Til/III/II
Tinha Jão por Besita uma dessas paixões veementes que se afrontam com o impossível e arcam para subjugá-lo.
As pujanças de sua alma se revoltaram contra a adoração fervida e respeitosa que o trazia submisso; mas o caráter indomável estava enervado pela fascinação que exercia em natureza tão ardente a sedutora beleza da moça.
Quantas vezes não pensou que bastava-lhe um momento de resolução para arrebatar a mulher a quem amava, e leva-la ao deserto onde ele não se envergonharia de seu amor, e talvez sentisse orgulho de o inspirar tão possante e extremoso.
Mas ele que não temia o mundo e zombava dos perigos, assustava-se só com a idéia de um ressentimento de Besita; e não era preciso mais para espancar de seu espírito a tentação que em si produziam os encantos da menina.
Imagine-se, pois, o que pensou o Bugre quando percebeu que Luís Galvão gostava de Besita.
No dia em que teve certeza do fato, o provocador das rixas foi ele, que brigou sem descanso e com desespero. Pelo modo por que se expunha aos golpes dos adversários, parecia obstinado em procurar a morte, que entretanto fugia caprichosamente diante dele.
Quando não achou mais com quem tirar bulha, embriagou-se, ele que até então dera provas de sóbrio; e tal foi a moafa, que todo o dia seguinte não deu acordo de si, e esteve atirado na estrada onde escapou de ser esmagado por um carro de bois.
Essa crise fez remissão. Recobrando-se do primeiro e violento abalo que sofrera, achou o rapaz dentro de si, no coração revolto, certa calma e consolo.
Se alguém, que não ele, tinha de ser amado por Besita, fosse-o Luís Galvão de quem era amigo; outro qualquer morreria às suas mão; assim o jurara.
Adivinhou Besita as duas afeições de que era objeto, e com a intuição da mulher amada, conheceu o contraste profundo que havia entre ambas. A paixão do Bugre era submissa, a do moço imperiosa; na primeira ressumbrava a abnegação, a segunda ardia em desejos.
Sentiu ela também que ia amar, senão amava já a Luís Galvão; e por isso mesmo prevendo os perigos de sua ternura por um homem capaz de tudo ousar, tornou-se fria e constrangida em relação a ele, enquanto mostrava-se expansiva e afetuosa com o Bugre. Sabia que deste nada tinha a recear nem mesmo um olhar impertinente, pois todo o emprenho dele era ocultar sua ardente dedicação. Assim podia gozar desse inocente prazer de ver-se adorada mudamente como uma santa.
Em princípio contentou-se Luís Galvão com as visitas que sob qualquer pretexto fazia ao velho Guedes, e os encontros que tinha com Besita na missa ou em casa de nhá Tudinha. De dia em dia porém foi-se tornando mais exigente; e chegou a alcançar da moça algumas entrevistas no quintal ao escurecer.
Besita concentrava todas as duas forçar para resistir; considerando-se irremediavelmente perdida, buscava em torno de si um apoio que a amparasse e não achava. Seu pai era um pobre velho, que via no namoro de Luís uma boa fortuna. Não tinha em falta de sua mãe uma amiga, que a defendesse contra os próprios impulsos de seu coração.
Nestas circunstâncias, apareceu em Santa Bárbara um moço chamado Ribeiro, que vinha arrecadar alguns bens da herança de um tio. Vendo Besita, apaixonarase por ela e a pedira em casamento ao velho Guedes.
— O Luís é melhor! disse o pai à filha, comunicando-lhe o pedido.
Besita tornou-se pálida e respondeu com a voz trêmula:
— Mas Luís não se casará comigo!
— Tu pensas?
— Tenho a certeza.
— Pois havemos de ver.
À tarde apareceu Luís Galvão. Contou-lhe o Guedes a pretensão do Ribeiro, e pediu-lhe conselho. O filho do fazendeiro demudou-se; mas recobrando-se sugeriu dúvidas sobre os haveres do pretendente, alegando ser pessoa desconhecida no lugar.
Esperou o Guedes quinze dias, decorridos eles, disse à filha:
— Tu adivinhaste, É um peralta!... Aceita a mão do Ribeiro, e serás feliz.
— O que meu pai ordenar, eu o farei de boa vontade! respondeu a menina com doce resignação.
Aceitava ela esse casamento como um sacrifício, para salvar sua virtude, embora à custa dos sonhos fagueiros de sua alma.
Espalhada a notícia do casamento, Jão sabendo-a teve um cruel sossôbro, como se fora ele próprio a quem a moça repudiasse para se dar a outro. Tão identificados estavam em sua alma os dois amantes, que ele já não os separava em seu afeto; e envolvia Luís na adoração que tinha por Besita, e esta na amizade que voltava àquele.
A primeira vez que depois disso o capanga viu a moça à janela, voltou o rosto para não lhe falar.
— Está mal comigo, Jão? disse Besita com o modo afetuoso que lhe era habitual.
Deitou-lhe o bugre um olhar duro, e pregando a aba do chapéu na testa com um murro, não tugiu.
— Que lhe fiz eu, para não me falar?
— Mecê não vai se casar com o Ribeiro?
— É por isso?
— E nhô Luís?
Besita fitou o rapaz nos seus grandes olhos, onde brilhavam aljôfares de lágrimas, e mostrou-lhe um cravo que tinha nos cabelos.
— Se você, Jão, atirasse na beira da estrada, como uma coisa à toa, esta flor, podia se queixar porque outro a apanhasse para si?
— Então ele não quer bem a Nhazinha?
— Quer, mas como tem querido a outras antes de mim: não mereço ser sua mulher!
Partiu-se Jão a galope e foi ter em casa com o patrão:
— Nhô Luís, ela lhe quer bem!... case com ela!
— Qual, Jão!... O velho não admite!
Não quis ouvir mais o Bugre; arrecadou em um lenço o que tinha de seu, tão pouco era, e despediu-se do patrão com estas palavras:
— Pode procurar outro camarada; eu não conto mais com o senhor.
Foram baldados os esforços que fez Luís Galvão para retê-lo. O Bugre ficou inabalável na resolução que tomara em um minuto, de deixar a casa onde fora acolhido e vivera desde a infância.
Pouco tempo depois efetuou-se o casamento de Besita com o Ribeiro; mas este ao sair da igreja recebeu uma carta, que o chamava a toda a pressa para Itu para salvar a maior parte da herança, que o tio confiara a um negociante daquela vila, hoje cidade.
Partiu o Ribeiro no dia seguinte para voltar logo. Sua mulher foi viver na casa da fazendola, que o trouxera a Santa Bárbara, na intenção de vende-la; e agora devia servir-lhe de morada ao menos nos primeiros tempos do casamento.