somente deles, porque as outras pessoas torceram o nariz à galinhola e à maionese de salmão; contentaram-se parcamente com uma fatia de queijo holandês, um pouco de marmelada e vinho de Bourgogne. O visconde acrescentou água de Selters, limpando o bigode com cerimoniosa fidalguia.

Evaristo e Raul é que não dispensaram a comezaina e entraram, de rijo, na asa de galinha e na maionese.

— Vocês não sabem o que estão perdendo! — excitava o bacharel, sem cerimônia, trincando as azeitonas. — Um bocadinho de maionese, Adelaide!

O Raul achava graça nas palavras e no apetite de Evaristo e ria mastigando, com um risinho dobrado e sonoro que fazia os outros rir.

— Então, D. Branca? Mostre ao menos que é filha do sul!

— Não, senhor Evaristo, muito obrigada — sorriu corando a elegante fluminense.

— E o senhor visconde? e o amigo Furtado? Olha que gente!...

Abriam-se garrafas de vinho. O Antônio sempre alerta movimentava o quadro, exibindo as suas qualidades de copeiro que ama o ofício.

— Não vás indigestar... — advertiu o secretário ao filho.

No mesmo instante Adelaide recomendava ao marido que "tivesse cuidado com a maionese".

A luz do sol desmaiava num crepúsculo cheio de misteriosas paIpitações. Descia das montanhas um ar úmido; o som das cascatas vinha impregnado do aroma da floresta, como se dele fizesse parte, e evocava, aquela hora, longes de natureza tropical, saudosas ave-marias da infância... O parque com as suas árvores colossais, com os seus renques de palmeiras, com os seus túneis de verdura e com as suas planícies de grama, onde brotavam pequeninos eucaliptos e obscuros vegetais de famílias obscuras da Índia e do norte da América — o grande parque ia-se revestindo de melancolia e cada árvore com a sua etiqueta explicativa tinha um ar fúnebre de cemitério...

— Agora podemos ir — disse Evaristo -, mesmo porque vem caindo a noite...

Dirigiram-se todos para o portão do Jardim.