Til/I/IV

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Cerca de uma légua abaixo da confluência do Atibaia com o Piracicaba, e à margem deste último rio, estava situada a Fazenda das Palmas.

Ficava no seio de uma bela floresta virgem, porventura a mais vasta e frondosa, das que então contava a província de São Paulo, e foram convertidas a ferro e fogo em campos de cultura. Daquela que borda as margens do Piracicaba, e vai morrer nos campos de Ipu, ainda restam grandes matas, cortadas de roças e cafezais. Mas dificilmente se encontram já aqueles gigantes da selva brasileira, cujos troncos enormes deram as grandes canoas, que serviram à exploração de Mato-Grosso. Daí partiam pelo caminho d'água as expedições que os arrojados paulistas levavam às regiões desconhecidas do Cuiabá, descortinando o deserto, e rasgando as entranhas da terra virgem, para arrancar-lhe as fezes, que o mundo chama ouro, e comunga como a verdadeira hóstia.

No ano de 1846 era de recente fundação a Fazenda das Palmas, que Luís Galvão, seu proprietário, recebera de herança paterna, ainda nas condições de simples situação, com um velho casebre de caipira, dous cafezais e alguma pouca roça.

Tinha Luís Galvão o gênio empreendedor e gosto para a lavoura; casando com a filha de um capitalista de Campinas, que lhe trouxe em dote algumas dezenas de contos de réis, além do crédito, pôde ele, dando alas à sua atividade, fundar uma importante fazenda, que a muitos respeitos servia de norma e escola ao agricultor brasileiro.

Ao passo que se ia adiantando a lavra das terras, erguia-se na chapada fronteira ao rio uma bela casa de morada em dous lances abarracados, com um pequeno mirante no centro, sobreposto à larga portada; esta abria para o patamal, ladrilhado, de uma pequena escada de seis degraus, que descia ao terreiro.

Formava o edifício uma face da vasta quadra, onde se foram levantando sucessivamente casas para o administrador e feitores, senzalas para os escravos, o engenho de cana, a fábrica do café, tulhas de feijão e milho, além de outros acessórios do grande estabelecimento rural, que veio a tornar-se depois a Fazenda das Palmas.

Do terreiro da casa partia o caminho principal da fazenda, que se estendia pelo espigão da colina e bifurcava-se de espaço a espaço para serventia das várias jeiras de lavoura. O ramo principal, fugindo os alagados, e descrevendo uma grande curva, ia entroncar-se, a meia légua de Santa Bárbara, na estrada geral de Constituição a Campinas.

No ponto em que esse carreador transpunha o valado principal da fazenda, aí fechado também por uma tronqueira, um cavaleiro embuçado, oculto no carrasco, levou ambas as mãos à boca e imitou o canto do curiau, soltando um apito longo e cheio; o mesmo que ouvira Inhá.

Imediatamente o próximo canavial ondulou, e surdiu na ourela um negro moço, com o corpo nu até à cintura e a camisa atada aos quadris à guisa de tanga. Os lanhos das faces indicavam a casta monjola do africano, em cujo rosto se desenhava a astúcia do gambá e alguma cousa do focinho desse animal.

— Quem és tu? perguntou o cavaleiro vendo o negro dirigir-se a ele.

— Monjolo, meu branco. Faustino mandou dizer a senhor que tudo se arranjou como ele prometeu.

— Mas por que não veio ele mesmo?

— Pois branco não vê que ele está lá em casa ocupado!

— Pedaço dum tratante!

— Gente desconfia; então essa cambada de pajes e crioulos, que é mesmo da pele do cão.

— O patife quer trapacear!

— Branco está de orelha em pé; pois olha, Monjolo é negro de bem; quando ele dá sua palavra e aperta dedo mindinho, está acabado, é como rabo de macaco: quebra, mas não solta galho, por nada desta vida, nem que arrebente.

— Anda lá, bruto, desembucha duma vez o recado, que não estou para aturar-te.

— Ixe!... disse o preto fazendo um momo de pouco caso.

— Falas ou não!

— Que é que senhor quer saber?

— O diabo sempre vai hoje à vila?

— Vai, meu branco; o diabo vai, mas não é capaz de cair no inferno, não!

— Alguém o há de empurrar. A que horas sai ele da fazenda? É mesmo de manhã?

— Não tarda. Cavalo já está selado; capanga só vai um, mofino como quê! Os outros, Faustino arranjou, como branco sabe.

— Então só leva duas pessoas?

— Duas só, sim senhor. Paje e capanga.

— Está bom; toma lá, para o pito, disse o cavaleiro atirando-lhe um pataco de prata. Agora vê se vais dar com a língua nos dentes.

— Eh!... Monjolo mesmo!... Branco não conhece este negrinho da carepa, não!

Já não o ouviu o embuçado que, dando rédeas ao animal, afastou-se na direção da estrada geral.

Era acidentado o terreno, que atravessava esse caminho, cortado no maciço de uma mata virgem, tão exuberante, que todos os anos fechava com os renovos da vegetação a picada aberta no inverno. O solo aí, como em toda a cercania, cobre-se de uma crosta da argila roxa, afamada na província por sua espantosa fertilidade. Em verdade, quando se deixa Campinas, e a pata dos animais começa a triturar essa terra ferruginosa, tão fácil de converter-se em pó sutilíssimo, como em profundo tremedal, a natureza muda de aspecto; arreia-se de galas, e aos campos tão monótonos, embora célebres, de Piratininga, sucedem os bosques frondosos de Piracicaba.

Não obstante ser o caminho em toda a sua extensão, desde a extrema da fazenda, coberto e sombrio, havia contudo um lugar, cujo torvo aspecto correspondia ao terror supersticioso que inspirava e à sinistra reputação que adquirira.

Pouco além da interseção de outra picada, coleava o caminho algum tempo entre marachões cobertos de arvoredo, e por fim metendo-se pela garganta de um rochedo escabroso, descia em zigue-zagues para remontar a oposta rampa de profunda grota. Como se não bastasse essa conformação cavernosa do terreno, a vegetação nutrida pelo húmus vigoroso que as enxurradas depositavam nesses barrocais, exuberava sua maior pujança, e frondeava as árvores seculares, embastindo as sebes de verdura que vestiam os grossos troncos, e lastravam pelos penhascos.

Da gente da vizinhança era conhecido aquele lugar por Ave-Maria, talvez de não passar alguém ali, sem romper-lhe dos lábios trêmulos aquela imprecação de susto. Nem sempre fora com eficácia invocada a divina padroeira, pois a tradição conservava o nome das vítimas, que aí haviam sucumbido.

Nenhum sítio em verdade se encontrara tão azado para uma emboscada. Ali oculto, um sicário conseguiria a salvo dar conta de uma comitiva, sem que os companheiros se pudessem mutuamente defender, nem mesmo aperceber-se da sorte que os aguardava, tal era a estreiteza do sinuoso desfiladeiro.

Dizia a gente do lugar que ouvia-se na azinhaga funesta um incessante gemido de agonia; e não faltava quem o atribuísse às almas penadas dos infelizes que aí se finavam insepultos e devorados pelos urubus.