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Tipos da Atualidade/II

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O teatro representa uma sala com portas ao fundo, duas portas laterais. Um sofá, espelhos, etc. É noite.

CENA I

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CARLOS e MARIQUINHAS

Ao subir do pano ouve-se a música dentro tocar uma quadrilha que continua durante todo o diálogo. Carlos e Mariquinhas entram de braço pelo fundo e passeiam pela cena.

MARIQUINHAS - Já sabes que o Senhor Gasparino casou-se, Carlos?

CARLOS - Não sabia.

MARIQUINHAS - Pois é exato: casou-se há dois meses com uma velha muito rica.

CARLOS - São casamentos da época.

MARIQUINHAS - E talvez que eles sejam bem felizes.

CARLOS - Oh! não repitas, Mariquinhas: conheço bastante tua alma para que te julgue capaz de partilhar de tais idéias. Pensas que a felicidade consiste na suntuosidade e no luxo?

MARIQUINHAS - Não, Carlos. Mas minha mãe, infelizmente, assim o entende e eu não sei o que sinto desde que esse maldito Barão apareceu em nossa casa: o coração vaticina-me que esse homem há de ser a causa da nossa desgraça; é viúvo, rico e sem filhos; e minha mãe já me deu a entender que era ele o único que poderia fazer a minha felicidade.

CARLOS - A tua felicidade!...

MARIQUINHAS - Sim, Carlos. Ultimamente o Senhor Gasparino tornou-se o seu amigo inseparável e talvez insuflado por minha mãe representa entre mim e esse homem o papel mais ridículo que pode representar um moço de educação.

CARLOS - E falas de educação, Mariquinhas? Tens razão. O Senhor Gasparino é um moço bem educado, que passa por ter mesmo as mais belas qualidades: freqüenta os salões... intermedeia nas conversações algumas frases estudadas do francês, enfim... é um moço bem educado. Inculca-se 1o Oficial da Secretaria da Justiça e só fala em grandezas quando não passa de um simples praticante, cuja ocupação é fumar charutos e copiar ofícios. Mora no Hotel dos Estrangeiros; janta e almoça com diplomatas, diz ele, mas entretanto anda em contínua guerra com os cabeleireiros e alfaiates da rua do Ouvidor. A sua vida é um mistério. Mas a sociedade também pouco se importa com isso: acolhe-o com os braços abertos em seu seio e considera-o mesmo um dos seus filhos prediletos.

MARIQUINHAS - Mas minha mãe o recebeu em sua casa na persuasão de que ele era um moço distinto.

CARLOS - Oh! o que eu não contesto é que ele seja distinto, até bem distinto!

MARIQUINHAS - Não conversemos sobre futilidades, Carlos; deixemos o Senhor Gasparino. Estamos a sós. Estes momentos são preciosos: falemos de nós só, de nós e do nosso futuro. (Senta-se juntamente com Carlos.) Não ignoras que este baile foi dado por minha mãe ao Barão da Cutia: minha mãe tem se desfeito em obséquios para com esse homem, leva constantemente a falar na minha educação e nas minhas prendas e é raro o dia em que não mande o carro à cidade para que ele venha passar as tardes conosco. Eu conheço perfeitamente as intenções e julgo que esta comédia, onde, bem contra minha vontade, estou representando um papel tão importante, vai terminar como todas pelo casamento. Assim pois, só tu me poderás salvar antes que isso se realize. Jura-me, Carlos, em nome do nosso amor, que hás de cumprir um pedido que vou fazer-te.

CARLOS - Em nome do nosso amor, Mariquinhas, não duvidarei fazer os maiores sacrifícios. Dize.

MARIQUINHAS - Pois bem, pede-me quanto antes em casamento à minha mãe.

CARLOS - E julgas que o meu pedido seria atendido! Queres matar a única esperança que me acalenta, a única ilusão que me resta?

MARIQUINHAS - Eu juntarei os meus rogos aos teus, Carlos, e ela nos atenderá.

