Tentação (Adolfo Caminha)/VI

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Ia enfim realizar-se a misteriosa e pranteada viagem do imperador. Na eterna alegria do sol, que amanhecera esplendidamente luminoso, flutuavam preces ao bom Deus pelo pronto regresso do monarca. Suspiros de saudade, louvores à boca pequena, exclamações de inconsolável tristeza erguiam-se nas ruas da cidade, formando uma atmosfera de vagas melancolias, um como ambiente glacial de apreensões sinistras que a luz triunfal do sol não espancava. Ia ficar deserta a Quinta de São Cristóvão e o Brasil sem o imperador, o Brasil sem o Sr. D. Pedro II era como Um país abandonado à aventura dos selvagens... Oh, o homem extraordinário que antes de ser homem era rei! que tristeza para o povo, que desolação para a Corte! Ninguém queria acreditar naquela viagem lúgubre como a própria morte...

No entanto, chegava a hora do embarque. Apresentavam-se as carruagens; não havia tempo a perder.

Às seis horas da manhã o desembargador Lousada e a mulher, em berlinda especial, abalaram para a Tijuca. A ilustre dama de Sua Majestade, a imperatriz, ia chorosa, com o lenço nos olhos, quase muda na sua toilette de seda marrom. O visconde de Santa Quitéria, amigo particular do imperador, não quis deixar de cumprir o religioso dever que lhe impunham a amizade e a gratidão: lá foi também corretamente encasacado, de luvas pretas. E outros e outros personagens de etiqueta levaram a sua homenagem aos augustos viajantes.

Luís Furtado entendeu que melhor seria assistir ao embarque no Arsenal de Marinha com D. Branca e os Holanda. Mas Evaristo foi dizendo logo que "só costumava ir ao embarque dos seus amigos e que não transigia com as suas convicções..."

— Não se trata aqui de convicções, nem de idéias políticas — fez o secretário. — É um dever de todo o brasileiro levar as suas despedidas ao imperador, ao homem que nos governa há quase cinqüenta anos e cujas virtudes o mundo inteiro admira...

— Nesse caso vai tu, eu não. O meu dever, como republicano, é não ir, é ficar em casa ou à minha banca de trabalho. Nunca recebi favor do Sr. D. Pedro II, nem ele me deve coisíssima alguma.

— Queres, então, privar D. Adelaide.

— Não senhor, não senhor, Adelaide irá se quiser, eu não proíbo...

— Sempre a mesma veleidade republicana; sempre a mesma tolice! — exclamou Furtado. — Hás de lucrar muito com essas idéias!

— Não é questão de lucro, é questão de consciência. Tenho o direito de pensar e de agir como entender.

— Bem; fica-te lá com a tua consciência, meu Camilo Desmoulins, e depois não te arrependas... Então, D. Adelaide vai conosco?

— Pode ir...

A jovem esposa do bacharel tinha, com efeito, muita vontade de ver o imperador, cujas barbas brancas ela nunca vira senão em retratos; mas o marido era homem esquisito, inimigo figadal da monarquia, cheio de escrúpulos, timbrando em continuar na Corte a mesma vida aperreada da província — um incorrigível — e ela respeitava as idéias dele como se fossem as suas próprias idéias. Resignou-se com um suspiro. O mundo não se acabava; quando o imperador voltasse da Europa, iria vê-lo...

Furtado, porém, renovou o seu pedido a Evaristo, obtendo dele uma resposta que trouxe aos lábios da esposa o mais adorável dos sorrisos. — Que sim — que Adelaide não devia perder o embarque espetaculoso do Sr. D. Pedro II... ao menos por curiosidade, por desfastio...

— Muito bem, muitíssimo bem! — aplaudiu o secretário, risonho, batendo as mãos. Gosto de ver um republicano de idéias largas como o Evaristo. D. Adelaide agora não tem mais do que ir preparando a toilette..

E no dia anunciado pelos jornais, todos, menos o bacharel que os acompanhou somente até à cidade, dirigiram-se ao Arsenal de Marinha, ponto de embarque do imperador.

A galeota imperial, encostada ao cais, fumegava, toda pintada de verde e ouro, fria como uma baleia, crivada de olhares que a contemplavam num êxtase selvagem. Dentro dos muros do Arsenal passeavam oficiais de Marinha e do Exército, em grande gala, arrastando as espadas com ar marcial. Viam-se também altos funcionários à paisana, de casaca e luva, e senhoras em trajo de baile, exibindo o colo num decote pomposo de rainhas, vestido de cauda, brilhantes no cabelo.

