Til/I/VIII
Passou desapercebido para as pessoas da família, o acidente do café entornado.
D. Ermelinda parecia preocupada; sem tomar parte no almoço, acompanhava os movimentos do marido com uma inquietação nervosa, que procurava reprimir, porém ressumbrava-lhe da fisionomia assustadiça. Não se difundiu, portanto, em sua expressão o tédio, que ordinariamente lhe inspiravam, quando assistia à mesa, aqueles desasos de Brás.
O marido estava a partir para Campinas, onde ia demorar-se três dias a fim de concluir alguns negócios, que talvez o levassem a São Paulo. Apesar do hábito dessas e até de maiores ausências, a senhora não podia eximir-se à repugnância que lhe causava semelhante viagem, e empregava todos os esforços para desmanchá-la.
Mas Luís Galvão não era paulista debalde; se ele se deixara imbuir da influência da mulher naquela parte da existência do homem que pertence exclusivamente à esposa, e onde, portanto, aceitava como legítima a supremacia feminina, tinha contudo sua ponta de birra, e quando, em matéria de lavoura e negócio, ou cousa que não entendia com o regime doméstico, se decidia por um alvitre, não havia demovê-lo.
Por causa da viagem se tinha posto o almoço tão cedo, quando o costume era às 9 horas, para dar tempo aos longos passeios que D. Ermelinda recomendava aos filhos, e de que ela muitas vezes dava exemplo com o marido. Ainda nisso havia uma inovação aos usos da terra, onde moça rica, filha de fazendeiro, não anda a pé, a não ser na vila.
Luís Galvão comia com boa disposição e, de vez em quando, replicava ao olhar inquieto da mulher com um sorriso e um gesto de carinhoso motejo, o que chamava aos lábios da elegante senhora uma fugaz enfloração, logo apagada. Quanto a Linda e Afonso, apesar da hora, só para fazer companhia ao pai debicavam com o apetite, pronto sempre, da juventude.
Nenhum destes fez reparo no desastre acontecido ao Brás, naturalmente porque semelhantes desaguisados eram tão frequentes, que já se contava com eles. E então buscavam todos modos de disfarçar, não só para não contrariar ainda mais D. Ermelinda, como para evitar as represálias de que servia-se o pequeno contra qualquer ralho ou motejo.
Dessa vez ficou na garfada à perna da Rosa, que lá se foi coxeando para a camarinha, examinar o arranhão. Entanto o Brás, rachando a meio um pão, e metendo em cada bolso uma banda, levantava-se da mesa para ganhar o quintal pela porta da cozinha.
Repetindo Luís Galvão o seu amoroso remoque à inquietação da mulher, esta não se conteve, que não lhe replicasse.
— Tem razão de zombar, Luís! Devo parecer-lhe uma criança; e eu mesma não cesso de acusar-me por esta tolice; mas nem por isso consigo livrar-me dos receios que me assaltam.
— Disposição em que você está, Ermelinda. Que perigo pode haver em um passeio que estou a fazer constantemente, e até mais longe e com maior demora?
— Tudo isto me tenho eu dito cem vezes desde ontem, e não sossego. Nunca fui sujeita a cismas e caprichos, você bem o sabe; entretanto sinto hoje um desassossego, um aperto de coração.
— É nervoso.
— Se não houvesse uma causa real para isso, podia ser; mas há. Essas esperas, que andam deitando por aí, das quais ainda ontem falou o administrador...
— E por que hão de ser elas para mim? Não tenho inimigos, e a ninguém faço mal, para que se deem ao trabalho de livrarem-se de mim.
— Papai é tão estimado! disse Linda; e a voz doce como um favo de mel arpejou a nota maviosa da ternura filial.
— Quem se atreveria?...
O altivo desafio, esboçado nestas palavras, partiu dos lábios de Afonso que alçou a fronte já naturalmente erguida, com um assomo bizarro.
— São os bons, meus filhos, que estão mais sujeitos ao ódio dos maus, os quais se conhecem e ajudam entre si.
— Lembre-se, Ermelinda, que depois das esperas tenho andado por esses caminhos. No dia em que o administrador veio contar-lhe a tal novidade e assustá-la à toa, eu fui a Piracicaba, e duas vezes passei na Ave-Maria. Disse o Pereira depois que vira dous vultos no mato; entretanto nada me aconteceu. Se havia espera, não era decerto para mim.
Pareceu D. Ermelinda ceder à força desse argumento, e ao tom persuasivo do marido; mas o pressentimento a pungia, e o coração perscrutava objeções para resistir à razão.
— E esse homem, que foi ontem visto pelos pretos, atravessando a fazenda? Dizem que a desgraça o acompanha, pois ele deixa, por onde passa, um rasto de sangue. Por isso deram-lhe o nome de fera!
— Outra prova de que são imaginários os seus receios, Ermelinda. João Bugre ou Jão, como eu o chamava em menino, a exemplo dos outros, foi criado em nossa casa; era afilhado de meu pai, e até chegou a servir-me de camarada. Depois tornou-se um perverso; porém lembra-se dos benefícios que recebeu de nossa família, e, embora se mostrasse altaneiro comigo, acredito que me respeita.
— Essa gente não é capaz de gratidão, Luís; ao contrário, o benefício os humilha, e eles revoltam-se contra o que chamam uma injustiça do mundo.
— O Bugre é uma fera, na verdade; contam-se dele as maiores atrocidades; porém esse homem de más entranhas tem um resto de consciência e probidade. Não há exemplo de haver atirado a alguém por trás do pau, ou de emboscada: ataca sempre de frente, expondo-se ao perigo. O bacamarte só lhe serve para defender-se, quando o perseguem. Também nunca ouvi falar de roubo ou furto que cometesse, e isso apesar de viver ele pelos matos, constantemente acossado.
— E ainda não foi preso um criminoso de tantas mortes?
— Não é por falta de diligência. Andam-lhe à pista desde muito tempo; e até, se não me engano, ouvi que tinham prometido um prêmio a quem desse cabo dele; mas até agora não se animaram, tal é o terror que inspira.
— Bem razão tenho eu, portanto, de assustar-me, quando um facinoroso desses aparece dentro da fazenda: talvez ande ele rondando a nossa casa.
— Não se lembra disso; mas, se tivesse a audácia, ele ou outro, acharia a casa bem guardada. Demais, aqui lhe deixo um homem para defendê-la. Não é verdade, Afonso?
— Sem dúvida, meu pai. Na sua ausência nada acontecerá!
— Não é por mim que receio, Luís; antes fosse; não estaria tão inquieta, disse a senhora com um leve reproche.
— Nesse caso eu não partiria! respondeu o marido galanteando.
— Então fique!
— Sim, papai, fique! Dê esse gosto a mamãe, disse Linda.
— Também a senhora não quer que eu vá? Olhe, não se arrependa! replicou o pai com um gesto de zombeteira ameaça. Levo uma certa encomenda de vestidos e enfeites, que só eu sei escolher.
A moça ficou enleada entre a esperança do presente e o desejo da mãe.
— Papai compraria de outra vez.
— E a festa? perguntou o pai sorrindo.
A pêndula soou oito horas.