Til/III/VIII

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Uma cena espantosa acabava de passar na alcova.

Com o rumor que fizera Berta ao bater a porta, na ocasião de entrar, a cascavel alçou a cabeça, e descobrindo o vulto da menina, desdobrou-se para escorregar ao chão.

Apenas tocou o soalho, enroscou-se rapidamente sobre si, na sombra que embaixo do leito projetava o cortinado, e enristou o colo como um dardo inserido na seteira de uma torre e pronto para o arremesso. Ao mesmo tempo a cauda romba e curta, vibrada por uma crispação nervosa, batia no pavimento a primeira das três pancadas fatais que precedem o bote, chocalhando os cascavéis com a sinistra crepitação, que gela a medula ao mais destemido.

Assim com o bote armado, esperou o insidioso réptil se aproximasse o inimigo, para de um jacto cravar-lhe os dois croques terríveis que manam o sutil e mortífero veneno.

Quando Berta, aproveitando-se do descuido de Afonso, conseguira fechar a porta, imediatamente correu à cama a fim de tomar o chapéu que vira sobre as almofadas, e fugir pela janela, travessura que ela tinha em criança feito muitas vezes, e que se propunha a realizar agora antes de dar tempo ao moço para atalhar-lhe o caminho.

No meio do aposento, parou a menina de repente com um involuntário estremecimento. Ouvira o som áspero de um guizo estrídulo, tangido rapidamente; e sentiu logo um enjôo produzido por acre exalação que se derramara no ar.

Atraídos por um impulso misterioso, volveram-se os olhos de Berta, e caíram sobre a boicininga, cujas pupilas fulvas, fulguravam na sombra, jorrando em ondas uma luz fosforescente, como as chamas sulfúreas, que se levantam do seio da terra vulcânica e retalham o negrume da noite.

A fauce hiante, sangüínea, se eriçava com duas serrilhas de dentes aduncos e retorcidos como garras, e no meio dela agitava-se a língua negra, híspida, dardejante, cuja ponta bífida ressaltava como impulsa por oculta mola de dentro de si mesma; pois servia-lhe de estojo a parte inferior.

Foi nesse momento, ao avista a cobra que o grito de terror escapou-se da boca de Berta. Mas às perguntas de Linda e de Afonso, se ainda as ouviu confusamente, não teve ela mais voz para responder-lhes que seus lábios estavam gelados.

Encontrando-se o olhar da serpente e o seu, cravaram-se de modo, ou antes se imbuíram e penetraram tanto um no outro, que não pode mais a vontade separa-los e romper o vínculo poderoso. Parecia que entre a brilhante pupila negra da menina e a lívida retina da cascavel se estabelecera uma corrente de luz na qual fazia-se o fluxo e refluxo das centelhas elétricas.

A mesma cambraia que retraiu o dorso flexuoso da boicininga espasmou o talhe grácil de Berta, como se uma força única regera a vida nessas duas organizações. Aí estava produzida ao vivo a misteriosa identificação da mulher e da serpente, que deu tema ao poético mito da tentação.

Lentamente a cascavel afrouxava os anéis em que enroscara o toro, até que se espreguiçou ao longo pelo pavimento, pousando lânguida sobre a tábua a cabeça chanfrada. Recolheu-se a língua dentro da bainha, e esta desapareceu por baixo do focinho, que se abatera flacidamente sobre a mandíbula.

Toda a força vital da boicininga se concentrava no olhar, donde coava-se uma flama trepida, por entre as titilações da membrana sutil, que reveste a retina da serpente. Encadeada por esse fio luminoso ao olhar cintilante de Berta, o medonho réptil parecia como deslumbrado por súbito lampejo.

Também a menina sofria a repercussão dessa influência.

As pernas trêmulas vacilavam; invadida por súbito desfalecimento, vergou ao peso do próprio corpo, e convolveu-se como a campânula que frange as pétalas para cerrar o cálice e pender murcha sobre a haste.

Assim deixou-se Berta cair de joelhos e derreando sobre os calcanhares, foi preciso apoiar-se com a mão esquerda no soalho, a fim de suster o busto, que uma força misteriosa impelia avante, como para prostra-la de bruços e colear-lhe o talhe.

Ainda assim não resistia de todo àquela poderosa atração. Com o pescoço distendido, a cabeça lançada à frente, mostrava a ânsia de arrastar-se para vencer a distância que a separava da cascavel.

O desmaio da moça fora a princípio cheio de indizível angústia; apoderou-se dela um incompreensível pavor; queria fugir, e sentia-se elada a si mesma como a um poste de dor. Dir-se-ia que duas forças divergentes, duas naturezas em reação, lutavam dentro de sua alma e a dilaceravam, disputando-lhe o ser, como aves de rapina que brigam pelo cibo.

Uma dessas naturezas abatia-lhe a fronte, que a outra porfiava em manter excelsa; e estorcia-lhe o corpo feito para a estatura nobre e senhoril. Umas vezes, presa da estranha vertigem, via-se em pé, diante de si mesma, imperiosa e cheia de desdém, a esmagar sua própria cabeça. Outras vezes transformada em vípera, eleva-se pelo colo da menina gentil, que ela era, e conchegava-se ao tépido calor de um seio virgem.

Afinal, com um movimento hirto estendeu Berta o braço direito para a cascavel, aberta a mão e crispados os dedos, no ímpeto de tocar o rosto do réptil, ao qual tornou-se mais viva a trepidação do olhar.

Confrangendo-se, a boicininga propulsou de leve a cabeça, como se arrastara um fio invisível, e foi lentamente rojando para Berta. Nesse instante havia Afonso enxergado o réptil; e se precipitara horrorizado para despedaçar a porta,

Entretanto Berta, à proporção que avançava para ela a boicininga, ia-se retraindo; erigia-se o busto, e ressurgia-lhe n’alma essa elação que a desfere ao céu e que imprime na criatura humana a majestade do porte. Assumia a menina outra vez a fina têmpera de seu caráter altivo e inflexível.

Quando a cabeça da cascavel roçou-lhe a ponta dos dedos, um choque íntimo percutiu-lhe o corpo, e estorceu o toro da serpente. Mas passou instantaneamente; o réptil elando-se pelo braço mimoso, veio cingir-lhe as espáduas, formando colar.

Com o toque desse brando serpear sentiu Berta a doçura de uma carícia; a boicininga titilava de volúpia ao tépido calor da cútis acetinada; e escondendo a monstruosa cabeça na conchinha da mão que a menina recolhera ao seio, caiu no letargo.