Era intensa a luz do sol, mas o povo afluía, na rua, dominado pela irresistível curiosidade de assistir à passagem da família imperial.

Uns queriam ver o próprio monarca, outros, que o conheciam, não ocultavam o desejo de "reparar bem" na herdeira do trono, outros nada mais queriam senão lançar os olhos à imperatriz. O trecho entre o morro de São Bento e a Secretaria da Marinha estava repleto de curiosos — operários do Arsenal, ganhadores, catraieiros, no meio dos quais sobressaíam altos chapéus de forma de um ou outro personagem desconhecido que também se abalava a ver o embarque.

De vez em quando parava um carro e o povo abria alas, num movimento de exército em revista. Chegavam Ministros e diplomatas cujos nomes corriam de boca em boca.

Eram já onze horas da manhã e nada do imperador, nem sinal do augusto viajante.

A essa hora precisamente uma carruagem estacou no portão do Arsenal e logo apeou o secretário do Banco Industrial; em seguida apearam duas senhoras: D. Branca e Adelaide.

Furtado ouviu uma voz no meio do povo: — Mulherão! e, teso, erecto, numa pose de verdadeiro diplomata, disse qualquer coisa ao porteiro e entrou. As duas senhoras iam na frente com o ar compungido, silenciosas, lado a lado.

Quase no mesmo instante o povo agitou-se e mais de duas mil cabeças volveram-se para o extremo oposto da rua. Vozes exclamaram: — É ele! é ele!

Houve, então, uma balbúrdia, um atropelo, uma ânsia fenomenal. Cometas estrugiram ao longe e ouviu-se um estrépito de cavalhada em correria.

Com efeito, era o imperador que chegava. A multidão abriu caminho, tal as águas do mar vermelho para deixar passar os hebreus, e uma exclamação uníssona, estrepitosa e límpida, vibrou no espaço:

— Viva Sua Majestade o Imperador do Brasil!

— Vi... ôôôô!

Dentro no Arsenal, uma música militar rompeu o hino com entusiasmo belicoso enquanto os vivas continuavam, fora. — Vi... ôôô! Vi... ôôô!... sucessivamente.

O carro imperial estacou, seguido de outros carros, e o velho monarca, cumprimentando à direita e à esquerda, surgiu trêmulo, incrivelmente pálido, os olhos fundos, a barba longa como a de um profeta da antigüidade.

Compunha-se a comitiva de S. M. Imperiais, conde e condessa d'Eu, príncipes D. Antônio, D. Luís e do Grão-Pará, visconde da Mata, visconde de Santa Quitéria, um general, um almirante, o desembargador Lousada e a esposa, e outras pessoas de distinção.

O povo cercou o monarca e quis beijar-lhe a mão antes dele entrar no Arsenal; mas o velho, todo trêmulo, com os olhos úmidos, partido de saudade, balbuciou fitando os que o rodeavam:

— Não, aqui não: o sol está muito quente!

— Viva Sua Majestade a Imperatriz! — berrou uma voz.

E todas as cabeças se descobriram e todas as bocas exclamaram — - Vi.... ôôô! num entusiasmo ardente e apaixonado.

Vozes de comando estrondeavam no recinto da praça; uma guarda de honra do batalhão naval fazia as continências ao monarca. E ele, muito amável, muito cheio de cortesias ao lado da Sra. D. Teresa, a mãe dos brasileiros, ia-se multiplicando em cumprimentos para aqui, para ali, curvado ao peso dos anos e da traiçoeira enfermidade que o minava.

Uma onda acompanhou-o vitoriando-o, aclamando-o de chapéu no ar, aos gritos de Viva Sua Majestade o Imperador! Viva Sua Majestade a Imperatriz! Viva Sua Alteza a Sra. D. Isabel! Viva o Sr. Conde d'Eu!

E a música repetia o hino nacional uma vez, duas vezes, três vezes, confundindo-se com o alvoroço da multidão.

Por fim um silêncio medroso caiu aos pouquinhos, amortecendo o entusiasmo e transformando-o num vago pigarrear abafado e tímido.

A galeota resfolegava e dentro dela já se moviam homens pressurosos, na sofreguidão de evitar o arrocho e de se garantirem um lugar cômodo. O imperador do Brasil, com os olhos vagamente nublados, num grande círculo de homens e senhoras que o queriam ver e beijar, tinha a fisionomia resignada dos mártires que a lei desterra para longínquos países, donde não voltam nunca.

Ainda não era chegado o momento das despedidas, hora trágica dos beijos e das lágrimas. Havia uma ansiedade em todos os olhares; uma tristeza calada e circunspecta ia dominando os espíritos, empolgando-os de leve, penetrando os corações vitoriosamente.