CARLOS - Acostumado desde criança aos revezes, este golpe seria o mais doloroso para mim. Deixa-me portanto viver neste doce engano porque esta ilusão é toda minha vida. Órfão de pai e mãe, desde a infância fui confiado aos cuidados de um tio bastante rico, que, incumbindo-se da minha educação, não poupou sacrifícios para sustentar-me na carreira que hoje trilho: foi um pai carinhoso e desvelado que a Providência me deparou e a quem devo tudo neste mundo. Até aqui só tenho tido lágrimas e dores, Mariquinhas, poupa-me o martírio: deixa-me viver nesta ilusão.

MARIQUINHAS - Mas, Carlos, teu tio é rico.. . (Mariquinhas levanta-se e indo à direita encontra-se com Gasparino que entra com uma capa ao braço ao lado de Porfíria.)

CENA II

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OS MESMOS, GASPARINO e PORFÍRIA

MARIQUINHAS (Dando um abraço e um beijo em Porfíria.) - Chegaram tão tarde...

GASPARINO (Tirando o relógio.) - São dez horas, é a melhor hora de entrar-se num salão: além disso a menina esteve arranjando o seu toalete. (Olhando para Carlos, diz à parte.) Sempre este homem.

MARIQUINHAS - Não quer ir ao toalete arranjar os seus cabelos e os seus enfeites, Dona Porfíria?

PORFÍRIA - Ai... Estou muito fatigada: os balanços do carro incomodaram-me excessivamente; quero descansar um pouco. Trouxeste o meu vidrinho de água de Colônia, Gasparino?

GASPARINO - Esqueci-me, deixei-o no boudoir.

PORFÍRIA - Fizeste mal, menino, tu sabes que sou achacada dos nervos e a menor emoção incomoda-me.

MARIQUINHAS (À parte.) - E diz ela que tem emoções.

PORFÍRIA - Dá-me a capa, Gasparino; estou um pouco suada e vem dali... daquela porta, uma correnteza de ar... que pode fazer-me mal.

GASPARINO - Não sejas criança, Porfíria, não vês que é uma brisa fagueira e saudável que sopra? Eu sou até de opinião que vás ao jardim respirar este ar, que há de fazer-te bem.

CARLOS (À parte.) - Que par tão elegante!

GASPARINO - Vai arranjar o teu toalete, menina. A Senhora Dona Ana de Lemos já deve estar à nossa espera. Aqui tens a tua capa. (Entrega a capa.) Eu vou passar um golpe de vista pelo salão.

PORFÍRIA - Estou às suas ordens, Dona Mariquinhas. (Mariquinhas e Porfíria saem pela esquerda.)

CENA III

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CARLOS e depois o BARÃO

CARLOS - São na realidade bem originais esses quadros da sociedade de hoje! Bem originais, palavra de honra. (Tira um charuto e vai acendê-lo.)

BARÃO (Entrando pelo fundo.) - Que calor, meu Deus! Se me demorasse naquela sala morria sufocado! Além disso, por meu caiporismo, meti os pés no vestido de uma moça e o reduzi a trapos: olhe que sou mesmo um desastrado!

CARLOS (À parte.) - É o Barão: desfrutemo-lo.

BARÃO - Oh! Doutor, por aqui: não dança?

CARLOS - Gosto mais de apreciar, senhor Barão.

BARÃO - Pois olhe: eu já dancei duas quadrilhas, mas, meu amigo, custaram-me caras, porque estou alagado em suor e com uma dor de cabeça... Oh! Que dor de cabeça, doutor.

CARLOS - Padece da cabeça, senhor Barão?

BARÃO - Muito, doutor, desde o tempo de casado: parece-me que isto já é crônico, é de família. Foi uma felicidade encontrá-lo:

se pudesse dar-me um remédio...

CARLOS - As dores são periódicas?

BARÃO - Se eu tenho - periódicos? não senhor. Apenas assinante do Correio Paulistano.

