Til/II/XII
Percebendo que a fadiga abatia as forças de Brás, suspendeu Berta a lição.
— Descanse, agora!
Ajoelhado como estava, deixou-se Brás cair sentado sobre os calcanhares; de corpo bambo, os braços pendurados, e o queixo caído, quedou-se o estafermo em pasmatório, com os olhos dormidos no gentil semblante de Berta.
Ocupada com sua tarefa, já não lhe dava atenção a menina, cujo pensamento andava agora enleado em outras cismas.
Nisso apareceu Miguel, que voltava afinal, e, procurando Inhá pela casa, veio sair na porta do outão.
— Sempre chegou?... disse Berta a rir.
— Não faço falta, respondeu Miguel com um motejo tristonho.
— Mecê está hoje tão macambúzio, nhô Miguel! replicou a menina galhofando com a intenção de desanuviar o semblante do moço.
— Nem sempre faz bom tempo! Às vezes amanhece a gente com uma cara, que mete medo aos outros, e os obriga a se esconderem! Não é assim?
Com a alusão de Miguel atalhou-se Inhá, enrubescendo de leve, pois logo acudiu-lhe a sua graciosa petulância:
— Ora que caçador!... exclamou a rir. Não deu com a pista!...
— Não quis, e para não agoniá-la.
— A mim?
— Cuida então que eu não percebi desde muito tempo? Quando você vai ver a Zana, não gosta que ninguém a acompanhe!
— Ah! descobriu isso? Está muito adiantado! tornou Berta com um modo agastado, e concentrando-se em sua tarefa.
— Zangou-se?
— Eu não ando espiando o que os outros fazem!
— Não faça caso do que eu disse, Inhá! Desculpe!... tornou Miguel enleado e aflito.
Berta, de todo absorta no conserto da roupa, parecia ter esquecido a presença do colaço, o qual a contemplava com um enlevo apaixonado, que rompia dentre a expressão abatida de sua figura. Pesaroso por ter ofendido a menina, e acanhado com a presença dela, queria falar, e não achava palavra para desvanecer o enfado, que havia causado.
Brás, que desde a chegada de Miguel se agachara sobre as patas como um cão de fila, rosnava surdamente, saltando com o olhar do semblante de Berta ao vulto de Miguel, como se esperasse um gesto da senhora para filar a presa e abocanhá-la.
Os agastamentos de Berta eram cóleras de colibri, que tão depressa belisca e arrufa-se, como cintila aos raios do sol, feito um rubim celeste.
A cabeça inclinada sobre a costura ocultava-lhe o rosto que Miguel supunha fechado ainda pela zanga; quando já dos cantinhos da boca lhe estava borbulhando um sorriso zombeteiro que lhe salpicava as faces de petulante malícia.
Relanceando uma olhadela de soslaio, percebeu o pesar de Miguel e arrependeu-se de se haver agastado com ele; mas conteve-se para fazer-lhe pirraça, e gozar por algum tempo ainda do enleio do moço.
Desde alguns instantes ouviam-se uns guinchozinhos, como de preá, mas abafados; e apesar da curiosidade de saber donde partiam, a menina não levantava a cabeça.
— Aqui está o que eu lhe trouxe, Inhá, animou-se a dizer Miguel tristemente.
Metendo a mão por baixo do pala, tirou uma linda cutia, que tinha as patas amarradas para não fugir.
Berta apenas erguera um canto da pálpebra; mas foi bastante. De um relance pulou junto de Miguel, arrebatou-lhe a cutia, e conchegando-a ao seio, começou a alisar-lhe a pelúcia dourada, amimando-a com os dengosos requebros e a garrulice carinhosa em que se expande a inexaurível sensibilidade da mulher, por tudo que é frágil, mimoso e delicado como ela.
Passado o primeiro afago, a travessa repartiu com Miguel as meiguices, não só por gratidão do mimo que lhe dera, como para mostrar que já não conservava a menor queixa dele.
— Coitadinha! exclamou ao ver que o animal estava com as patas ligadas por uma fita de crautá.
— Olhe que foge! disse Miguel impedindo a menina de desdar o laço.
— Então você há de fazer uma casinha para ela! Tão bonitinha! Que pelo macio; parece um veludo. E os olhos? Tão lindos! Eu conheço uns olhos ternos assim! Não se lembra?
— Se me lembro! atalhou Miguel com um tremor na voz: Pois não os estou vendo?
Com sua volubilidade natural, já estava Berta longe da pergunta que fizera, e, toda embebida de novo com a cutia, sentara-se para agasalhá-la ao colo.
— Onde apanhou?
Teve Miguel de referir então a longa história de como fora o animal apanhado, os incidentes que tinham acompanhado a caçada, e muitas particularidades que Inhá desejava saber; se a linda cutia ainda tinha mãe; se já era casada, e deixara no mato algum filhinho; pois neste caso queria soltá-la.
Tranquilizou-a Miguel, asseverando que a cutia era solteirinha e vivia só, por terem as raposas acabado toda a família, não tardando que lhe fizessem o mesmo a ela, pelo que era até um benefício retê-la cativa.
— Ai, coitadinha! exclamou Berta condoída, e conchegando outra vez o animalzinho ao seio. Veja lá, Miguel, você há de fazer a casinha para ela, com porta e janela, e também um coche com seu bebedouro. E depressa que é para eu dar a Linda!...
Ao tempo que voltava Miguel o rosto para esconder a expressão de pesar que o tinha subitamente invadido, um grito de espanto partia dos lábios de Berta.
Rápida como uma seta, a cutia fuzilou no ar e sumiu-se pelo mato. O Brás de quem os dous se haviam esquecido, se aproximara rojando pelo chão como um reptil, e sem que o percebessem, acocorado junto à parede, gorgotava um riso sarcástico e manhoso.
Precipitou-se Miguel para castigar o idiota, que ele adivinhava ser o autor da pirraça; mas Berta, que lhe viu o ímpeto, se interpôs a tempo.
— Deixe, Miguel! exclamou ela; e voltando-se para o alarve, atirou-lhe apenas esta palavra: — Lesma!
Como um novilho ferido pelo aguilhão, o idiota arremeteu pelo campo e desapareceu.
— Se você não fizesse tão pouco caso do que eu lhe dei, aquele brutinho não se havia de atrever.
— Oh! Miguel, pois queria mais?
— Dando aos outros em vez de guardar para si?
— Mas era para Linda! atalhou Berta com ingenuidade. Ela havia de ficar tão contente, sabendo que vinha de você!
Concentrou-se Miguel em um violento esforço, que lhe desmaiou o brilho dos grandes olhos e a cor das faces.
— É tempo de acabar com este gracejo, Inhá. Além de minha mãe, eu lhe juro, que só a você quero bem; mas você não se importa comigo; portanto já sei o que devo fazer. Não hei de aborrecê-la mais.