Triste (Evocações, grafia de 2008)

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Je devorais mes pensées comme d'iautres dévorent leurs humiliations.

BALZAC, Histoire Intellectuelle de Louis Lambert

Absorto, perplexo na noite, diante da rarefeita e meiga claridade das estrelas eucarísticas, como diante de altares sidéreos para comunhões supremas, o grande Triste mergulhou taciturno nas suas profundas e constantes cogitações.

Sentado sobre uma pedra do caminho, imoto rochedo da solidão — ele, monge ou ermitão, anjo ou demônio, santo ou cético, nababo ou miserável, ia percorrendo a escala das suas sensações, acordando da memória as fabulosas campanhas do dia, as incertezas, as vacilações, as desesperanças; inventariando com rara meticulosidade e um rigor de detalhes verdadeiramente miraculoso todos os fatos curiosos, coincidências e controvérsias engenhosas que se haviam dado durante o dia, como um gênero insólito e singular de tortura nova.

As estrelas resplandeciam com a sua doce e úmida claridade terna, lembrando espíritos fugitivos perdidos nos espaços para, compassivamente, entre soluços, conversar com as almas...

E o grande Triste, então, prosseguia no seu monólogo esquisito, mentalmente pensado e sentido e que de tão violento que era nos fundos conceitos, naturalmente até os mais revolucionários e independentes do espírito achariam, por certo, ser um monólogo injusto, pessimista, cruel:

— E assim vai tudo no grande, no numeroso, no universal partido da Mediocridade, da soberana Chatez absoluta!

O caso está em ser ou parecer surdo e cego, em tudo e por tudo, conforme as conveniências o exigem.

Pôr a mão, de dedos abertos, sobre o rosto e parecer, fingir não ver e passar adiante, porque as conveniências o exigem.

Essa é que é afinal a teoria cômoda dos tempos e que os tempos seguem à risca, a todo transe, ferozmente, selvagemente, com o queixo inabalável, duro, inacessível ao célebre e pitoresco freio da Civilização, protegendo-se contra o perigoso assalto da Lucidez.

— Apaguem o sol, apaguem o sol, pelo amor de Deus; fechem esse incomodativo gasômetro celeste, extingam a luz dessa supérflua lamparina de ouro, que nos ofusca e irrita; matem esse moscardo monótono e monstruoso que nos morde, é o que clamam os tempos. Deixem-nos gozar a bela expressão — locomotiva do progresso — tão suficiente e verdadeira e que cabe tanto na agradável e estreita órbita em que giramos e não nos aflijam e escandalizem com os tais pensamentos, com as tais espiritualidades, com a tal arte legítima e outros paradoxos de loucura. Deixem-nos pantagruelicamente patinhar, suinar aqui no nosso lodoso e vasto buraco chamado mundo, anediando pacatamente os ventres velhos e sagrados, eis o que dizem os tempos. Que excelente, que admirável regalo se a humanidade se tornasse toda ela numa máquina de boas válvulas de pressão, um simples aparelho útil e econômico, do mais irrefutável interesse — sem saudade, sem paixão, sem amor, sem sacrifício, sem abnegação, sem Sentimento, enfim! Que admirável regalo!

Inútil, pois, continua a sonhar o Triste, todo o estrelado valor e bizarro esforço novo das minhas asas, todo o egrégio sonho, orgulho e dor, sombrias majestades que me coroam — monge ou ermitão, anjo ou demônio, santo ou cético, nababo ou miserável, que eu sou — inútil tudo...

Por mais desprezível que fosse esta procedência, ainda que eu viesse da salsugem do mar das raças, não seria tanta nem tamanha a minha atroz fatalidade do que tendo nascido dotado com os peregrinos dons intelectuais.

Assim, dada a situação confusa, esquerda, tumultuária, do centro onde vou agindo, estas nobres mãos, feitas para a colheita dos astros, têm de andar a remexer estrume, imundície, detritos humanos.

Adaptações, pastiches, intelectualismos, espécie de verdadeiros enxertos da Inteligência, esses, florescem fáceis logo, porque bem difícil e raro é determinar a pureza infinitamente delicada, sentir onde reside o fio profundo, a linha sutil divisória que separa, como por maravilhoso traço de fogo, os Dotados, dos Feitos ou Transplantados.

E, pois, com a alma tocada de uma transcendente sensibilidade e o corpo preso ao grosso e pesado cárcere da matéria, irei tragando todas as ofensas, todas as humilhações, todos os aviltamentos, todas as decepções, todas as deprimências, todos os ludíbrios, todas as injúrias, tudo, tudo tragando como brasas e ainda cumprimentos para cá, cumprimentos para lá, para não suscetibilizar as vaidades e presunções ambientes.

Como flechas envenenadas tenho de suportar sem remédio as piedades aviltantes, as compaixões amesquinhadoras, todas as ironiazinhas anônimas, todos os azedumes perversos e tediosos da Impotência ferida.