CARLOS (À parte.) - Que estúpido! (Alto.) Quero dizer: se essas dores aparecem todos os dias a uma hora certa e determinada.

BARÃO - Não senhor, passo muitas vezes sem tê-las; quase sempre aparecem quando faço um grande excesso; mas no meu tempo de casado eram constantes.

CARLOS - Deixe-me ver o seu pulso. (Apalpa o pulso.) Tenha a bondade de pôr a língua de fora. (Barão mostra a língua.) A sua língua não está boa. (A orquestra toca urna valsa.) Com licença, senhor Barão, vou ver se encontro um par de valsa. (Sai apressado pelo fundo.)

BARÃO - Ó doutor! Doutor!... - A sua língua não está boa! - E esta! Que diabo terá a minha língua. (Vai ao espelho e examina a língua.)

CENA IV

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OS MESMOS e GASPARINO

GASPARINO (Entrando pelo fundo.) - Quel domage! o par de valsa roeu-me a corda. (Reparando para Barão.) O que está fazendo aí, senhor Barão?

BARÃO (Mostrando a língua.) - Veja, (Pausa.) a minha língua não está boa!

GASPARINO - O que quer dizer isso?

BARÃO - Disse-me o Doutor Carlos!

GASPARINO - E Vossa Excelência acredita no que dizem os médicos?

BARÃO - Oh! se acredito, meu amigo! Tenho medo desta cidade; todos os dias leio o obituário no Jornal do Commercio e arrepio-me diante de uma fileira de pessoas que morrem de gastrites, fistrites, ou coisa que o valha; e de uma moléstia chamada idem, idem que eu não sei o que seja. Estou vendo que se a tal moléstia - idem - continua, vou-me embora quanto antes para São Paulo. Aquilo, sim, é que é terra; aparece de vez em quando lá um ou outro caso de bexigas ou de maletas, mas isso não quer dizer nada à vista do que por aqui há.

GASPARINO - Não pense nisso, senhor Barão, Vossa Excelência está sadio e robusto. Já andei à sua procura pela sala. Saiba que ainda não pude realizar o seu negócio: trago a carta aqui no bolso, mas ainda não me foi possível estar em um tête a tête com a menina. Eu entendo que Vossa Excelência deve dirigir-se a ela e declarar positivamente tudo o que sente; isto de cartas compromete; as palavras convencem mais. Olhe: eu nunca escrevi à minha cara Porfíria; pintei-lhe em uma ocasião a seus pés a paixão que me devorava com as cores as mais vivas, cantei ao piano um romance cheio de inspiração e de dor...

BARÃO - Então acha que eu devo... cantar!

GASPARINO - Não é de absoluta necessidade, senhor Barão; basta somente dizer que a ama, que a adora, etc., etc.

CENA V

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OS MESMOS e CARLOS

CARLOS (Aparecendo no fundo, à parte.) - Oh! O Barão e o Senhor Gasparino! Ouçamos o que eles dizem.

BARÃO - Mas, meu amigo, eu não sou o senhor, o senhor sabe essas palavras bonitas que eu não sei; ainda é moço, e pode, com facilidade, fazer uma declaração de amor.

CARLOS (À parte.) - Uma declaração de amor!

GASPARINO - Mas acredite, senhor Barão, que não há nada mais fácil do que uma declaração de amor.

BARÃO - Mas os meus cabelos brancos

GASPARINO - Oh! Mais ça n'est fait rien, quando ama-se loucamente uma menina, como Vossa Excelência ama a Dona Mariquinhas.

BARÃO - Se ela ao menos já tivesse lido a carta. . . Oh! é impossível que aquela carta que o senhor escreveu não lhe vá fazer cócegas no coração; olhe que está muito bem escrita! Aqueles dois versos do fim... não se lembra, Senhor Gasparino?