A herdeira do trono enxugava os olhos, muito rubros de comoção e de calor, em contraste com a branca fisionomia do pai. O monarca repousava numa cadeira que lhe fora oferecida por um velho almirante de rosto escanhoado. Mas de repente ergueu-se, compungido, e abriu os braços à filha. Sua Alteza percebeu que o velho ia-se despedir e murmurou:

— Não, meu pai, eu vou a bordo...

— Vais a bordo?... Oh!...

— Sim, vamos todos a bordo...

— Conselheiro — disse então o velho para um homem idoso, fardado de ministro, que conversava com o príncipe Gastão de Orleans — um abraço...

— Vossa Majestade permitirá que o acompanhe ao Gironde... — fez o conselheiro dobrando-se.

— Não quero que se incomodem por minha causa... O tempo é dinheiro...

— Não é incômodo, senhor, é um prazer e uma obrigação...

— Pois bem, vamos, para não demorar o vapor...

A essas palavras do monarca, a onda dos cortesãos agitou-se, trovejou a voz do oficial que comandava a guarda de honra, tilintaram espadas e uma fila de homens e senhoras marchou, com solenidade, para a galeota. O cais estava todo negro de gente que tinha ido ver "o embarque".

A procissão fez alto à borda d'água, trocaram-se muitos cumprimentos, D. Isabel levou ainda uma vez o lenço aos olhos, o conde abaixou a cabeça, de lado, para ouvir um general que o importunava com perguntas; uma menina de seis anos, vestida de branco ofereceu ao imperador um buquê de flores artificiais, com dizeres em ouro numa larga fita verde, e, ao som do hino, os imperiais turistas embarcaram.

Lanchas apitavam, cruzando-se na baía, defronte do Arsenal. Uma tristeza enorme avassalou todos os corações naquele momento, e quando a galeota fez-se ao largo e o último adeus flutuou na asa de um lenço — palpitante, como um coração espedaçado — milhares de silhuetas brancas emergiram da onda negra dos que ficavam... E uma aclamação geral, clamorosa e dorida, vibrou na luz intensa, pelos cais, pelas embarcações, mar adentro, como uma celeuma de vencidos...

Adelaide chorou sem saber de quê; encheram-se-lhe d'água os olhos; quis falar e faltou-lhe a voz: era como se nunca mais pudesse contemplar aquela insinuante fisionomia do velho, meiga e boa, que ninguém ousava desrespeitar.

Estavam à sombra de uma árvore, ela, D. Branca e Furtado; dali é que tinham visto tudo — os menores movimentos do imperador e da família imperial até a hora do embarque.

Os olhos da esposa de Evaristo iam e vinham, de um lado para outro, e pouco a pouco foram-se umedecendo, pouco a pouco foram tomando uma expressão comovida e inquieta que o secretário logo percebeu.

D. Branca esticava o pescoço, erguia-se na pontinha dos pés, a mão enluvada no ombro do marido, equilibrando-se. Nada lhe escapou à indiscreta curiosidade: viu o desembargador Lousada e a mulher, os príncipes, a princesa, o monarca e a imperatriz e, por fim, o visconde, o Santa Quitéria enfronhado na sua casaca solene, de braço com uma ilustre dama que ela não pôde reconhecer. O banqueiro levava ao peito um crachá faiscante, uma grande comenda que a todos causava admiração. — Mas de braço com uma mulher! Qh, a esposa de Furtado arriou os calcanhares, estremeceu de ciúme, como se lhe houvessem roubado a mais querida jóia, trincou o lábio num assomo de desespero, e abanou-se com fúria.

— Vocês não estão sentindo calor! — disse para Adelaide e o secretário.

— Muitíssimo! — exclamou Furtado.

— Muito — respondeu Adelaide.

— Oh, eu estou sufocada! Se houvesse água por aqui...

— Arranja-se — tranqüilizou o marido. — Queres?

— Quero, sim, tem paciência...

E quando ele afastou-se muito cavalheiro, para trazer água:

— Viste o Santa Quitéria? — perguntou D. Branca à amiga.

— Não.

— Que pena! Pois ia de braço...

— Com quem?

— Com uma velha, com uma mulher horrivelmente feia...

— Sim.

O Santa Quitéria, um visconde, um homem tão elegante!

— É para você ver o que são os homens.

— Não, que há homem de muito bom gosto! Eu não creio que o visconde esteja cego...

— Exigências de ocasião, coitado! ele até acha quase todas as mulheres feias... Pelo menos já o ouvi dizer.

— E, mas lá ia com unia coruja!

