Til/I/V

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Ao sumir-se na espessura, Jão Fera voltou o rosto e por entre a basta ramagem esteve a contemplar o vulto esbelto da menina.

Ao passo que se engolfava nessa fascinação, ia-se operando a transfiguração completa de sua fisionomia.

O perfil adunco e chanfrado, que revestia a beleza feroz e sinistra do abutre, embotou a rispidez, saturando-se de uma bruteza alvar. Intumesceram-se as faces, pouco antes crispadas pela cerração habitual das maxilas, e tomou a tez um tom fouveiro, indício da ebulição do sangue a ferver-lhe em bolhas no coração.

As fulvas pupilas que se encovavam pelas têmporas, como tigres nas furnas, saltaram das órbitas, dilatadas por um fluido espesso que tinha a fosforescência felina. De ordinário avincava-lhe a fronte uma ruga saliente, que depois de fender-lhe o sobrolho, partia-se em duas plicas profundas como gilvazes, a lhe cortarem o rosto. A temulência da paixão injetando os músculos, e insuflando as narinas, apagou todos aqueles sulcos rasgados pela sanha; e até os lábios sempre cosidos à feição de uma cicatriz, agora túrgidos arregaçavam, mostrando pela estreita comissura os dentes agudos.

Assim o aspecto do homem ralado por uma sede intensa ou calcinado pela chama violenta que ardia interiormente, afinal tomara a fisionomia da sensualidade brutal, onde como na brama do tigre, ressumbrava a ferocidade do amor.

Oculto no mato, foi o capanga, qual ao arrasto de uma cadeia, seguindo maquinalmente Inhá, através do campo. Muitas vezes, na absorção em que ia, mostrou-se a descoberto, não o tendo percebido os dous companheiros, por estarem com a atenção presa na conversa.

Quando, porém, a menina sentou-se na tronqueira, voltada para o lado donde viera, aconteceu vê-lo na ocasião de atravessar a nesga de campina, que separava dous bosques. Turbado com aquele acidente, irritado por se ter mostrado naquele instante, Jão Fera rompeu o encanto da fascinação que o atava, e embrenhou-se na floresta.

Era justamente a ponto, que ao longe estrugira o assobio do curiau, repercutindo pelos recessos da mata e algares das barrancas.

Estugando o passo, chegou o capanga à brenha cerrada, que ensombrava a azinhaga da Ave-Maria. Ali encostado ao tronco de uma árvore, com os braços cruzados e a cabeça fincada ao peito, submergiu-se nas profundezas daquela alma, que devia ter cavernas tremendas e insondáveis abismos.

— Amanhã quando souber, pensará que fui eu!...

Murmurando estas palavras, uma expressão de angústia derramou-se pelo semblante do facínora, que se confrangeu, como se uma tenaz lhe estivesse a triturar o coração. Que medonha era a dor nessa natureza sanguinária, que se apascentava de cruezas e homicídios!... O eu humano é como sua besta: manso, quando frugal; rábido, se o fazem carnívoro; por isso em cada sentimento há o transunto da história de nossa alma.

Naquele momento Jão Fera sofria a suma de todos os sofrimentos que derramara em seu caminho; de todas as ânsias, que sua mão levantara. Tudo nesse homem, a dor como a alegria, a raiva como o amor, a gula como a embriaguez, revestia a natureza da fera; tinha fauce para devorar, e garras que lhe dilaceravam o chão da alma, como a pata da suçuarana escarva a terra no arremessar do pulo.

Durou rápido trato essa agonia moral; e não podia prolongar-se que o rijo coração, vaso frágil para contê-la, embora acrisolado ao fogo das paixões tempestuosas, ia estalar.

Abalou-se o corpo vigoroso com um forte calafrio, que sacudiu-lhe a terrível obsessão; e o facínora surgiu outra vez audaz e ameaçador. Rebatendo o chapéu com um revés da mão, descobriu a fronte rija e alta, que se escalvava entre uma floresta de cabelos negros. Outra vez se descarnou a sua fisionomia com a expressão dura, ríspida e incisiva, que lhe dava a aparência de um perfil talhado em gume de aço.

— É sina! proferiu no tom implacável do fanatismo.

Com pouco reboou nas barrocas da azinhaga o tropel de um cavalo. Jão Fera acostumado a distinguir nos rumores da mata as várias notas que formavam a surdina da floresta, inclinou o ouvido à escuta. Não se enganara; o animal vinha naquela direção e aproximava-se rapidamente.

Galgando então pelos socalcos do penhasco, com o apoio de uma grossa enrediça do imbê, que descia dos galhos de um prócero jequitibá, alcançou o tope do rochedo, donde se descortinava entre o rendado das folhas uma volta do caminho.

Não tardou que apontasse ali, para sumir-se logo na curva da estrada, um cavaleiro.

Era o mesmo rebuçado que falava pouco antes com Monjolo. Orçava pelos cinquenta anos; barroso da cara que lhe cobria uma barba ruiva e áspera como as cerdas da capivara; de mediana estatura e excessivamente magro; vinha trajado ao uso da terra: chapéu mineiro de feltro pardo, sob o qual via-se o lenço de alcobaça que lhe servia de rebuço; ponche de pano azul forrado de baetilha, com a gola de belbute levantada; botas de bezerro armadas de chilenas de prata.

Os lábios do capanga, onde flutuava um sorriso de desprezo, contraíram-se logo, e arrojou-se o corpo à frente para não desprender a vista assanhada do cavaleiro, que sumira-se na curva do caminho. Desceu rápido ao rés da azinhaga, por onde breve meteu-se o desconhecido.

Mal que assomou este no alto da rampa, a pupila injetada do capanga cravou-se-lhe no semblante, e o atraía como a garra do abutre; a par, os dedos da mão direita afagavam com certa volúpia feroce o longo cabo da faca, passada à cinta, e já a meio fora da bainha.

Não parecia o rebuçado muito senhor de si e tranquilo de ânimo; pois lançava a um e outro lado olhos inquietos e investigadores, à feição de quem temia e perscrutava algum perigo oculto naquelas brenhas que o cercavam. Alguma vez hesitou, como incerto da resolução que devia tomar; olhou para trás, ou enfrestou pela vereda que serpejava diante dele vistas impacientes. Dir-se-ia que vacilava, entre continuar e retroceder; ou quiçá julgava-se transviado, e procurava afirmar-se no caminho para ele desconhecido.

De chofre empinou-se o cavalo, arremessando o homem sobre a escarpa da barranca, donde rolou ao trilho, como um corpo inerte.