GASPARINO - Aquilo foi escrito ao correr da pena, senhor Barão: é impossível reter. Eu entendo que Vossa Excelência deve aproveitar esta noite para fazer a sua declaração. A Senhora Dona Ana de Lemos leva muito a bem, e até estima este casamento, como ela mesmo me deu a entender, e Vossa Excelência não deve perder esses momentos preciosos. Parece-me que este doutorzinho em medicina que freqüenta a casa faz a corte e pode tirar-lhe do lance.

BARÃO - Pois quê? esse pinga, esse pelintra que teve há pouco o desaforo de dizer que a minha língua não estava boa, arrasta a asa à menina?

CARLOS (À parte.) - São títulos que me honram, é um Barão quem mos dá.

GASPARINO - Eu não sei com certeza. Não lhe posso afiançar, mas pelo que tenho observado...

BARÃO - Então acha que eu devo fazer-lhe uma declaração?

GASPARINO - É minha opinião.

BARÃO - Mas é o diabo! O senhor não poderia ensinar-me algumas frases, ao menos só para começar, sim, porque o mais difícil é começar. Eu sou um pouco estúpido, reconheço.

GASPARINO - É modéstia de Vossa Excelência: faço justiça à sua reconhecida inteligência.

CARLOS (À parte.) - Oh! pois não!

GASPARINO - E se o coração não lhe manda aos lábios essas palavras fervorosas de paixão, é porque Vossa Excelência ama com delírio e a presença dessa menina faz-lhe perder a razão.

BARÃO - Oh! bonito! meu amigo, bonito! E assim que devo começar?

GASPARINO - Não, senhor Barão. Vossa Excelência deve começar, pintando esse fogo que o abrasa em segredo há três meses, que a ama como um insensato, que, para merecer-lhe um olhar, não duvidaria arriscar a sua glória e o seu futuro, que por um seu sorriso, daria a vida, e que para alcançar a sua mão trocaria as harmonias dos anjos e a mansão celeste pelas chamas e tormentos do inferno!

BARÃO - Bravo, meu amigo: bravíssimo! Continue, continue: eu lhe peço.

GASPARINO - Aí, necessariamente, ela há de dizer que os homens são uns perjuros, uns inconstantes...

BARÃO - Não é melhor fazermos isto ao vivo, Senhor Gasparino?

CARLOS (À parte.) - Ao vivo! O negócio complica-se.

BARÃO - Eu quero ficar com essas palavras bem gravadas na memória e é preciso que nem uma só delas se perca. Suponha o meu amigo que eu sou Dona Mariquinhas e que o senhor representa a minha pessoa.

GASPARINO - Está dito: como é para bem de Vossa Excelência... Sente-se nesta cadeira. (Oferece uma cadeira ao Barão que senta-se.) Eu fico deste lado. Lá vai: minha senhora. (Faz uma cortesia.) Aqui faz Vossa Excelência uma cortesia. Vamos ensaiar outra vez.

CARLOS (À parte.) - Se eu contar esta cena ninguém me acreditará!

GASPARINO - Minha senhora... (Faz uma cortesia e o Barão levantando-se corresponde.) Justamente: há três meses que um sentimento vago e indeciso preenche um vácuo que existia em meu coração: por toda a parte uma imagem de anjo, uma fada, uma visão de roupas brancas me persegue e preocupa-me o pensamento; quer acordado, quer em sonhos vejo esse anjo adejar sobre minha cabeça e apontar-me sorrindo para um céu de venturas e prazer: esse anjo, essa mulher, essa visão de roupas brancas (veja Vossa Excelência a expressão com que eu digo isto), essa visão sois vós.

BARÃO - Agora eu passo para o seu lugar e o senhor passa para o meu. (Trocam de lugares.) Mas eu não posso exprimir-me por outras palavras? É impossível decorar em tão pouco tempo toda esta trapalhada.

GASPARINO - Vossa Excelência pode usar de outros termos: basta que eles exprimam o que o seu coração sente. Cumpre porém acabar de joelhos: isto é o mais essencial.