Adelaide achou graça no epíteto e, sem desviar os olhos da onda de gente que se aglomerava no cais, respondeu com um sorriso em que se lia toda a tristeza de uma alma ingênua. Não podia esquecer o imperador com a sua longa barba muito branca, uma névoa no olhar, inclinado para frente, caminhando devagar, como quem já está marchando para a sepultura... Tinha os olhos úmidos ainda e ficava-lhe dentro d'alma uma piedade imensa, uma ternura por aquele velho tão diferente do que ela imaginava...

Um servente aproximou-se com uma bandeja e água para as duas senhoras.

Furtado vinha com um riso de profunda ironia nos lábios.

— Este mundo! este mundo!...

— Que é? — perguntou D. Branca olhando o secretário.

— Adivinha, se és capaz!

— Eu não...

E Furtado cruzou os braços em atitude de misteriosa surpresa.

— Olhem que a vida é uma comédia!...

— Explica-te, homem! — tornou D. Branca, muito inquieta já.

Adelaide tinha uma interrogação curiosa nos olhos.

— O Condicional, Branca, o Dr. Condicional, sabes? o grande republicano, o inimigo dos reis, o poeta da Ode à Coroa — todo empertigado, assistindo ao embarque do imperador, entre os amigos da casa imperial! — exclamou o secretário num tom de comiseração.

— Ora!...

— Não achas um cinismo, uma pouca-vergonha?

— Está você a se preocupar com um idiota!

— Porque, minha mulher, inda outro dia ouvi o Manhães dizer horrores de Pedro Segundo e agora vejo-o aumentando o número dos monarquistas!..

— O Evaristo é que havia de se rir muito — disse Adelaide.

— E com razão, com toda a razão!

— Vamo-nos daqui — interrompeu D. Branca.

— Vamos... vamos — concordou Furtado. — Este mundo! este mundo velho!

Já não havia quase ninguém no Arsenal e fora, na rua. Tudo nos cais da cidade, no Pharoux, no Arsenal de Guerra, na Lapa, na Glória, no Flamengo... até Botafogo, para assistir à saída do Gironde. Viam-se grupos de homens e senhoras no alto dos morros, à luz quente do sol. Prolongava-se o cordão negro dos espectadores até os confins da Praia Vermelha — extensa linha de curiosos que abandonavam o trabalho, as oficinas, as repartições na ânsia de ver as últimas despedidas do monarca.

Com as primeiras salvas de bordo explodiu o sentimentalismo ingênuo do povo. Aqueles tiros ritmados, um após outro, e logo todo o confuso estourar da artilharia dos navios de guerra e das fortalezas, numa balbúrdia de mágica, eram como o último adeus, a um general que se enterra.

Às salvas corresponderam ruidosas aclamações: — Viôôô! Viôôô!... Viôôô!

E o Gironde singrava barra fora, numa inconsciência de ave que solta o vôo para a morte... O olhar da multidão acompanhou-o longe, como se o quisesse levar até o fim da travessia.

Mas a distância encobriu tudo numa névoa... desde esse dia ficou entregue o governo à Sua Alteza Imperial Regente D. Isabel, herdeira do trono.

— Agora é mais fácil arranjar uma comissão à Europa — dizia Furtado à esposa.

— Por quê?

— Já te não lembras de que a princesa é nossa comadre?

— Sim... sim... Qual Comissão à Europa! Estamos muito bem no Brasil!

— Isso hei de ir custe o que custar! Morrer sem ir à Europa? Não. Morrer depois de ter gozado...

— Bem, mas eu fico...

— Pois fica; é como quiseres.

— O Sr. Furtado deseja tanto sair do Brasil? — perguntou Adelaide entre admirada e risonha.

— Não é sair do Brasil — é passear, viajar, gozar um pouquinho as decantadas belezas do Velho Mundo.

— Eu irei depois, quando já o conheceres — tornou D. Branca.

— Pois sim, pois sim — irás depois...

Nesse andar chegaram a Botafogo. Evaristo lia, repoltreado na espreguiçadeira, um panfleto abolicionista que trouxera da rua. Ao som da campainha, fechou o volume e correu ao balaústre da escada.

Primeiro entraram as duas senhoras; Furtado vinha atrás falando ao criado: se não esquecera de dar alpiste ao canário? se alguém o procurara?...

O bacharel, com o livro na mão, rompeu de cima:

— Embarcou, o homem?

— Oh!... já vieste?

— Há mais de uma hora. Então, como se foram?

— Perfeitamente bem.

— O homem sempre embarcou?

—- Por que não havia de embarcar?

