Til/III/I

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Em 1826, a mais bonita moça que havia nas vizinhanças de Santa Bárbara, era Besita.

Quando ia à missa aos domingos e dias de guarda, todos se voltavam na rua para vê-la passar. Festa em que ela não aparecesse, perdia toda a graça, até os velhos achavam desenxabida a patuscada.

Filho de fazendeiro, que tinha a mostrar bonita mula arreada de prataria, lá passava duas e três vezes por dia defronte da casa da moça, que morava em companhia do pai, quase ao sair do povoado, bem perto de nhá Tudinha.

Entre os mais assíduos, nenhum levava as lampas a Luís Galvão, que era naquela época um chibante mocetão de vinte anos. Raro dia, não vinha ele ao povoado e não achava pretexto para apear-se em casa do velho Guedes, pai de Besita.

Apesar da roda que lhe faziam tantos rapazes e da balda que há em terra pequena de bisbilhotar tudo, não aparecera o menor mexerico a respeito da moça, e quando se falava dela era para gabar o seu modo sério e o recato que sabia guardar com todos, o que mais admirava por ter perdido a mãe ainda criança, e viver quase sobre si, pois o velho mal podia com seus achaques.

Nesse tempo servia de camarada a Luís Galvão um rapaz de pouco menos idade, que o acompanhava constantemente em passeios e viagens. Era Jão, a quem os outros se tinham habituado a chamar de Bugre, pela tez bronzeada, que distinguia aquela raça indígena.

Esse rapaz fora criado nos Pilões, antiga fazenda de Afonso Galvão, pai de Luís; e aí viera ter de um modo singular e misterioso.

Um dia, no mais ardente da calma, quando os enxadeiros descansam na roça à sombra das árvores esperando o jantar, e o resto da gente recolhe às habitações, acaso chegando o velho fazendeiro à janela viu parado no terreiro deserto um sendeiro sobre o qual se encarapitava uma figurinha que à primeira vista pareceu-lhe um macaco.

Logo, porém, reconheceu que era uma criança, de pouco mais de um ano. Apesar do natural pacato do rocim causava espanto que o pequerrucho se pudesse conservar em cima dele, escanchado na cernelha e agarrado às crinas.

— Que quer você, pirralho? perguntou o velho Galvão.

Volveu a criança para o fazendeiro uns olhos negros como carbúnculos, e ficou a mira-lo com o ingênuo pasmo da infância. Como se verificou depois, o menino não falava ainda, talvez por ser tarde nele o desenvolvimento dessa faculdade.

Nunca se pode saber donde saíra aquela criança; como chegara até o terreiro sem darem por ela; se viera só ou alguém a trouxera. Também foram inúteis as pesquisas que se fizeram para descobrir os pais, ou ao menos algum indício de quem poderiam ser.

Como de costume, apareceram várias conjeturas e invenções, cada qual mais engenhosa. Uma velha, muito versada no Novo Testamento, afirmou que esse menino era o Anticristo e o sendeiro a própria besta do Apocalipse, descrita por São João. Outra jurava ser o caçula do diabo cocho que se metera na pele do bugrezinho, e andava fazendo estrepolias pelo mundo.

À parte essas e outras caraminholas de que os visionários encheram a cabeça da gente ignorante, correu entre as pessoas sisudas uma versão, que ninguém soube donde proveio, e naturalmente formou-se de uma misteriosa agregação de circunstâncias, como sucede sempre às rapsódias populares.

Houvera grande cheia no rio. Uma família de gente pobre ia passar o vau, que faltou-lhes. A mulher sumiu-se, o marido correu a salva-la, desapareceram ambos arrebatados pela correnteza, ou tragados por algum perau. Então o sendeiro, que levava o menino, e cujo cabresto soltara o infeliz pai no impulso de salvar a companheira, recuou, e seguindo pela margem foi ter à fazenda. A tronqueira estava aberta naturalmente; e assim pode chegar ao terreiro, onde o descobriram.

Era essa a verdade ou mera suposição? Ninguém tinha presenciado o sinistro, nem sabia-se em toda a vizinhança, de gente que houvesse desaparecido. Mas todos afirmavam o fato, que era aceito como ponto de fé.

Foi o bugrezinho batizado com o nome de João, sendo o padrinho o Afonso Galvão. As velhas que sustentavam haver partes do diabo no pequeno, não se deram por vencidas; e asseguravam que, durante o sacramento, o manhoso do inimigo para livrar-se da estola e d’água benta, saltara mais que depressa e se escondera na pança do velho fazendeiro.

Tornou-se Jão o companheiro de brinquedos de Luís; e desde logo mostrou a têmpera do caráter que só mais tarde se havia de formar. Já em criança era robusto, valente, mas taciturno e sombrio; quando a molecada, que fazia roda ao senhor moço, o inquizilava, a ele Jão, ia-os sovando em regra, apesar de serem muitos e mais velhos.

Crescendo, veio a ser o camarada de Luís, a quem servia com dedicação que sob aparência ríspida e seca, era sincera e infalível. As vezes que salvara a vida ao jovem patrão, já não se contavam. Arriscar-se estouvadamente o moço fazendeiro, e salva-lo com fria intrepidez o rapaz, era fato comezinho e trivial na existência de ambos.

Assim nem Luís já agradecia aquilo, que passava entre eles por um serviço tão fácil como de arrear-lhe o animal; nem Jão se julgava com o menor título ao reconhecimento de seu patrão, por ter feito uma coisa, que lhe fava a si mesmo prazer e satisfação.

Luís Galvão era magano e fragueiro; gostava de bulir com as raparigas e pregar peças aos caipiras. Daí resultavam constantes desavenças, em que Jão, para defender o moço, tinha necessidade de desancar os assaltantes, pagando em muitas ocasiões com a pele as aventuras galantes do jovem patrão.

Uma vez travou-se tão renhida a luta, que o Bugre prostrou morto a seus pés um arrieiro com quem Luís Galvão puxara briga, oferecendo vinte patacões pela mula de estimação em que ele montava, a fim de fazer torresmos do couro. Irritou-se o tropeiro por tal forma com o sarcasmo, que teria com certeza morto ao filho do fazendeiro, se Jão não lhe arrostasse a fúria.

Com algum dinheiro tapou-se a boca aos parentes do morto e acomodou-se tudo; de modo que o Bugre continuou a acompanhar ao patrão em suas correrias.

Foi pouco depois desse incidente que Luís Galvão, passando uma tarde por Santa Bárbara, viu Besita à janela e ficou imediatamente caído por ela.