BARÃO - Lá vai: eu te amo Mariquinhas, tu és uma fada de visões brancas; quero dizer, uma visão de fadas brancas... Oh! diabo, também não é: ora, isto também não é essencial! lá vai outra vez: amo-te, sim, amo-te e por que não hei de amar-te? Amo-te como amava a minha cara Inês, (Possuído, segura nas mãos de Gasparino e ajoelha a seus pés.) como a minha cara Inês, que lá repousa no Jazigo de Itu. (Entra Dona Ana de Lemos pela esquerda e pára admirada olhando para o Barão: Carlos desaparece.) Amo-te e adoro-te. (Gasparino olha para Dona Ana de Lemos e levanta-se.)

CENA VI

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OS MESMOS, D. ANA, menos CARLOS

D. ANA (À parte.) - O Barão aos pés do Senhor Gasparino! Um homem aos pés do outro! (Alto.) O que fazia, senhor Barão?

BARÃO (Ainda de joelhos.) - Nem sei, minha senhora. (Levanta-se.)

GASPARINO (Perturbado.) - O senhor Barão perguntava-me... Sim. .. (À parte.) Que escândalo! (Alto.) Com licença, minha senhora, eu vou à sala ver a minha Porfíria que deve estar ansiosa por mim. (Sai.)

CENA VII

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D. ANA e BARÃO

BARÃO (Fica perturbado sem saber o que há de dizer: pausa longa.) - Que tal tem achado Vossa Senhoria o baile?

D. ANA - A mim é que compete fazer essa pergunta, senhor Barão.

BARÃO (À parte.) - Bonito! já disse uma asneira.

D. ANA - Vossa Excelência tem-se divertido?

BARÃO - Alguma coisa, minha senhora, alguma coisa.

D. ANA - Tem dançado, já sei.

BARÃO - Duas quadrilhas, minha senhora.

D. ANA - Não valsa, senhor Barão?

BARÃO - Na minha idade, minha senhora! Já estou um pouco pesado; já fiz época. Uma ocasião valsei no baile da Concórdia em São Paulo com a filha do alferes Braga e ela deu a entender que eu não valsava mal: mas hoje já não sou o mesmo.

D. ANA - Já dançou com Mariquinhas, senhor Barão? Ela dança muito bem: é principalmente na dança onde ela prima. Aprendeu três meses no colégio e dança com muita graça.

BARÃO (À parte.) - Oh! ela fala-me desse anjinho: vou declarar-lhe tudo quanto sinto. (Alto.) A sua filha, minha senhora, a sua filha é... Sim... a sua filha dança bem. Mas eu tenho a cabeça em febre, sinto no peito.

D. ANA - Está incomodado, senhor Barão?

BARÃO (À parte.) - Lá vai tudo: ânimo e coragem. (Alto.) Oh! minha senhora eu a amo, eu amo uma fada, uma roupa de visões brancas, um anjo que me consome a existência. Esse anjo, essa mulher, essa visão sois vos.

D. ANA - Ai! será possível, senhor Barão? Tanta felicidade! tanta ventura! Oh! diga-me que tudo isto é um sonho! Tire-me desta ilusão!

BARÃO - Oh! não, não é um sonho: eu amo, sim, eu amo: por um seu sorriso daria as chamas do inferno e por um seu olhar as alegrias dos anjos. A vossos pés deposito duas fazendas.

D. ANA - Ah!

BARÃO - O meu sítio da Cutia...

D. ANA - Oh!

BARÃO - O meu sítio do Senhor Bom-Jesus de Parapora.

D. ANA - Ah!

BARÃO - A minha burra branca e o meu título de Barão. (D. Ana desmaia.) O que é isto, minha senhora? O que tem? (Tira um lenço e abana-lhe o rosto.) Minha senhora! Minha senhora!

D. ANA - Estou melhor; o prazer, a emoção... Aceito com reconhecimento tanto sacrifício, senhor Barão. Em troca de tudo isto só posso dar-lhe a minha mão.