— Está salva a pátria! — exclamou Evaristo, interrompendo o secretário — Deus o leve, que de monarcas não precisa o Brasil.

— Evaristo! — ralhou Adelaide, encaminhando-se para o segundo andar.

— Boa tarde, Sr. Evaristo! — cumprimentou D. Branca.

— Boa tarde, excelentíssima! Estimo que se tenha divertido...

— Ao contrário...

As duas famílias recolheram-se aos seus aposentos.

O bacharel estava de bom humor àquela hora e tanto bastou para que Adelaide exultasse. Abraçaram-se no alto da escada, ela muito meiga, com a face incendida de calor, as luvas amarrotadas, ele todo em roupa branca, o cabelo penteado, em chinelos de couro.

— Então?

— Então é que vi o homem.

— Viste-o?

— Vi... Não te conto nada... quase chorei...

— O que, minha mulher!

— Quase chorei, sim. Tive pena do velho, coitado!...

— Oh, coitadinha, quase chorou!... Faltou o quase, não é assim? E... faltou o quase... E depois? Não houve quem te socorresse com uma mamadeira?

— Aí vem o Evaristo!

— Sim... uma mulher que chora por causa do imperador!...

— ... Mostra que tem coração...

— Mostra que não tem juízo!

— Mas eu não te disse que chorei...

— Faltou o quase...

Houve um rápido silêncio, enquanto Evaristo acendia um cigarro. As janelas estavam abertas, como de ordinário. Lá longe os morros e o cemitério.

— Então, viste o homem!

Adelaide despia-se defronte do toucador. O leito de casal, o mesmo que Furtado comprara no dia da instalação do bacharel, saltava aos olhos, enchendo quase todo o aposento. Ouvia-se o tique-taque de um relógio invisível. Cheirava a perfumarias, como se se estivesse num armazém de modas.

— Ah!... sabes quem foi ao embarque?

— ?

— O Dr. Condicional...

— O Valdevino Manhães?

— O Valdevino Manhães...

— História, Adelaide!

— Palavra! O Sr. Furtado viu-o numa roda de homens.

— É possível? — exclamou Evaristo com um ar incrédulo, fitando a esposa.

— Não juro, porque não vi, mas o Sr. Furtado...

— O Furtado viu?

— Disse-nos ele...

— Ora, eis aí o que são republicanos no Brasil! Por isso é que os monarquistas riem de nós, por isso é que ninguém toma a sério a República!

Adelaide continuava a se despir tranqüilamente, numa exibição de ombros e de braços, repuxando o colete, as saias, até ficar em camisa diante do marido que lhe não estranhava a ingênua familiaridade. Ninguém, senão ele, podia vê-la naqueles trajos simples, quase primitivos, que a outro homem seriam escandalosos. Ninguém, porque o sobrado era alto e as janelas davam exatamente para o deserto panorama das montanhas e para a longínqua tristeza de um cemitério. Demais era tão grande o calor, tão abafada a atmosfera naquele dia, que impossível se tornava a uma pessoa que chega da rua fechar-se num quarto.

Oh, como lhe arrepiava a pele o contacto dos ombros, nus e dos braços nus com o estreito ambiente, onde sempre corriam as primeiras brisas da tarde! Uma idéia pousou-lhe no cérebro, traiçoeira como uma mosca: se Furtado a visse em camisa de renda, o colo descoberto, os pés nus no tapete?... Se, em vez do bacharel, aquele homem que ali se achava diante dela fosse o secretário?... Oh, não... nem era bom pensar... Ele, que ousava dar-lhe um beijo na mão...

— Realmente! — suspirou Evaristo.

Adelaide olhou-o, já esquecida de Valdevino Manhães.

— Que é?...

— O Condicional, filha, o Condicional renunciando às suas idéias políticas! Um homem que vociferava contra o imperador e a monarquia!

E Evaristo, indignado, pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, com o panfleto abolicionista na mão. Ultimamente encasquetara-se-lhe, como uma idéia fixa, o programa republicano: abolir a escravidão e declarar a república brasileira, o governo do povo pelo povo... Um dos membros do partido já o convidara para sócio e ele se comprometera a tomar parte ativa nas reuniões do clube. Daí a sua indignação contra o Valdevino que também apregoava entusiasmo pelas idéias liberais de Saldanha Marinho e de Quintino Bocaiúva. Não lhe saía da cabeça o poeta da Ode à Monarquia! Como é que um homem tão depressa abjura das suas crenças? Como é que se explicava essa pouca-vergonha de um escritor público?

Sentou-se, afinal, e continuou a interrompida leitura do panfleto. Daí a pouquinho vieram avisar que a sopa estava na mesa.