Til/I/VII
No terreiro da Fazenda das Palmas, junto à escada da casa de morada, os animais de montaria mordiam os freios de prata, raspando o chão com a ponta do casco.
Tinha-os pelas rédeas um mulato de libré cor de pinhão, avivada de preto e escarlate, com botas envernizadas de canhão amarelo, e chapéu de oleado a meia copa. Recostado ao socalco do patamal com ares de capadócio, o pajem fazia sinais para uma janela, onde aparecia a miúdo a trunfa riçada de uma crioula.
Vinha chegando-se com a proverbial pachorra paulistana um camarada, que mastigava o último bocado do almoço, e preparava o cigarro de palha. Aceso o pito e tomada a primeira fumaça, passou revista primeiro nos arreios do baio e da rosilha, depois nos cascos; e não achando cousa de maior, foi contudo, para mostrar a sua valia, aqui apertando um loro, ali afrouxando uma cilha e repuxando uma correia da cabeçada.
— Esta corja de pajens, dizia a rir para o mulato em forma de cumprimento, só serve de emporcalhar a casa. Ficam velhos e não aprendem.
— Corja é súcia, Sô Mandu. Olhe lá! rebateu o pajem.
Nisto apontou a mucama à janela.
— Falta muito ainda, Rosa? perguntou o mulato.
— Já está acabando. Não tem tempo de ir mais à roça, ver Florência, não, rapaz.
— Ai, que dor de canela!
— Ixe! Quem conta com pajem!
— Assim, menina! exclamou o camarada. Tem aqui uma barra para seu pimpão.
— Sai daí! chasqueou o mulato. Jabuticabinha de sinhá é lá para beiço de caipira? Vá comer sua broa de milho, homem, e deixe de partes.
A mucama soltou uma risada, e desapareceu de repente a um puxão que de dentro lhe deu o pajem Faustino.
— Assim é que serve a mesa?
— Salta, moleque! Menos confiança comigo.
— Hô xente! Moleque como nós. Tenho muita xibança nisso. Não é como esse mestiço do inferno, cor de burro; mas você não tem vergonha mesmo de vir engraçar com ele na janela.
— Sinhá está ouvindo! disse a rapariga em tom de ameaça.
— Melhor pra mim! Eu cá não me embaraço.
Este curto diálogo travou-se na saleta da entrada, onde o Faustino veio pilhar a mucama, que escapulira do serviço da mesa para se faceirar com o mulato. Apanhada em flagrante, a Rosa, muito senhora de si tornou à sala de jantar, onde ninguém dera pela sua falta.
Ali, estava posta para o almoço a larga mesa de jacarandá, coberta com alva toalha de linho adamascado; e rodeada naquele momento, como de ordinário, por cinco pessoas.
A cabeceira, contra os costumes da terra, ocupava-a a dona da casa, senhora de 38 anos, e não formosa; porém tão prendada de inata elegância, que seus traços e toda sua pessoa tomava um particular realce. Se não tinha bonitos olhos, ninguém sabia olhar como ela; a boca sem primores de forma, enflorava-se com o sorriso inteligente e a palavra brilhante.
Filha de um capitalista de Campinas, D. Ermelinda recebera em um colégio inglês da Corte educação esmerada, que desenvolveu a natural distinção de seu espírito. Recolhida à sua província, teria sem dúvida perdido ao atrito dos costumes do interior aquele tom fidalgo, se fosse ele um artifício do hábito, em vez de um dom, que era, da natureza, o qual o exemplo não fizera senão polir.
À expansão dessa natureza delicada, ao perfume de bom gosto que derramava em torno de si, deve-se atribuir a ausência de cor local que se notava, se não em toda casa, ao menos na família. Aquela esfera que recebia a influência imediata da dona da casa, não era paulista, mas fluminense; e não fluminense pura, senão retocada já pelo apuro escocês e pela graça francesa.
Aos verdadeiros paulistas da têmpera antiga, de antes quebrar que torcer, aos grandes turrões, nutridos de lombinho de porco e couve crua, não deixava de escandalizar esse enxerto carioca no meio das suas matas, e por isso, já desconfiados de natureza, mostravam-se espantadiços, quando entravam na casa das Palmas.
À direita de D. Ermelinda estava o dono da casa, Luís Galvão, cujo aspecto franco e jovial granjeava a simpatia ao primeiro acesso. Era um bonito homem, de fisionomia inteligente e regular estatura, que revelava em sua compostura digna a consciência do próprio mérito.
Do comedimento do modo prazenteiro, bem como do alinho do trajo, transpirava o influxo da suprema distinção do espírito de sua mulher. Naturezas há que têm a força de imprimirem o seu cunho naqueles que as cercam; outras se apoderam da índole alheia insinuando-se nela pelo afeto, impregnando-a de sua essência.
A de D. Ermelinda era destas últimas. Fora por uma lenta filtração moral, que ela conseguira transmitir ao marido um toque do seu garbo nativo, embotando as asperezas de uma educação grosseira, e extirpando hábitos da infância descurada.
À esquerda da mãe ficava o filho, como à direita do pai a filha, ambos na flor da juventude. Chamava-se o primeiro Afonso, como o avô. À segunda tratavam todos pelo apelido, senão diminutivo, de Linda, formado das últimas sílabas de seu nome, que era o mesmo da mãe.
Finalmente, no segundo lugar da esquerda defronte da moça via-se um menino de 15 anos de idade, cuja figura destoava de todo o ponto, no quadro daquela família, que respirava a graça e a inteligência.
Era feio, e não só isso, porém mal amanhado e descomposto em seus gestos. Tinha um ar pasmo que embotava-lhe a fisionomia; e da pupila baça coava-se um olhar morno, a divagar pelo espaço com expressão indiferente e parva.
Curvado como um arco sobre a mesa, com as vestes em desalinho e os cabelos revoltos, abraçava uma xícara de almoço, que lhe ficava abaixo do queixo; e escancarando boca enorme para sorver de um bocado a grande broa de milho, ensopada no café, mastigava a tenra massa a fortes dentadas e sofregamente como se estivesse rilhando um couro.
Percebia-se logo que a influência de D. Ermelinda não penetrara nesse membro enfezado da família, refratário a todo o preceito de ordem e arranjo. Por isso a dona da casa, quando presidia a mesa de seu lugar de honra, observando o serviço e ocupando-se de todos, não transpunha aquele ângulo, onde sentava-se o pequeno. Se acontecia a seu olhar, circulando a sala, passar por aí, cegava-se e fugia com desgosto.
Naquele momento acabava o menino de fazer uma das costumadas estrepolias, virando com o queixo a xícara, que entornou-lhe todo o café no peito da camisa.
— Hô, hô, hô!... fez ele com um riso gutural e apatetado.
Acudiu a Rosa, para enxugar-lhe com o guardanapo a cara, pois ele não se mexia.
— Que vergonha! murmurou a crioula em meia voz. Marmanjo deste tamanho não sabe comer na mesa.
Um raio maligno lampejou na pupila baça do pequeno.
— Nhô Brás! gritou a rapariga tomada de dor.
O menino por baixo da mesa fisgara-lhe o garfo na coxa.