BARÃO (À parte.) - A sua mão! O diabo da velha não me entendeu!

D. ANA (À parte.) - Oh! É um sonho! Eu o queria para genro e ele quer dar-me o doce título de esposa.

BARÃO - A sua mão! Então Vossa Senhoria não me compreendeu.

D. ANA - Pois não é da nossa união de que se trata, senhor Barão?

BARÃO - Vossa Senhoria entendeu mal! É a mão de sua filha, de Dona Mariquinhas que eu peço.

D. ANA - Oh! bem eu dizia que era um sonho; mas ainda sou muito feliz, senhor Barão, muito feliz: não mereci o doce nome de esposa, mas posso de ora em diante chamar-lhe meu adorado, meu idolatrado filho.

BARÃO - Oh! minha senhora, Vossa Senhoria enternece-me.

D. ANA (À parte.) - Duas fazendas! Um baronato! Realizou-se enfim o meu sonho dourado. (Alto.) Vou para a sala, senhor Barão, quero dar quanto antes a Mariquinhas esta agradável notícia.

BARÃO - Por ora nada lhe diga, minha senhora: ela pode desmaiar de prazer.

D. ANA - Vou quanto antes, senhor Barão. (À parte.) Duas fazendas! (Sai apressada pelo fundo.)

CENA VIII

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O BARÃO, MARIQUINHAS e PORFÍRIA

BARÃO (Respirando.) - Parece-me que estou livre de uma carga! Ora também o diabo não é tão feio como o pintam; pensei que fosse mais difícil. (Entra Mariquinhas com Porfíria pela esquerda.) Aí vem ela: que peixão!

PORFÍRIA (Cumprimentando o Barão.) - Senhor Barão... ainda não tive o prazer de vê-lo hoje, mas já perguntei por Vossa Excelência. (Senta-se juntamente com Mariquinhas depois desta fazer uma cortesia ao Barão.)

BARÃO - Estou aqui tomando fresco.

MARIQUINHAS - Como tem achado esta nossa reunião, Dona Porfíria?

PORFÍRIA - Bem agradável, Dona Mariquinhas. Mas infelizmente não a tenho apreciado como devia. Depois que me casei, qualquer coisinha é bastante para chocar-me os nervos. O calor das luzes, a orquestra, o murmúrio das salas, os balanços do carro, tudo isto incomoda-me extraordinariamente. Estou casada há dois meses e Gasparino não me tem deixado sossegar um só instante: leva-me a bailes, festas, teatros, passeios... enfim, é um motu contínuo. Eu já lhe tenho dito muitas vezes que não posso viver assim, mas ele sempre me responde que não é bonito para um rapaz casado aparecer em público sem a sua cara metade. Além disto obriga-me a andar todos os dias em casa espartilhada.

MARIQUINHAS - Mas isso há de fazer-lhe mal?

PORFÍRIA - Já tenho um vergão na cintura e ultimamente estou padecendo do estômago. Mas em compensação não podia acertar melhor na escolha de um marido: faz-me todas as vontades e não duvida mesmo sacrificar-se para realizar os meus menores caprichos. Foi um pouco extravagante em solteiro, é verdade, mas doravante espero que há de ser um bom pai de família.

BARÃO (À parte.) - Nem sequer olha para mim: olhem que é mesmo um peixão!

MARIQUINHAS - Deve ser um estado bem feliz o casamento, quando se encontra um bom marido.

BARÃO - Na verdade... bem feliz, minha senhora. Ao lado da minha Inês eu gozava momentos de verdadeira felicidade! (À parte.) Não me responde. Se aqui não estivesse esta maldita velha repetia-lhe a declaração.

MARIQUINHAS - Esteve ontem no Clube, Dona Porfíria? Dizem que a partida esteve muito concorrida.

PORFÍRIA - Estivemos no teatro - Gasparino quis ir ouvir a Norma. (A orquestra toca uma polca.)