Tenho que tragar tudo e ainda curvar a fronte e ainda mostrar-me bem inócuo, bem oco, bem energúmeno, bem mentecapto, bem olhos arregalados e bem boca escancaradamente aberta ante a convencional banalidade. Sim! suportar tudo e cair admirativamente de joelhos, batendo o peito, babando e beijando o chão e arrependendo-me do irremediável pecado ou do crime sinistro de ver, sonhar, pensar e sentir um pouco... Suportar tudo e obscurecer-me, ocultar-me, para não sofrer as visagens humanas. Encolher-me, enroscar-me todo como o caracol, emudecer, apagar-me, numa modéstia quase ignóbil e obscena, quase servil e quase cobarde, para que não sintam as ansiedades e rebeliões que trago, os Idealismos que carrego, as Constelações a que aspiro... Recolher-me bem para a sombra da minha existência, como se já estivesse na cova, a minha boca contra a boca fria da terra, no grande beijo espasmódico e eterno, entregue às devoradoras nevroses macabras, inquisitoriais, do verme, para que assim nem ao menos a respiração do meu corpo possa magoar de leve a pretensão humana.

E, sobretudo, nem afirmar nem negar: — ficar num meio termo cômodo, aprazivelmente neutral.

Que até nem mesmo eu possa, na melancolia crepuscular dos tempos, dar com unção emotiva e com cordialidade o braço a certos profundos e obscuros Segredos íntimos e, levemente irônico e pungido de dolência, errar e conversar com eles através das avenidas sombrias de minh'alma.

Nada de pairar acima de tudo isto que nos cerca, dos turbilhões ignaros do rumor humano, deste estrondo atroador de rugidos, desta ondulante matéria, desta convulsão de lama, acima mesmo destas Esferas que cantam a luz pela boca dos astros.

E que o mundo veja e sinta que eu o conheço e compreendo, e que apesar da obscuridade com que me atrito comumente com ele, apesar dos contactos execrandos na rodante contingência da Vida, tenho-o como que fechado nesta pequena e frágil mão mortal.

Dizendo tudo ao mundo, originalmente tudo, com o verbo inflamado em vertigens e chamas da mais alta eloqüência, que só um complexo e singular sentimento produz, o mundo, espantado da minha ingenuidade, fugirá instintivamente de mim, mais do que de um leproso.

E até mesmo lá numa certa e feia hora em que se abre na alma de certos homens uma torporizada flor tóxica de perversidade, lá muito no íntimo, lá bem no recesso das suas consciências, nuns vagos instantes vesgos e oblíquos, quantos dos mais generosos amigos não acharão, embora falando baixo, muito baixo, como que num piscar de olhos ao próprio eu, mais ridículo que doloroso o meu interminável Sofrimento!

Mas, por mais que me humilhe, abaixe resignado a desolada cabeça, me faça bastante eunuco, não murmure uma sílaba, não adiante um gesto, ande em pontas de pés como em câmaras de morte, sufoque a respiração, não ouse levantar com audácia os olhos para os graves e grandes senhores do saber; por mais que eu lhes repita que não me orgulho do que sei, mas sim do que sinto, porque quanto ao saber eles podem ficar com tudo; por mais que lhes diga que eu não sou deste mundo, que eu sou do Sonho; por mais que eu faça tudo isto, nunca eles se convencerão que me devem deixar livre, à lei da Natureza, contemplando, mudo e isolado, a eloqüente Natureza.

E, então, assim, infinitamente triste, réprobo, maldito, secular Ahasverus do Sentimento, de martírio em martírio, de perseguição em perseguição, de sombra em sombra, de silêncio em silêncio, de desilusão em desilusão, irei como que lentamente subindo por sete mil gigantescas escadas em confusas espirais babélicas e labirínticas, como que feitas de sonhos. E essas sete mil escadas babilônicas irão dar a sete mil portas formidáveis, essas sete mil portas e essas sete mil escadas correspondendo, como por provação das minhas culpas, aos sete pecados mortais.

E eu baterei, por tardos luares mortos, baterei, baterei sem cessar, cheio de uma convulsa, aflitiva ansiedade, a essas sete mil portas — portas de mármore, portas de bronze, portas de pedra, portas de chumbo, portas de aço, portas de ferro, portas de chama e portas de agonia — e as sete mil portas sete mil vezes tremendamente fechadas a sete mil profundas chaves, seguras, nunca se abrirão, e as sete mil misteriosas portas mudas não cederão nunca, nunca, nunca!...

Num movimento nervoso, entre desolado e altivo, da excelsa cabeça, como esse augusto agitar de jubas ou esse nebuloso estremecimento convulso de sonâmbulos que acordam, o grande Triste levantara-se, já, decerto, por instantes emudecida a pungente voz interior que lhe clamava no espírito.

De pé agora, em toda a altura do seu vulto agigantado, arrancado talvez a flancos poderosos de Titãs e fundido originalmente nas forjas do sol, o grande Triste parecia maior ainda, sob os constelados diademas noturnos.

As estrelas, na sua doce e delicada castidade, tinham agora um sentimento de adormecimento vago, quase um velado e comovente carinho, lembrando espíritos fugitivos perdidos nos espaços para, compassivamente, entre soluços, conversar com as almas...

E, na angelitude das estrelas contemplativas, na paz suave, alta e protetora da noite, o grande Triste desapareceu, — lá se foi aquele errante e perpétuo Sofrimento, lá se foi aquela presa dolorosa dos ritmos sombrios do Infinito, tristemente, tristemente, tristemente...