MARIQUINHAS - Não vai dançar, Dona Porfíria?

PORFÍRIA - Tenho par para a quarta, mas julgo que tocam uma polca.

BARÃO (À parte.) - Vou pedir-lhe uma quadrilha. Esta velha empata-me as vasas. (Alto para Mariquinhas.) Tem par para esta quadrilha, Sinhá?

MARIQUINHAS - Já tenho, senhor Barão.

BARÃO - E para a seguinte?

MARIQUINHAS - Também já tenho, senhor Barão.

BARÃO - E para a outra?

MARIQUINHAS - Já tenho par para todas, senhor Barão.

BARÃO (À parte.) - Se ao menos ela já tivesse recebido a carta...

PORFÍRIA - Senhor Barão: dê-me o seu braço e vamos dar um passeio pela sala.

BARÃO (À parte.) - Que maldita velha! (Alto.) Pois não, minha senhora. (Dá o braço a Porfíria.)

PORFÍRIA - Não vem, Dona Mariquinhas?

MARIQUINHAS - Há de desculpar-me, Dona Porfíria. Tenho que dar algumas ordens lá dentro. (Porfíria e Barão saem.)

CENA IX

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MARIQUINHAS, só.

MARIQUINHAS - Não sei o que sinto quando estou ao pé deste homem: a sua figura, os seus gestos e o seu ar aparvalhado só me inspiram terror e repugnância. Para minha mãe talvez seja ele a felicidade que entrou em casa; para mim é o anúncio terrível de uma desgraça que pressinto. Paciência! Resta-me ao menos a esperança de que Carlos me salvará. (Vai ao espelho e arranja as flores do cabelo.)

CENA X

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A MESMA e GASPARINO

GASPARINO (Aparecendo no fundo, à parte.) - Afinal encontrei-a só. (Dirige-se para a cena: Mariquinhas volta-se.) Minha senhora: aflito procurava uma ocasião para dirigir-lhe a sós algumas palavras.

MARIQUINHAS - Sinto bastante não poder satisfazer-lhe, Senhor Gasparino: vou dançar.

GASPARINO - Oh! conceda-me ao menos um só instante, eu lhe suplico.

MARIQUINHAS - Tenha a bondade de dizer o que deseja.

GASPARINO - Quero cumprir uma missão santa e sublime de que me encarregaram.

MARIQUINHAS - Já lhe disse que vou dançar. (Quer sair: Gasparino toma-lhe a frente.)

GASPARINO - Eu lhe suplico, minha senhora: duas palavras apenas.

MARIQUINHAS - Pois bem, fale. (À parte.) Quero certificar-me de minhas suspeitas.

GASPARINO - Minha senhora: há três meses que um homem a adora como um insensato, que a idolatra, que fez de Vossa Excelência o único sonho de seus pensamentos e que para alcançar um sorriso de seus lábios seria capaz de dar a própria vida. Esse homem deposita aos pés de Vossa Excelência uma fortuna de 500 contos e um título pomposo e nobre que a colocará nos primeiros degraus da escala social.

MARIQUINHAS (Com altivez.) - E quem é esse homem?

GASPARINO - O Barão da Cutia, minha senhora.

MARIQUINHAS (À parte.) - Oh! bem me dizia o coração. (Alto.) E o senhor não fez mais do que representar um papel que lhe encomendaram? É na realidade um brilhante papel, Senhor Gasparino.

GASPARINO - É um serviço, minha senhora, que pode e até deve prestar todo o amigo dedicado e fiel.

MARIQUINHAS - Estou ciente, Senhor Gasparino: está cumprida a sua missão?

GASPARINO (Tirando uma carta do bolso.) - Pediu-me mais que lhe entregasse este - párfumé - e que dissesse a Vossa Excelência que, já que ele próprio não podia manifestar os seus sentimentos, confiava ao papel os arcanos de sua alma, pede-lhe resposta. (Entrega a carta.)

MARIQUINHAS (Rasgando a carta.) - Diga-lhe que a melhor resposta que lhe posso dar é esta.

GASPARINO - O que fez, minha senhora? Vossa Excelência rasgou uma página cheia de inspiração e de sentimento! Uma página que encerra as confissões de uma alma apaixonada! É preciso não ter coração! O Barão ama-a como um louco, adora-a e em nome de tudo que Vossa Excelência tem de mais caro e de mais santo, em nome de sua mãe, eu peço-lhe, suplico-lhe de joelhos (Ajoelhando-se.) que alimente essa paixão que pode levá-lo à sepultura.

CENA XI

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OS MESMOS, o BARÃO e PORFÍRIA

PORFÍRIA (Entrando de braço com o Barão pelo fundo.) - Ai... os meus nervos... eu morro... segure-me, senhor Barão. (Desmaia.)

BARÃO - Dona Porfíria! Dona Porfíria! (Sentando-a no sofá.)

GASPARINO (À parte.) - Bonito!... por esta não esperava eu.

PORFÍRIA - Os meus nervos... eu morro... ai! senhor Barão, não me desampare.

GASPARINO (Dirigindo-se a Porfíria sustém-lhe a cabeça. Para o Barão.) - Vossa Excelência acaba de comprometer-me. (Para Porfíria.) Menina, ó menina, o que tens? Olha, é o teu Gasparino.

PORFÍRIA - Ah!... eu morro... eu morro... meu Deus.

MARIQUINHAS (Para Gasparino.) - Talvez que cheirando um pouco de água de Colônia lhe passasse.

GASPARINO - Isto costuma dar-lhe quase sempre, não é nada, minha senhora.

BARÃO - Ou então uma canja de galinha. (Indo ao fundo grita.) Uma canja! Uma canja!

GASPARINO - Como, senhor Barão? Canja num baile!

BARÃO - Sim, senhor: lá para os meus lados em todos os bailes há canja de galinha, isto é fraqueza e a canja sendo substancial faz-lhe bem.

GASPARINO - Não é preciso, senhor Barão, traga-lhe antes um sorvete, isto é proveniente do calor.

MARIQUINHAS (À parte.) - Um sorvete para uma vertigem!

GASPARINO - Porfíria! Porfíria! meu anjo! meu coração! o que tens? Dize, eu te peço.

MARIQUINHAS - Não seria bom desatar o vestido, Senhor Gasparino?

GASPARINO - Não é necessário, minha senhora, a Gudin faz-lhe os vestidos muito largos. (Para Porfíria.) Minha Porfíria! Minha Porfíria! Comeste alguma coisa indigesta? (À parte.) Se isto se espalha, que escândalo, meu Deus!

CENA XII

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OS MESMOS, CARLOS e o BARÃO

BARÃO (Entrando pelo fundo com Carlos.) - Venha, doutor, venha, ali está ela. (Carlos dirige-se para Porfíria.)

GASPARINO - Não é nada, doutor: é uma pequena vertigem.

BARÃO - Mas ela está muito pálida! (À parte.) E a pequena nem sequer olha para mim!

CARLOS (Apalpando o pulso de Porfíria.) - O seu pulso está agitado, mas julgo que é simplesmente uma síncope.

GASPARINO - Uma síncope, doutor?! É moléstia grave?...

CARLOS (Com riso irônico.) - Talvez seja, Senhor Gasparino. (Para Mariquinhas.) Tenha a bondade de levar esta senhora ao toalete, Dona Mariquinhas, desatar o colete e ministrar-lhe os socorros necessários.

GASPARINO (Baixo para o Barão.) - Já lhe disse tudo.

BARÃO - E então?...

CARLOS (Baixo para Mariquinhas.) - Tenho muito que dizer-te.

MARIQUINHAS - E eu também, Carlos. (Carlos ajuda a Mariquinhas a levar Porfíria para a esquerda.)

(Cai o pano.)